terça-feira, 3 de novembro de 2009

VIDAS SECAS... DE GRACILIANO RAMOS


Graciliano Ramos (1892-1953)

Graciliano Ramos nasceu em Quebrângulo, Estado de Alagoas, em outubro de 1892. Mas seus estudos secundários foram realizados na capital deste estado, Maceió. Em 1914, sem curso universitário, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como revisor para o jornalismo local. Regressou ao seu Estado natal, fixando-se em Palmeira dos Índios, como comerciante. Enviuvou em 1920 ficando responsável pelos quatro filhos menores. Nessa época, trabalhava como jornalista e participava da vida política, chegando a prefeito da cidade em 1928, cargo a que renunciou em 1930.



Em 1933, quando publicou seu primeiro livro, Caetês, estava em Maceió como diretor da Imprensa Oficial do Estado. Na capital conheceu José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Graciliano dirigia também uma entidade: a Instrução Pública de Alagoas. Foi preso em março de 1936, acusado de ligação com o Partido Comunista. Prisão sem processo, mas que não evitou a deportação do acusado, num porão de navio, para o Rio, onde permaneceu encarcerado. Foi demitido do cargo de Diretor da Instrução Pública e levado a diversos presídios, até Janeiro de 1937, quando foi libertado. Dessa experiência, nasce a obra Memórias do cárcere, publicada em 1953, ano de sua morte. Em 1945, com o fim do Estado Novo, filiou-se ao Partido Comunista. Sete anos mais tarde, viajou pela antiga União Soviética e parte da Europa. Dessas andanças resultou o livro Viagem. O regresso ao Brasil coincidiu com o início de sua doença. No ano seguinte, 1953, morreu no Rio de Janeiro. Seu nome já era consagrado como o de maior romancista brasileiro depois de Machado de Assis.



A obra de Graciliano Ramos é a melhor representante da ficção produzida no Modernismo de 1930, e certamente um dos pontos altos de nossa literatura, em todos os tempos. Sua obra destaca-se por uma unidade muito bem estruturada e peculiar; essa unidade resulta da maneira como o escritor entende a vida e a arte. Quanto à concepção de arte, a crítica evidencia no estilo de Graciliano Ramos a ausência de sentimentalismo e a capacidade de síntese, ou seja, a habilidade de dizer o essencial em poucas palavras. A linguagem rigorosa, enxuta, resulta de um trabalho consciente.



Graciliano Ramos escrevia, de fato, muito lentamente, submetendo seus textos a várias revisões. Conta-se que jamais se sentia inteiramente satisfeito com o resultado final. Sua arte representa um desejo intenso de testemunhar sobre o homem e suas mais diversas lutas, como certa vez escreveu Antônio Cândido... mas, não apenas sobre o homem do seu tempo e de seu meio, mas sobre as angústias e dramas do homem de sempre, talvez seja isso a verdadeira essência do Regionalismo de 30.






VIDAS SECAS (1938)



Os abalos sofridos pelo povo brasileiro em torno dos acontecimentos da década de 1930 levaram a um novo estilo ficcional, notadamente muito mais maduro do que a de sua geração anterior, a qual se marcaria pela rudeza, por uma linguagem mais brasileira, por um enfoque direto dos fatos, por uma retomada do Realismo e, em partes, do Naturalismo, principalmente no plano da narrativa documental caracterizado pelo romance nordestino, grande liberdade temática, densidade, profundeza psicológica e rigor estilístico. Os romancistas de 30 caracterizavam-se por adotarem uma visão crítica das relações sociais, principalmente no que concerne ao Regionalismo – com maior destaque para o regionalismo nordestino – ressaltando o homem hostilizado pelo ambiente, pela terra, cidade, o homem devorado pelos problemas que o meio lhe impõe. Vidas secas é a história de uma família de retirantes, que paradoxalmente não chega a constituir propriamente uma história, mas uma coleção de relatos em separado e cronologicamente fragmentado. A dura andança, sob a implacabilidade da seca, de certa forma justifica a inutilidade da comunicação entre os membros da família, o fato de os filhos não apresentarem nome, as dificuldades lingüísticas do pai, Fabiano, a inquietação constante. E também justifica o sacrifício do papagaio, que ficamos, a saber, logo no início da narrativa, que tinha acompanhado a família, e que veio a se transformar em alimento providencial. Como se não bastassem tais infortúnios, Fabiano vem a ser preso pelo “soldado amarelo”, símbolo do autoritarismo local. Ao contrário de Fabiano, que se mostra matuto em tudo, sua mulher, Sinhá Vitória, apresenta sinais de ter vindo de um meio social menos duro. Baleia, a cachorra, consegue sentir e reagir com inteligência superior à média dos animais. Sua “humanização”, símbolo de um antropoformismo progressivo extremamente subjetivo e de fortes impressões sociais e psicológicas, acompanha a, também progressiva, “animalização” – a zoomorfização, resultante do embrutecimento causado pelo meio – dos membros da família. Fabiano tem de sacrificar a cachorra, por suspeitar que ela estivesse padecendo de raiva. Embora se revolte contra as contas do patrão, Fabiano tem de aceitá-las, para não perder o emprego. Seu reencontro com o soldado amarelo, depois, em plena caatinga, faz-lhe reconhecer, ao mesmo tempo, sua própria superioridade e extrema covardia. Acaba perdoando, ensinando ao soldado o caminho de volta. Mas seca, enfim, está chegando. As árvores se enchem de aves de arribação. Fabiano recomeça a analisar sua vida. Quem lhe dá animo é Sinhá Vitória. Os retirantes deixam a casa da fazenda e retomam o caminho de sempre. No pensamento de Fabiano brilha uma certa esperança, materializada pelas promessas de chegar ao sul do país. Mas a perspectiva que vem do narrador é a da contínua andança, sem definição e sem destino certo. A secura é a dominante em toda a narrativa: secas são não só as vidas das personagens e as paisagens que atravessam, mas também a linguagem do livro. As frases são curtas, lacônicas, o vocabulário é mínimo, a própria montagem da narrativa é esquelética, feita de quadros que se reduzem a si mesmos, sem se articular no desenho mais amplo de uma história, pois esta também parece faltar àqueles magros retirantes. Vidas Secas retrata fielmente a realidade brasileira, não só da época em que o livro foi escrito, mas, como nos dias de hoje, tais como injustiça social, miséria, fome, desigualdade, seca, o que nos remete a idéia de que o homem se animalizou sob condições sub-humanas de sobrevivência. É o único livro que Graciliano Ramos escreveu em terceira pessoa voltando-se para a realidade física e social do nordeste brasileiro o qual ele conhecia muito bem por lá ter nascido e vivido metade de sua vida. Os dramas por quais passam a família de Fabiano estão divididos em 13 capítulos como pequenos contos que são, ao mesmo tempo, independentes e correlacionados entre si.






