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A Adoração dos Magos, de Giotto de Bordonni (1304-06) Afresco, 200 x 185 cm; Cappella Scrovegni, Pádua. |
EU ACREDITO EM DEUS...
aos mestres: José Jerônimo de Moraes, Hilton Valeriano,
Jessé de Almeida Primo, Olavo de Carvalho e Elpídio Fonseca.
Este homem, este corpo, estes ossos, esta carne, esta pele, estes olhos,
este eu, e não outro, é o que há de morrer? Sim. Mas reviver e ressuscitar à
imortalidade. Mortal até ao pó, mas depois do pó, imortal. Quando considero na
vida que se usa, acho que nem vivemos como mortais, nem vivemos como imortais.
Não vivemos como mortais, porque tratamos das coisas desta vida, como se esta
vida fora eterna. Não vivemos como imortais, porque nos esquecemos tanto da
vida eterna, como se não houvera tal vida.
PE. ANTÔNIO VIEIRA
Sim, eu acredito em
Deus, e porque faria diferente? Com Deus existindo, já dizia um Riobaldo maduro
e ponderado, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se
resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é
burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar
– é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um
pouquinho, pois, no fim, dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem
licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa
encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e
braços...
Sempre que me deparo
com um ateu – principalmente os mais exaltados em seus auto-enganos –, não me
acode imagem mais elucidativa do que aquela utilizada por aquele
jagunço-filósofo do livro do Guimarães Rosa: “meninos sem pernas e braços”.
Pouco me importa se pareço radical, mas é só assim que consigo considerar o
ateísmo: meninos desmembrados tentando rir. Para mim, o ateísmo é meramente um
“problema de consciência”, muito mais que, necessariamente, uma formulação
racional; é um aspecto trágico da essência humana – e, nesse sentido, sua maior
tragédia –, fruto colhido diretamente da amargura, da culpa, da impossibilidade
de aceitação e do desespero; sintomas muito comuns desta estranha doença do
espírito que consiste em negar aquilo que nos completa, que nos livra de todos
os abismos, de toda dor e das impossibilidades que nos trazem o vazio.
De Robert Burton,
passando por Kierkegaard, e, culminando, em Constantin Noica e René Girard,
essa enfermidade, e todo desespero por ela causado, é um prenúncio da morte em
vida; uma mentira romantizada que faz com que os homens vivam, realmente, do
ilusório, ou seja, do desejo por aquilo que deseja seu semelhante; ou pior: de
desejar, no impossível, o inalcançável. Dessa forma, valeram-se, ao longo de
séculos, todo tipo de ideia a buscar, como princípio, a negação do fato de que
o homem é a mais excelsa das criaturas, o mais nobre de todos os seres. Negação
que não me causa nenhum espanto, pois a substituição do Criador por outro deus
menor e enganoso, a se valer das graças deste mesmo Criador desprezado, é o
ponto de partida de todo paganismo e de toda ideologia ateísta; até porque, a
visão grandiosa do homem não é fruto do Humanismo, ou do Iluminismo, muito
menos do Comunismo ou de qualquer outra ideologia de nosso mundinho
politicamente correto (se, realmente, existe algo de bom no Socialismo, por
exemplo, é porque foi furtado do pensamento cristão). Sobre Marx, por exemplo,
e seu legado, Eric Voegelin, em seu História das Idéias Políticas – com
a ajuda da tradução de meu amigo Elpídio Fonseca –, avisa-nos sobre
este apocalipse humano, ao afirmar que, “na raiz da ideia marxista, encontramos
a doença espiritual, a revolta gnóstica”, por mais que não se diga muito a seu
respeito; doença que mostra o que já observamos no caso de Comte e suas
características, que, a seu turno, pertencem ao padrão mais amplo da “doença
cientificista e anti-religiosa”. Para Voegelin, a alma de Marx está
demoniacamente fechada à realidade transcendental, não conseguindo se
desprender das dificuldades, retornando à liberdade do espírito e o ativismo
gnóstico, graças à sua impotência espiritual, é a única saída que lhe resta.