MUDANÇA



Em meio à paisagem seca e hostil do semi-árido nordestino, quatro pessoas e uma cadelinha se arrastam numa peregrinação silenciosa. O menino mais velho, completamente esgotado por causa da infindável, deita-se no chão, incapaz de prosseguir jornada, o que irrita seu pai, Fabiano, que lhe dá estocadas com a faca no intuito de fazê-lo levantar-se – chegando ao ponto de pensar abandoná-lo em meio ao sertão escaldante. Compadecido, porém, da situação do pequeno, o pai toma-o nos braços e carrega-o, tornando a viagem ainda mais modorrenta. A cadela Baleia acompanha o grupo de humanos já sem a companhia do outro animal de estimação da família, um papagaio, que fora sacrificado um dia antes, a fim de aplacar a fome que se abatia sobre a família de Fabiano e Sinhá Vitória. Tentando aplacar o remorso de tê-lo matado, Sinhá Vitória afirma que a ave era um papagaio estranho, que pouco falava – certamente porque convivia com gente que também falava pouco. Errando por caminhos incertos, Fabiano e família encontram uma fazenda completamente abandonada. Surge a intenção de se fixar por ali. Baleia aparece com um preá entre os dentes, causando grande alegria aos seus donos. Ninguém passaria fome àquela noite, pois havia, agora, o que comer. Descendo ao bebedouro dos animais, em meio à lama, Fabiano consegue água. Há uma alegria em seu coração, novos ventos parecem soprar para a sua família. Pensa em Seu Tomás da bolandeira. Pensa na mulher e nos filhos. A inesperada caça é preparada, o que garante um rápido momento de felicidade ao grupo. No céu, já escuro, há uma nuvem que é, para o sertanejo, eterno sinal de esperança. Fabiano deseja estabelecer-se naquela fazenda. Será o dono dela. A vida melhorará para todos, assim pensa...






FABIANO



Em vão, Fabiano procura por uma raposa. Apesar do fracasso da empreitada, ele está satisfeito. Pensa na situação da família, errante, passando fome, quando da chegada àquela fazenda. Estavam bem agora. Fabiano se orgulha de vencer as dificuldades tal qual um bicho. Agora ele era um vaqueiro, apesar de não ter um lugar próprio para morar. A fazenda aparentemente abandonada tinha um dono, que logo aparecera e reclamara a posse do local. A solução foi ficar por ali mesmo, servindo ao patrão, tomando conta do local que outrora pesara ser seu. Na verdade, era uma situação triste, típica de quem não tem nada e vive errante. Sentiu-se novamente um animal, agora com uma conotação negativa. Pouco falava, admirava e tentava imitar a fala difícil das pessoas da cidade. Era, como, muitas vezes, afirmara, um bicho. Fabiano irrita-se com a curiosidade dos filhos: “para quê perguntar as coisas?” Comenta a respeito disso com Sinhá Vitória afirmando que essas coisas de pensamento não levam a nada e exemplifica recordando-se de seu Tomás da bolandeira que, apesar de admirado por Fabiano pelas suas palavras difíceis, acabara como todo mundo, errante e miserável pelo Sertão. As palavras, as idéias, seduziam e cansavam Fabiano. Pensou várias e várias vezes na brutalidade do patrão que vivia a tratá-lo como a um inútil. Pensou em Sinhá Vitória, e em seu desejo de possuir uma cama igual à de Seu Tomás da bolandeira, mas não poderiam ter esse luxo, cambembes que eram. Sentiu-se confuso. Era um forte ou um fraco, um homem ou um bicho? Sentia, por vezes, ímpeto de lutador e fraqueza de derrotado. Lembrando dos meninos, novamente, cheio de esperanças frágeis, Fabiano achou que, quando as coisas melhorassem, eles poderiam se dar ao luxo daquelas coisas de pensar. Por ora, importante era sobreviver. Enquanto as coisas não melhorassem, falaria com Sinhá Vitória sobre a educação dos pequenos...






CADEIA



Fabiano vai à feira para comprar mantimentos, querosene e um corte de chita vermelha. Injuriado com a qualidade do querosene e com o preço da chita, resolve beber um pouco de pinga na bodega de seu Inácio. Nisso, um soldado amarelo convida-o para um jogo de cartas. Os dois acabam perdendo, o que irrita o soldado, que provoca Fabiano quando esse está de partida. A idéia do jogo havia sido desastrosa. Perdera dinheiro, não levaria para casa o prometido. Fabiano, agora, pensava apenas em como enganar Sinhá Vitória, mas a dificuldade de engendrar um plano o atormentava. O soldado, provocador, encara o vaqueiro e barra-lhe a passagem. Pisa no pé de Fabiano que, tentando contornar a situação à sua maneira, agüenta os insultos até o possível, terminando por xingá-lo, a ele à sua mãe. Fabiano é empurrado, humilhado publicamente e posto atrás das grades como um marginal perigoso. No xadrez, pensa por que havia acontecido tudo aquilo com ele. Não fizera nada, se quisesse até bateria no mirrado amarelo, mas ficara quieto. Em meio a rudes indagações, enfureceu-se, acalmou-se, protestou inocência. Amolou-se com um bêbado e com prostituta que estavam em outra cela. Pensou na família; pensou que se não fosse Sinhá Vitória e as crianças, já teria feito uma besteira por ali mesmo. Quando deixaria que um soldadinho daqueles o humilhasse tanto? Arquitetou vinganças, gritou com os outros presos e, no meio de sua incompreensão com os fatos, sentiu a família como um peso a carregar...






SINHÁ VITÓRIA



Naquele dia, Sinhá Vitória amanhecera brava. À noite mal dormida na cama de varas que era o verdadeiro motivo de tamanha zanga. Falara pela manhã, mais uma vez, com Fabiano sobre a dificuldade de dormir naquela cama. Queria uma cama de lastro de couro, como a de Seu Tomás da bolandeira, como a de pessoas normais. Havia um ano que discutia com o marido a necessidade de uma cama decente e, em meio a uma briga por causa das extravagâncias de cada um, Sinhá Vitória certa vez ouviu Fabiano dizer-lhe que ela ficava ridícula naqueles sapatos de verniz, caminhando como um papagaio, trôpega, manca. A comparação machucou-a e, agora, ela se irritava com o ronco de Fabiano ao lembrar-se de suas palavras. Circulando pela casa, fazia suas tarefas em meio a reza e a atenção ao que acontecia lá fora. Por pensar ainda na cama e na comparação maldosa de Fabiano, quase esqueceu de pôr água na comida. Veio-lhe a lembrança do bebedouro em que só havia lama. O medo da seca pairou no ar como um fantasma que retorna para assombrá-la. Olhou de novo para seus pés e inevitavelmente achou Fabiano mau. Baleia que, ao notar sua angústia, e tentando acalmá-la com um carinho, acaba por levar um safanão tornando-se a válvula de escape para os sofrimentos de sua dona. Sinhá Vitória acaba por pensar no papagaio, sentindo grande pena dele. Lá fora, os meninos brincavam em meio à sujeira. Dentro de casa, Fabiano roncava forte, seguro, o que indicava a Sinhá Vitória que não deveria haver perigo algum por ali. A seca deveria estar longe. As coisas, agora, pareciam mais estáveis, apesar de toda a dificuldade. Lembrou-se de como haviam sofrido em suas andanças. Só faltava uma cama. No fundo, no fundo, até mesmo Fabiano queria uma nova...






O MENINO MAIS NOVO



Fabiano, armado como vaqueiro, domava a égua brava com o auxílio de Sinhá Vitória. O espetáculo grosseiro excitava o menor dos garotos enchendo-o de admiração e de idéias. Impressionado com a façanha do pai e disposto a fazer algo que também despertasse o respeito do irmão mais velho e da cachorra Baleia, acordou, no dia seguinte, disposto a imitar a façanha do pai. Esperou que as cabras fossem ao bebedouro, levadas pelo menino mais velho e por Baleia, então, o pequeno tomou o bode como alvo de sua ação. Sentia-se tão sagaz e altivo como Fabiano, quando montava. No bebedouro, o garoto despencou da ribanceira sobre o animal, que o repeliu com selvageria. Insistente, tentou se aprumar, mas foi sacudido impiedosamente, praticando um involuntário salto mortal que o deixou, tonto, estatelado ao chão. O irmão mais velho ria sem parar do ridículo espetáculo enquanto que a cachorra Baleia parecia desaprovar toda aquela loucura. Fatalmente seria repreendido pelos pais. Retirou-se humilhado, alimentando a raivosa certeza – acima de tudo, determinista – de que seria grande, usaria roupas de vaqueiro, fumaria cigarros e faria coisas que deixariam Baleia e o irmão admirados...