Advém daí, como afirmará Voegelin, a combinação característica de “impotência
espiritual com o desejo mundano de poder”, acarretando “in
a grandiose mysticism of Paracletic existence”. Eric Voegelin, então, sentencia: “and
again we see the conflict with reason, almost literally in the same form as in
Comte, in the dictatorial prohibition of metaphysical questions concerning the
matrix of the universe, questions that might disturb the magic creation of a
new world behind the prison walls of revolt”.
Marx, à maneira de Comte, não permite uma discussão racional de seus princípios – ou se é marxista
ou se se põe em silêncio. O que sobra disso tudo é a mera correlação entre
impotência espiritual e anti-racionalíssimo, ou, melhor dizendo, não se pode
negar Deus e conservar a razão. E o que eu concluo disso tudo? Ora, se não há
uma metafísica como Comte e Marx queriam que pensássemos, então, na há coisa
nenhuma, porque tudo que nos rodeia é metafísica antes de ser qualquer coisa. E
se há um Socialismo, um Antropocentrismo, ou coisa parecida, em sua verdade e
plenitude, estes só podem advir do fato de o homem aceitar-se como uma criação
do Divino, a mais poderosa obra de Deus, a maravilha entre as maravilhas da
Criação. E mesmo que sejamos pó, resquício de estrelas ou coisa semelhante,
como querem alguns, ainda assim somos “pó levantado” (como dissera Pe. Antônio
Vieira) da ansiedade de si mesmo e do desejo de retornar ao seu Princípio.
Negar tal coisa é transformar-se num autômato, em uma máquina ou um mero gorila morto
no Congo a quem idiotas sem esperança choram como se fossem por seus entes mais
queridos; é não dar sentido nenhum a sua vida; negar isso é negar a verdadeira
natureza humana, e, pela melancolia e pelo desespero, condenar-se, vivo, a um
inferno de incertezas através de um falso humo universalis,
que não possui outra função senão destruir o Criador pelo desmantelamento de
sua obra maior.
De Platão a Ortega y
Gasset, a genuína grandeza do homem é trabalhar para a construção de uma
sociedade justa, unida e vigorosa. Neste sentido, ninguém se entregou mais a
esta construção do que Cristo... e isso é facto. Ou, como poetizara
Bruno Tolentino, na voz de uma freira mal comportada:
O Cristo não é
um belo episódio
da história ou da fé:
nem um clavicórdio
nos dedos da luz,
nem um monocórdio
chamado da Cruz.
O crucificado
chamado Jesus
é o encontro marcado
entre a solidão
e o significado
do teu coração:
de um lado teu medo
teu ódio, teu não;
do outro o segredo
com seu cofre aberto,
onde teu degredo,
onde teu deserto,
vão morrer, mas vão
morrer muito perto
da ressurreição.
O resultado desta
entrega a que Jesus tanto se dedicou foi nada mais nada menos que o
Cristianismo (embora os não-cristãos sejam os que mais discordam disso, do mesmo modo que os não católicos são os que mais dão palpites sobre os dogmas da igreja ou sobre as palavras do Sumo Pontífice... C'est la vie!). As religiões sempre se puseram como o caminho dos homens rumo a
Deus, mas não o Cristianismo; e nisso reside toda a sua sofisticação e
superioridade ante todos os outros cultos: o Cristianismo, como defendera Hans
Urs von Balthasar, é “Deus pondo-se a caminho dos homens”. Só no Cristianismo é
que o homem tem a possibilidade de se tornar "coparticipante da Criação de Deus",
e isso se dá, justamente, não nos atos de grandiosidade dos homens, mas se
principia quando o Cristo, livre de milagres ou oratórias, oferece sua própria
carne para que essa se uma à carne de cada homem; seu sangue para que este se
una ao sangue de todos nós; seu Espírito para que sejamos um só espírito. A grandiosidade máxima de Deus está aí, fazer-se pequeno ao ponto de chegar ao
nosso nível, de querer nossa colaboração nos rumos e destinos do Universo; é
esse “o maior dos Milagres”, como dissera Nicolae Steinhardt, em seu O
Diário da Felicidade.