O MENINO MAIS VELHO



Aquela palavra tinha chamado a sua atenção: Inferno. Perguntou à Sinhá Vitória, vaga na resposta. Perguntou a Fabiano, que o ignorou. Na volta à Sinha Vitória, indagou se ela já tinha visto o Inferno. Levou um cascudo e fugiu indignado. Baleia fez-lhe companhia tentando alegrá-lo naquela hora difícil. Decidiu contar à cachorrinha uma história, mas o seu vocabulário era muito restrito, quase igual ao do papagaio que morrera na viagem. Só Baleia era sua amiga naquele momento. Por que tanta zanga com uma palavra tão bonita? A palavra Inferno parecia-lhe bonita, suave e extremamente sonora. A culpa era de Sinhá Terta que usara aquela palavra na véspera, maravilhando o ouvido atento do garoto mais velho. Olhou para o céu e sentiu-se melancólico. Como poderiam existir estrelas? Pensou novamente no Inferno. Deveria ser – sim! – um lugar muito ruim e mui perigoso, cheio de jararacas e pessoas levando cascudos e pancadas com a bainha da faca. Sempre intrigado, abraçou-se à Baleia como seu único refúgio...




INVERNO



Todos estavam reunidos em volta do fogo, procurando aplacar o frio causado pelo vento e pela água que se agitava fora da casa. Chegara o inverno, e isso reunia a família próxima à fogueira. Fabiano e sinhá Vitória conversavam ao seu modo – estranho e limitado –, e, os meninos, deitados, ficavam ouvindo as estórias inventadas por Fabiano, de feitos que, ele, jamais, teria realizado, aventuras nunca vividas. Quando o mais velho levantou-se por fim de buscar mais lenha, foi repreendido com severidade pelo pai que se aborrecera com interrupção de “suas narrativas épicas”. A chuva dava à família a certeza de que a seca não chegaria por enquanto. Isso alegrava Fabiano. Sinhá Vitória, porém, temia por uma inundação que os fizesse subir ao morro, novamente errantes. A água, lá fora, ampliava sua invasão. Fabiano empolgava-se mais ainda em contar suas façanhas. A chuva tinha vindo em boa hora. Após a humilhação na cidade, decidira que, com a chegada da seca, abandonaria a família e partiria para a vingança contra o soldado amarelo e todas as demais autoridades que lhe atravessassem o caminho, mas a chegada das chuvas interrompera-lhe aqueles planos sinistros. Em meio à narrativa empolgada, Fabiano imaginava que as coisas melhorariam a partir dali; quem sabe, Sinhá Vitória até pudesse ter a cama tão desejada. Para o filho mais novo, o escuro e as sombras geradas pela fogueira faziam da imagem do pai algo grotesco, exagerado. Para o mais velho, a alteração feita por Fabiano na história que contava era motivo de desconfiança. Algo não cheirava bem naquele enredo. Sempre pensativo, o menino mais velho dormiu pensando na falha do pai e nos sapos que estariam lá fora, no frio. Baleia, incomodada com a arenga de Fabiano, procurava sossego naquela paisagem interior. Queria dormir em paz, ouvindo o barulho de fora...






FESTA



Fabiano e toda a sua família vão à festa de Natal, na cidade. Todos vestidos com suas melhores roupas, num traje pouco comum às suas figuras, dando-lhes um ar ridiculamente cômico. A caminhada longa tornava-se ainda mais cansativa por causa daquelas roupas e sapatos apertados. O mal-estar era geral, até que Fabiano cansou-se da situação e tirou os sapatos, metendo as meias no bolso, livrando-se ainda do paletó e da gravata que o sufocava. Os demais membros da família também fizeram mesmíssima coisa, voltando, todos, ao seu “natural”. Baleia, por sua vez, também se juntara ao grupo. Chegando à cidade, foram todos lavar-se à beira de um riacho antes de se integrarem à festa. Sinhá Vitória carregava um guarda-chuva. Fabiano marchava teso. Os meninos maravilham-se, assustados, com tantas luzes e gente. A igreja, com as imagens nos altares, encantou-os mais ainda. Fabiano espremia-se no meio da multidão, sentindo-se cercado de inimigos, sentia-se mangado por aquelas pessoas que o viam em trajes estranhos à sua bruta feição. Ninguém, na cidade, lhe parecia bom, pois se lembrava da grande humilhação que lhe imposta pelo soldado amarelo quando estivera pela última em solo urbano. A família saiu da igreja e foi ver o carrossel e as barracas de jogos. Como Sinhá Vitória negou para Fabiano uma aposta no bozó; ofendido, afasta-se da família e foi beber pinga. Embriagando-se, foi ficando valente. Imaginava, com raiva, por onde andava o soldado amarelo. Queria esganá-lo. No meio da multidão, gritava, provocava um inimigo imaginário. Queria bater em alguém, poderia matar se fosse o caso. Vez ou outra, interrompia suas imprecações para uma confusa reflexão. Cansado do seu próprio teatro, Fabiano deitou no chão, fez das suas roupas um travesseiro e dormiu pesadamente. Sinhá Vitória, aflita, tinha que olhar os meninos, não podia deixar o marido naquele estado. Tomando coragem para realizar o que mais queria naquele momento, discretamente esgueirou-se para uma esquina e ali mesmo urinou e depois pitou num cachimbo de barro pensando numa cama igual à de seu Tomas da bolandeira. Os meninos também estavam aflitos. Baleia sumira na confusão de pessoas, e o medo de que ela se perdesse e não mais voltasse era grande. Para alívio dos pequenos, a cachorrinha surge de repente e acabando com a terrível angústia que sofriam. Os pequenos maravilhavam-se com tudo de novo que viam. O menor perguntou ao mais velho se tudo aquilo tinha sido feito por gente. A dúvida do maior era se todas aquelas coisas teriam nome. Como os homens poderiam guardar tantas palavras para nomear as coisas? Distante de tudo, Fabiano, roncava, sonhando com soldados amarelos...






BALEIA



Pêlos caídos, feridas na boca e inchaço nos beiços debilitaram Baleia de tal modo que Fabiano achou que ela estivesse com raiva. Resolveu sacrificá-la. Sinhá Vitória recolheu os meninos, desconfiados, a fim de evitar-lhes a cena. Baleia era considerada como um membro da família, por isso os meninos protestaram, tentando sair ao terreiro para impedir a atitude radical de seu pai. Sinhá Vitória lutava com os pequenos, porque aquilo era necessário, mas aos primeiros movimentos do marido para a execução, lamentou o fato de que ele não tivesse esperado mais para confirmar a doença da cachorrinha. Desconfiando das intenções de seu dono, Baleia procura fugir, mas Fabiano acerta-lhe o primeiro tiro, que pegou no traseiro da cachorra, inutilizou-lhe uma de suas pernas. As crianças começaram a chorar desesperadamente. Baleia sentia o fim próximo, tentava esconder-se e até desejou morder Fabiano. Um nevoeiro turvava a visão da cachorrinha, havia um cheiro bom de preás. Em meio à agonia, tinha raiva de Fabiano, mas também o via como o companheiro de muito tempo. A vigilância às cabras, Fabiano, Sinhá Vitória e as crianças surgiam à Baleia em meio a uma inundação de preás que invadiam a cozinha. Dores e arrepios. Sono. A morte estava chegando para Baleia.






CONTAS



Fabiano retirava para si parte do que rendiam os cabritos e os bezerros. Na hora de fazer o acerto de contas com o patrão, nunca conseguia esconder a insatisfação, muito menos a sensação de que havia sido enganado. Com a produção escassa, endividara-se. Naquele dia, mais uma vez, Fabiano pedira a Sinhá Vitória para que ela fizesse as contas. O patrão, novamente, mostrou-lhe outros números. Os juros causavam a diferença, explicava o outro. Fabiano reclamou, havia engano, sim senhor, e aí foi o patrão quem não gostou. Se ele desconfiava, que fosse procurar outro emprego, disse-lhe. Submisso, Fabiano pediu desculpas e saiu arrasado, pensando mesmo que Sinhá Vitória era quem errara. Na rua, voltou-lhe a raiva. Lembrou-se do dia em que fora vender um porco na cidade e o fiscal da prefeitura exigira o pagamento do imposto sobre a venda. Fabiano desconversou e disse que não iria mais vender o animal. Foi a uma outra rua negociar e, pego em flagrante, decidiu nunca mais criar porcos. Pensou na dificuldade de sua vida. Bom seria se pudesse largar aquela exploração. Mas não podia! Seu destino era trabalhar para os outros, assim como fora com seu pai e seu avô. As notas em sua mão impressionavam-no. A idéia de juros era, para ele, uma palavra difícil que os homens usavam quando queriam enganar os outros. Contou e recontou o dinheiro com raiva de todas aquelas pessoas da cidade. Pesou que Sinhá Vitória é que entendia seus pensamentos. Teve vontade de entrar na bodega de seu Inácio e tomar uma pinga. Lembrou-se da humilhação passada ali mesmo e decidiu ir para casa. O céu, várias estrelas. Deixou de lado a lembrança dos inimigos e pensou na família. Sentiu dó da cachorra Baleia. Ela era um membro da família.






O SOLDADO AMARELO



Procurando uma égua fugida, Fabiano meteu-se por uma vereda e teve o cabresto embaraçado na vegetação local. Facão em punho, começou a cortar as quipás e palmatórias que impediam o prosseguimento da busca. Nesse momento, depara-se com o soldado amarelo, o mesmo que o humilhara há um ano. O cruzar de olhos e o reconhecimento durou fração de segundos. O suficiente para que Fabiano esfolasse o inimigo. O soldado claramente tremia de medo. Também reconhecera o desafeto antigo e pressentia o perigo. Fabiano irritou-se com a cena. O outro era um nadica. Poderia matá-lo com as mãos, sem armas, se quisesse. A fragilidade do outro aos poucos foi aplacando a raiva de Fabiano. Ponderou que ele mesmo poderia ter evitado a noite na cadeia se não tivesse xingado a mãe do amarelo. No meio daquela paisagem isolada e hostil, só os dois, e se ele pedisse passagem ao soldado? Aproximou-se do outro pensando que já tinha sido mais valente, mais ousado. Na verdade, na fração de segundo interminável Fabiano ia descobrindo-se amedrontado. Se ele era um homem de bem, para que arruinar a sua vida matando uma autoridade? Guardaria forças para inimigo maior. Sentindo o inimigo acovardado, o soldado ganhou força. Avançou firme e perguntou o caminho. Fabiano tirou o chapéu numa reverência e ainda ensinou o caminho ao amarelo.