Não é à toa que, de
todos os credos existentes, nenhum é mais atacado do que o Cristianismo, porque
nele reside o fim a que se destinam todas as possibilidades de grandeza do
homem; e o homem não busca a plenitude no Cristianismo, ele a recebe, cuidando-a
para que esta não lhe escape. Por isso mesmo, na construção de um mundo sem
Deus, e, consequentemente, de virtudes frágeis, a rejeição deve ser feita à sua
Criação; na substituição de Deus pela natureza, como modelo de perfeição, na
negação do sentido da realidade histórica por meio do homem, que perde seu
papel de sujeito do processo civilizacional, no descrédito do Cristianismo
dentro do próprio Cristianismo, seja por “padres vermelhos” ou pedófilos de
posse de batinas; em tudo isso reside a forma mais eficaz, usada tanto pelos
iluministas, bem como pelos “comunas”, para matar Deus dentro do homem, que é a
justificação e a racionalização do mal, do assassinato em nome da ideia: eis a
blasfêmia máxima que se ramificou por quase três séculos e cresce até hoje.
E por que isso
acontece...?! Ora, é muito mais interessante a um mundo, digamos,“prático e
grosseiro”, que Deus não exista, porque, desta forma, a satisfação desmedida
das paixões mais frívolas e baixas se faz mais simples e eficaz. A questão aqui
vai além da formulação de uma incredulidade, pois não se trata disso; trata-se,
simplesmente, do desejo de não querer que Deus exista porque, desta maneira, é
mais cômodo esquecer a certeza de que Deus o condenará. É exatamente aqui que acredito ser o calcanhar de Aquiles de certas “minorias” que, ao se dizerem
menosprezadas e discriminadas pela Igreja, ou mesmo pelas palavras do Livro
Sagrado, chegam a assumir uma forte preocupação com os dogmas de uma religião
que sequer professam ou mesmo a criar denominações religiosas a corrigir tais
“falsas interpretações”, só para que suas consciências se sintam limpas, mas a
sujeira sempre continuará ali, a criar aberrações, à maneira de certos
indivíduos que preferem acreditar que certas condutas que eles mesmos escolheram
para si são condutas lícitas porque no fundo sabem que estão em profundo erro e, consequentemente, tomados de indescritível culpa, pois poeira debaixo do tapete
não é necessariamente uma limpeza decente. E é aqui, justamente quando levanto
a questão para esta falta de caráter, em nome de certas frivolidades, que me
recordo do personagem Camilo, do conto A Cartomante, de nosso
Machado de Assis, um racional de araque que, não querendo negar seus instintos, crendo que, desta forma, negaria sua própria natureza humana, procura
acreditar numa falta de fé que, convenientemente, ele julga ter, mas seu
ateísmo é tão artificial como a vida mesquinha que ele chama de sua e que lhe
parece tão verdadeira. Mas se não há imortalidade não há virtude; se não existem
o bem e o mal, então, tudo é lícito.