O MUNDO COBERTO DE PENAS



A invasão daquele bando de aves denunciava a chegada da seca. Roubavam a água do gado, matariam bois e cabras. Sinhá Vitória inquietou-se. Fabiano quis ignorar, mas não pôde; a mulher tinha razão. Caminhou até o bebedouro, onde as aves confirmavam o anúncio da seca. Eram muitas. Um tiro de espingarda eliminou cinco, seis delas, mas eram muitas. Fabiano tinha certeza, agora, de uma nova peregrinação, uma nova fuga. Era só desgraça atrás de desgraça. Sempre fugido, sempre pequeno. Fabiano não se conformava, pensava com raiva no soldado amarelo, achava-se um covarde, um fraco. Irado, matou mais e mais aves. Serviriam de comida, mas até quando ? Quem sabe a seca não chegasse... Era sempre uma esperança. Mas o céu escuro de arribações só confirmava a triste situação. Elas cobriam o mundo de penas, matando o gado, tocando a ele e à família dali, quem sabe comendo-os. Recolheu os cadáveres das aves e sentiu uma confusão de imagens em sua cabeça. Aquele lugar não era bom de se viver. Lembrou-se de Baleia, tentou se convencer de que não fizera errado em matá-la, pensou de novo na família e no que as arribações representavam. Sim, era necessário ir embora daquele lugar maldito. Sinha Vitória era inteligente, saberia entender a urgência dos fatos.






FUGA



O céu muito azul, as últimas arribações e os animais em estado de miséria indicavam a Fabiano que a permanência naquela fazenda estava esgotada. Chegou um ponto em que, dos animais, só sobrou um bezerro, que foi morto para servir de comida na viagem que se faria no dia seguinte. Partiram de madrugada, abandonando tudo como encontraram. O caminho era o do sul. O grupo era o mesmo que errava como das outras vezes. Fabiano, no fundo, não queria partir, mas as circunstâncias convenciam-no da necessidade. A vermelhidão do céu, o azul que viria depois assustavam Fabiano. Baleia era uma imagem constante em seus confusos pensamentos. Sinhá Vitória também fraquejava. Queria, precisava falar. Aproximou-se do marido e disse coisas desconexas, que foram respondidas no mesmo nível de atrapalhação. Na verdade, ele gostou que ela tivesse puxado conversa. Ela tentou animar o marido, quem sabe a vida fosse melhor, longe dali, com uma nova ocupação para ele. Marido e mulher elogiam-se mutuamente; ele é forte, agüenta caminhar léguas, ela, tem pernas grossas e nádegas volumosas, agüenta também. A cidade, talvez, fosse melhor. Até uma cama poderiam arranjar. Por que haveriam de viver sempre como bichos fugidos? Os meninos, longe, despertavam especulações ao casal. O que seriam quando crescessem? Sinhá Vitória não queria que fossem vaqueiros. O cansaço ia chegando à medida que avançava a caminhada, e assim houve uma parada para descanso. Novamente marido e mulher conversavam, fazendo planos, temendo o mau agouro das aves que voavam no céu. Sinhá Vitória acordou os pequenos, que dormiam, e seguiu-se viagem. Fabiano ainda admirou a vitalidade da mulher. Era forte mesmo! Assim, a cada passo arrastado do grupo um mundo de novas perspectivas ia sendo criado. Sinhá Vitória falava e estimulava Fabiano. Sim, deveria haver uma nova terra, cheia de oportunidades, distante do sertão a formar homens brutos e fortes como eles.









PROSOPOPÉIA DETERMINISTA



Único romance escrito em terceira pessoa por Graciliano Ramos – como já foi dito anteriormente –, Vidas Secas, concentra-se nos dramas sociais, políticos e histórico-geográficos do Nordeste Brasileiro, no seu povo amargurado e sofrido, mas também forte, destemido e esperançoso – apesar de todas as dificuldades que este tem encontrado ao longo da história do Brasil. Este quadro social que expressa com crueza de detalhes a miséria provocada pela seca, encontra perfeita personificação na família de um vaqueiro do sertão alagoano (Fabiano), composta por ele, sua esposa (Sinhá Vitória), seus dois filhos (o menino mais velho e o menino mais novo) e uma cachorrinha (Baleia), que após uma longa jornada pela paisagem calcinada da Caatinga, chegam a uma fazenda supostamente abandonada; com a volta do dono à propriedade, Fabiano, então, passa a servi-lo. Vários incidentes revelam os mais diversos dramas pessoais de cada um dos cinco personagens, até que sobrevém um novo período de estiada e a família retorna à trágica caminhada tão comum aos milhares de retirantes que vagam do Nordeste para outras partes do Brasil, porém, desta vez, há uma pequena possibilidade de reconstruírem suas vidas no Sul do País.



No romance, a paisagem seca e inóspita do Sertão funciona como metáforas para a dura vida dos que, nela, habitam. O homem sertanejo é igualmente seco e embrutecido, como a própria caatinga; ele é o reflexo do determinismo imposto pela paisagem; ele absorve as suas características tanto em seus aspectos físicos quanto psicológicos. Fabiano é o exemplo vivo desta prosopopéia determinista: seu rosto é queimado pelo sol, enquanto que seus pés são rachados pelo calor – como o leito seco dos rios, sorvidos pela seca –, tem olhos azuis como o céu límpido dos dias de intenso calor e seus cabelos é vermelhado com os raios do sol. Seu comportamento, sua linguagem e seus conhecimentos são áridos como o solo sertanejo. O aspecto de Fabiano, deixe-o bem registrado, é um aspecto incomum aos tipos marginalizados mais comuns da Literatura Brasileira: ele é ariano; seus olhos azuis e sua pele clara mostram que ele pertence a uma raça dita superior – levando, em questão, as muitas teorias racistas difundidas durante o período da Segunda Guerra –, mas é minguado e paupérrimo, como para demonstrar que a miséria iguala a todos. A seca também se apresenta ciclicamente: o livro começa com a família de Fabiano em retirada e termina da mesma maneira; Fabiano, Sinhá Vitória e seus Filhos – Baleia já não mais existe –, não serão nem os primeiros nem os últimos retirantes, reais ou fictícios, a fugiram da seca.



Dando continuidade a idéia de uma releitura determinista inclusa em Vidas Secas, encontramos um Fabiano sempre preso às condições sócio-culturais de seu povo; ao longo da narrativa, percebemos em Fabiano um forte sentimento de continuidade: ele é vaqueiro, por que seu pai foi vaqueiro e certamente seus filhos serão vaqueiros também, sempre a servir àqueles que lhe são, segundo ele próprio, superiores, obedecer – sem questionar –, e sofrer; por mais que se sinta injustiçado, Fabiano não consegue libertar-se deste magnetismo maléfico que o prende ao sertão e suas duras e injustas condições de vida. Neste sentido, Graciliano Ramos traça um longo perfil social e psicológico do homem sertanejo, atormentado dias após dia pelo medo da seca e revoltado antes as injustiças da sociedade que faz com que ele, ao longo de sua existência, perca as características mais elementares de sua condição humana (como no início do romance, quando Graciliano nos dá uma amostra da mais completa incomunicabilidade entre os membros da família ao descrever a suposta mudez do já falecido papagaio, ou da total degradação das condições humanas na comunicação gutural de Sinhá Vitória; também não podemos esquecer o prazer que sentia Fabiano, totalmente à vontade entre os animais como se estes fossem seus verdadeiros semelhantes) e, vendo-se sem lar, sem educação, perspectiva de futuro ou dignidade, animalize-se cada vez mais adequando sua vida à rústica essência da Caatinga, tornando-se exemplo de uma zoomorfização que, diferente àquela aplicada pelos naturalistas em fins do século XIX, atinge-o, também, de maneira subjetiva.



Dando continuidade ao determinismo que lhe envolve e ao fatalismo que sempre o atormenta pelo velho e sempre presente fantasma da seca, Fabiano demonstra, constantemente, uma forte admiração pela linguagem culta (pela “fala bonita”) dos homens urbanos ou instruídos, admiração que é muito mais um sinal de sua submissão do que de contemplação – ele próprio tenta, em vão, imitar a “boniteza” desta fala, antes de perceber a sua inutilidade e perigo. Aos poucos, percebe que seus filhos vão se tornando mais curiosos e criando idéias, o que, para ele, é algo imprestável e malévolo e tenta ensinar-lhes o manejo do gado e da terra fazendo-os procurar novilhas e raposas e respondendo suas perguntas com violenta rispidez. A sua “pedagogia” parece influenciar o menino mais novo, que, num ato entusiasmado, procura igualar-se ao pai – o que parece ser o seu grande ideal –, montando em um bode que lhe derruba, em seguida. Já o menino mais velho não parece, diferentemente ao irmão, interessado em seguir os passos determinantes impostos pelo pai; seus ideais são bem diferentes, ele busca, curiosamente, a compreensão das coisas, o saber e o amor de seus pais; mas é violência, desprezo e ignorância que ele recebe de Fabiano. Também Sinhá Vitória mostra-se indiferente as idéias de Fabiano, ela não parece concordar nem aceitar as duras condições às quais é submetida; embora pequeno, seu sonho de ter uma cama igual à de Seu Tomás da bolandeira concretiza este desejo de uma vida diferente e melhor. O grande antagonismo desta situação está na figura da cachorra Baleia: ela é antropoformizada, ela pensa e sente como um ser humano e que, além de tudo, tem consciência da vida e da morte; é ela o membro da família que demonstra a maior quantidade de entendimentos e emoções chegando até a censurar seu dono por suas atitudes impensadas. Evidencia-se, portanto, a profunda integração entre os homens, os animais e a natureza que parte diretamente de um exame minucioso da cultura sertaneja. O sertanejo, submetido a um sofrimento secular, reagindo a reflexos condicionados, aceitando sua miséria e exploração, permite-se obrigar à condições subumanas que destroem sua educação reduzindo seu pensamento e sua linguagem à guturalidade; eis o verdadeiro significado destas vidas secas.