Não querendo
desvalorizar o nosso Bruxo do Cosme Velho, mas, apesar do bom exemplo retirado
de A Cartomante, nenhum literato, em sua época, forneceu mais
informações sobre as ideias destrutivas que fechariam o século XIX (e
alimentariam o século XX), do que Dostoievsky. Ele, que se considerava “um
filho da dúvida e da descrença”, mostrou a todos que quiserem ver, através de
uma obra, até hoje, sem pares ou adversários à altura, que nada é mais belo,
profundo e perfeito do que o Cristo. Para ele, a virtude é impossível sem a fé,
e a existência de Deus se demonstra pelo simples fato de que a permissividade
não é absoluta. Um bom exemplo disso está em um de seus personagens mais
famosos e antagônicos: Rascolnikov. Como um dos primeiros símbolos de uma
figura que o mundo contemporâneo aprendeu a temer na vida real e admirar no
mundo da ficção, a do psicopata, o assassino de Crime e Castigo é o
melhor exemplo que se conhece de um homem cingido entre a sua consciência e
suas convicções filosóficas – um dos temas, mais caros, aliás, à obra
dostoievskyana. Suas elucubrações sobre os limites para a moral nada mais são
do que a busca incessante para dar razões ao assassinato em nome das ideias –
algo muito comum ao Fascismo, ao Nazismo e ao Comunismo, diga-se. Essas
“razões”, que Rascolnikov julga possuir, no entanto, só encontram força num
mundo e numa realidade desprovidos da Divindade. Quando confrontados com a
inabalável fé de uma Sônia Marmeladov – e, segundo Steinhardt, "nada nos
confronta mais com a realidade do que a fé" – essas razões sequer se formulam.
Immanuel Kant que me
perdoe, mas a nobreza moral é impossível sem Deus. Como a história de Crime
e Castigo nos mostra, toda noção de nobreza se esfacela sem a noção da
imortalidade; a moral, em um mundo niilista, é um elefante branco.
E, mesmo que alguém seja criado em um ambiente desprovido de fé, ainda assim,
ela permeia o mundo, faz-se incrustada em nossa cultura; para falar bem a
verdade: crianças boas, por exemplo, não o são por acaso – e, de certa forma, o
medo do Inferno pode ser um método pedagógico interessante e muito eficaz. E
se, ainda assim, a crença no Eterno, por alguma razão, não garanta, realmente,
a integridade moral de ninguém, o que fazer sem essa crença...? Basta qualquer
um dar uma olhada em nosso mundo e ver os caminhos pelos quais ele está
trilhando agora. Num mundo cada vez mais desvalorizador das coisas para além
dele, em nome de um falso racionalismo, ou, pior ainda, mergulhado na mentira
do relativismo, seria muita ousadia de minha parte defender tais ideias, no
entanto, não pensar assim, acredito, é-me um retrocesso e, se tudo é permitido,
como pensam e querem muitos, que diferença há entre nós e os macacos que
disputam galhos de árvores na floresta? Se não podemos ser mais que chimpanzés,
golfinhos ou qualquer outro bicho nós estamos tanto contra Deus, bem como
contra Darwin. E é aqui, inclusive, que me recordo de Sto. Agostinho, que diz
que o mal pode não existir como coisa, todavia, é o resultado
daquilo que fica quando o bem não floresce. O próprio conceito
de pecado é isso: quando aquilo que se esperou de alguém ou de
algo não se completa. É triste pensar (e pior ainda ter a certeza) que o mundo,
por negar-se ao mistério, está em pecado: é apenas a sombra daquilo que um dia
se quis belo... Se não, olhem, por exemplo, para os caminhos que a arte e a
literatura (até porque falar de arte e literatura são o propósito deste Blog existir, ainda) têm percorrido neste último fim de século.
Ora, toda arte é
necessidade de transbordamento. O poeta, por exemplo, é alguém que tem a missão de
não se conter, é um possuidor daquela “sã loucura” comum aos santos e aos
educadores por vocação: de fazer aquilo que deve ser feito; que se espera que
seja feito, mas poucos, verdadeiramente, se propõem a fazê-lo. Sentimental ou
racional, erudita ou popular, a arte é demonstração. Para a arte, mostrar é
muito mais que argumentar: esta lógica sempre foi mais forte no mundo dos
artistas, por isso que, em se tratando de arte, os fatos reais importam menos
que a qualidade de como são contados. Mais que a verdade, para a arte, importa
aquela subjetividade que existe em tudo que é verdadeiro em um nível mais
profundo, seus valores e posições existenciais mais básicas. Não é à toa que a
transmissão de um acontecimento, feito por meio de elementos artísticos, é
muito mais forte e eficaz; quando não, mais verdadeiro. E se mostrar é mais
importante que argumentar, não é de se estranhar que um espectador, por menos
conhecedor que seja da história da arte ou dos mecanismos mais essenciais da
crítica estética, passe mais tempo se deslumbrando sobre a imagem de Guerra
e Paz, de Portinari, do que se convencendo de que há algum conteúdo ou
valor estético nos herdeiros de Marcel Duchamp, por mais que mil livros ou
“sabichões de cátedra” digam o contrário.
Não é de se condenar
o modo como o público, por mais bem intencionado que seja e possa ir a uma
bienal de arte contemporânea, relaciona-se com as obras ali expostas. Se o
espectador, bem ou mal intencionado, estiver diante de uma exposição de arte
renascentista, por exemplo, essa relação seria bem menos problemática, pois a
fruição de seu entendimento dar-se-ia, naturalmente, melhor do que diante de
uma exposição de Hélio Oiticica e, neste caso, o conhecimento profundo acerca
da estética desse período não é condição de possibilidade para a apreciação das
obras, mas a fruição decorrente de uma experiência estética que envolve pura
contemplação... essa, sim, é importante. Isso porque os códigos que a envolvem
tanto a sua produção quanto a sua avaliação são partilhados por todos os
membros de uma determinada cultura, por envolverem, advertidamente ou não, um
decoro ou cânones estéticos consagrados por uma tradição...
E o que isso tem que ver
com o assunto de que há pouco falava...? Tudo. Porque, levando-se em conta tudo
que disse sobre a arte como necessidade de transbordamento, e da importância
daquela subjetividade que existe em tudo que é verdadeiro em um nível mais
profundo, entre outras coisas, o elemento primordial da arte é Deus, pois, em
princípio, foi para o Mistério e para o Divino que toda arte se fez; nela
se encerram e se praticam, ainda, os elementos mais fundamentais de todas as
religiões. Toda arte precisa de Deus, nem que seja para negá-lo. Essa
necessidade pode ser vista tanto em um católico militante, como nestes Sonetos
Gêmeos, de Jorge de Lima:
Se me vires inúmero, através
deste poema, entre as coisas e as criaturas,
como se eu próprio fosse o que outrem é,
dissipado nas páginas impuras,
arrebatado pelo próprio poema,
possesso, surpreendido, fragmentado,
travestido de herói ou de réu, em
quase todos os versos degredado,
negarás, meu irmão, a alma que vive
perdida na ansiedade de si mesma
sonhando a paz, querendo a paz; a paz
mas nas tormentas em que a paz revive
mas nos tormentos em que a paz se lesma
e se intumesce. Eu enlouqueço! Mas
até na álgida paz da insânia Deus
me busca para ser o seu convulsivo
a amado filho em torno de quem crês
morar a paz que Ele destina viva
a todo aquele que lhe faz perguntas.
Eis as respostas nessas vozes gêmeas,
deblaterando sobre o teu defunto,
sobre teu louco, sobre o teu recente
corpo hoje inda nascido e já julgado
e já descido, e já movido nesses
campos da morte, sob os passos, pássaros,
aos ventos indo, sob as noites gastas,
passos sobre as caliças, sob os gessos,
sob as bocas sem choro, em seus nadas.
Na Oração de
um agnóstico, tal Alberto da Cunha Melo:
Senhor, nesta manhã
de outubro,
ainda com o jeito de quem ia
reiniciar longa viagem,
meu poema chegou ao fim.
Agora todo meu trabalho
é procurar uma palavra
que te agradeça humildemente
todas as outras que me deste.
Entretanto, nem mesmo isso,
posso sozinho conseguir:
Dá-me, Senhor, essa palavra,
antes que chegue o último verso.
Que ela se espalhe como as brisas
dentro das minas, de repente,
e una-se sólida na hora
em que apertar a tua mão.
Quero morrer, quero alcançá-la,
e já começo a persegui-la
como se fosse uma serpente
que fugisse com minha morte.
ou mesmo na
perplexidade de um ateu convicto, qual Carlos Drummond de Andrade, que, à casa de
Deus, exclama:
Senhor, não mereço isto.