Graciliano Ramos, neste romance, elabora um inteligentíssimo protesto contra a desumanização do homem sertanejo em sua batalha histórica contra as forças político-sociais que o oprimem. Nada resta ao homem do Sertão a não ser lutar contra o seu próprio e fatal destino. O sertanejo continua como um símbolo de força e perseverança, como antes o foi com Os Sertões, de Euclides da Cunha. Graciliano Ramos, desta maneira, dá continuidade a um aspecto essencial do romance de 30 que é o de ser um mecanismo de denuncia do descaso que se abate sobre o povo pobre do Brasil e, em seu caso, o povo sertanejo.






VIDAS SECAS – ANTOLOGIA:


MUDANÇA




Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala.



Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.



Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.



– Anda condenado do diabo, gritou-lhe o pai.



Não obtendo resultado fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu umas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isso não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.



A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.



– Anda, excomungado.



O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.




Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.




Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores.




Sinhá Vitória esticou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.



E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.

Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra, corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam.



Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folhas a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano, às vezes, também sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto da farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na caatinga. Sinhá Vitória queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolveram de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.



As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam.



Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu o a esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força.



Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia tempo que não viam sombra.



Sinhá Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-os com molambos. O menino mais velho, passada à vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a cabeça encostada a uma raiz, adormecia, acordava. E quando abria os olhos, distinguia vagamente um monte próximo, algumas pedras, um carro de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele.



Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se findara e os moradores tinham fugido.



Fabiano procurou em vão perceber um toque de chocalho. Avizinhou-se da casa, bateu, tentou forçar a porta. Encontrando resistência, penetrou num cercadinho cheio de plantas mortas, rodeou a tapera, alcançou o terreiro do fundo, viu um barreiro vazio, um bosque de catingueiras murchas, um pé de turco e o prolongamento da cerca do curral. Trepou-se no mourão do canto, examinou a caatinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus. Desceu, empurrou a porta da cozinha. Voltou desanimado, ficou um instante no copiar, fazendo tenção de hospedar ali a família. Mas, chegando aos juazeiros, encontrou os meninos adormecidos e não quis acordá-los. Foi apanhar gravetos, trouxe do chiqueiro das cabras uma braçada de madeira meio roída pelo cupim, arrancou touceiras de macambira, arrumou tudo para a fogueira.Nesse ponto Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as ventas, sentiu cheiro de preás, farejou um minuto, localizou-os no morro próximo e saiu correndo.



Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se uma sombra passava por cima do monte. Tocou o braço da mulher, apontou o céu, ficaram os dois algum tempo agüentando a claridade do sol. Enxugaram as lagrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrivel, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente.



Entrava dia e saia dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidões do poente.



Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de Sinhá Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram a fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava.



Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.



Aquilo era caca bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com segurança, esquecendo as rachaduras que lhe estragavam os dedos e os calcanhares.



Sinhá Vitória remexeu no baú, os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer um espeto. Baleia, o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro.



Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou que a água marejasse e, debruçando-se no chão, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo. Uma, duas, três, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no céu. O poente cobria-se de cirros e uma alegria doida enchia o coração de Fabiano.



Pensou na família, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer não se diferenciava muito da bolandeira de seu Tomás. Agora, deitado, apertava a barriga e batia os dentes. Que fim teria levado a bolandeira de seu Tomas?



Olhou o céu de novo. Os cirros acumulavam-se, a lua surgiu, grande e branca. Certamente ia chover.



Seu Tomás fugira também, com a seca, a bolandeira estava parada. E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Não sabia porque, mas era. Uma, duas, três, havia mais de cinco estrelas no céu. A lua estava cercada de um halo cor de leite. Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, Sinhá Vitória vestiria saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a caatinga ficaria toda verde.



Lembrou-se dos filhos, da mulher e da cachorra, que estavam lá em cima, debaixo de um juazeiro, com sede. Lembrou-se do preá morto. Encheu a cuia, ergueu-se, afastou-se, lento, para não derramar a água salobra. Subiu a ladeira. A aragem morna acudia os xiquexiques e os mandacarus. Uma palpitação nova. Sentiu um arrepio na catinga, uma ressurreição de garranchos e folhas secas.



Chegou. Pos a cuia no chão, escorou-a com pedras, matou a sede da família. Em seguida acocorou-se, remexeu o aió, tirou o fuzil, acendeu as raízes de macambira, soprou-as, inchando as bochechas cavadas. Uma labareda tremeu, elevou-se, tingiu-lhe o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis. Minutos depois o preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim.



Eram todos felizes. Sinhá Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de Sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de Sinhá Vitória engrossariam, a roupa encarnada de Sinhá Vitória provocaria a inveja das outras caboclas.



A lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram esmorecendo naquela brancura que enchia a noite. Uma, duas, três, agora havia poucas estrelas no céu. Ali perto a nuvem escurecia o morro.



A fazenda renasceria - e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo. Os trocos minguados ajuntavam-se no chão: a espingarda de pederneira, o aió, a cuia de água o baú de folha pintada. A fogueira estalava. O preá chiava em cima das brasas.Uma ressurreição. As cores da saúde voltariam a cara triste de Sinhá Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A catinga ficaria verde.



Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir.



( RAMOS, Graciliano. Vidas secas – 87ª Ed. – Rio,São Paulo: Record, 2002, p. 9-16. )

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