Não creio em vós para vos amar.
Trouxeste-me a São Francisco
e me fazeis vosso escravo.
Não entrarei, senhor, no templo,
seu frontispício me basta.
Vossas flores e querubins
são matéria de muito amar.
Mas entro e, senhor, me perco
na rósea nave triunfal.
Por que tanto baixar o céu?
por que esta nova cilada?
Senhor, os púlpitos mudos
entretanto me sorriem.
Mais do que vossa igreja, esta
sabe a voz de me embalar.
Perdão, Senhor, por não amar-vos.
Qualquer pessoa com o
mínimo de bom senso sabe que perder esse elemento mágico é o primeiro passo em
direção àquela decadência que se iniciou com o Renascimento e culminará com o
vazio deixado pela herança de Andy Wahrol e seus seguidores. O pluralismo radical que toda arte
possui faz com que o homem encontre-se com as suas necessidades espirituais,
principalmente as da Beleza e as do Mistério – como foi desde o princípio –,
mas quando o homem, desesperado pelo ateísmo, se vê num mundo de desespero e
vazio, a arte não pode mais alcançá-lo e, com o tempo, também se destruirá,
pois o universo criado pela arte é proporcional às nossas capacidades, por
nascer de dentro delas. Num mundo onde a Beleza perdeu seu verdadeiro sentido,
e nada se mostra para além da decadência, o que acham que a arte pode, de
verdade, nos mostrar, além de uma lata de sopa ou de um rosto de mulher feito
de lixo?! Quando algo
verdadeiramente artístico não floresce, só nos resta a rejeição daquilo que um
dia se quis belo – Viva a Sto. Agostinho e toda a sua clareza... E, se ainda me
for permitido usar as palavras de outro, faço minhas as observações que meu
amigo Elpídio Fonseca fez-me certa vez em ocasião da elaboração deste texto: “Algures
Voegelin diz que a existência de Deus não é uma questão metafísica, mas é pré-metafísica,
bastando, para reconhecê-la olhar para o mundo exterior e olhar para o passado
e fazer as seguintes perguntas: este mundo aí fora, não fui eu que o criei,
pois ele já existia antes de eu existir e continuará a existir mesmo depois de
minha morte. Quem criou o mundo exterior? É um Mistério. Quanto a mim mesmo,
tampouco fui eu que me criei, quem me criou foram meus pais, mas e quem criou
meus pais? Meus avós. E meus avós? Meus bisavós? E meus bisavós? Meus trisavós,
mas e quem criou o primeiro homem? Um Mistério. Esse, segundo Voegelin, é o
mistério da existência, e chamemos a isso, Mistério, ou Deus, dá no mesmo. Não
sabemos O que seja isso. Esse mistério
é Deus”.
Diferentemente do que
pensavam os iluministas do século XVIII, e os inúmeros herdeiros de suas ideias
sem paz e sem raízes – todos empenhados em satirizar a religião e fazendo com
que muitos pensassem que crer em Deus não pertença às discussões racionais –,
ao mesmo tempo em que eles se entregavam a um mundo de aparências e sem
alicerces, nada nos abre mais possibilidades do que a crença, nada nos dá mais
resoluções do que a fé; sem Deus só existe acaso, todavia, não se pode contar
com o acaso, pois o acaso não se explica, nem se faz crer. Sem Deus a vida é
presa, aleijada, burra e sem estética. Desraigados da existência e da realidade
em suas camadas mais profundas, os ateus são como aqueles “meninos sem pernas e
braços” de que fala o protagonista de Grande Sertão: Veredas.
Empenhados na formulação de um mundo onde a Eternidade não existe, o ateísmo –
e os pensadores aos seus serviços –, na vida ou na arte, nada consegue além de
criar anomalias, como aqueles meninos mutilados que se "acreditam" felizes.
Candeias/Feira de Santana, inverno de 2012.