quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

VAMOS FALAR SOBRE STAR WARS...?

Numa galáxia carcomida por uma guerra civil milenar e de proporções igualmente galácticas, é impossível aos seus habitantes a neutralidade; cada um é empurrado, de uma forma ou de outra, a escolher um “lado” e por ele está disposto até mesmo a morrer.




VAMOS FALAR SOBRE STAR WARS?








Não há nenhuma novidade em saber que Star Wars: o despertar da Força, sétimo episódio de uma franquia de sucesso há quase quarenta anos, bateria todos os recordes comerciais que qualquer produção cinematográfica hollywoodiana se pretenderia. Mesmo para os padrões monumentais de hoje, onde as cifras acima de nove zeros já se tornaram comuns, para se falar de cinema de entretenimento, Star Wars impressiona. Porém, há muito mais nesse universo fabuloso do que meros quase U$ 3.000.000.000,00 de bilheteria, nas primeiras duas semanas de exibição (e olhem que, enquanto estou a escrever este artigo, o filme ainda nem chegou ao Oriente), pois tudo em Star Wars: o despertar da Força, assim como todo o universo onde ele se insere, é, de fato, grandioso e converge para si muito mais do que cifras.

É dificílimo dizer exatamente quais as razões que fazem tantas pessoas – estou falando de milhões, espalhadas por todo o nosso planeta – comportarem-se com verdadeira devoção diante de uma produção cinematográfica, e, mais ainda, representar uma importância real em suas vidas. Eu mesmo, um desses milhões que cresceram fantasiando um universo onde a tecnologia e poder mágico andam de mãos dadas, testemunhei o choro de fãs das mais diferentes idades, a emoção da surpresa em cada elemento referente aos primeiros filmes e a satisfação de ter tanto apego recompensado depois de tantos anos e algumas (também) grandiosas decepções. A verdade é que tudo em Star Wars: o despertar da Força nos transporta a um universo real e de grandezas igualmente reais (e mais uma vez não falo só de cifras) desde o momento em que um enorme cruzador desliza em meio ao espaço, apagando a imagem longínqua do planeta Jakku, e, por alguns segundos, quase esquecemos a infinita imensidão por onde ele passeia, para logo depois assistirmos boquiabertos ao apodrecimento de naves semelhantes que jazem nas planícies áridas de um planeta que há alguns segundos parecia ser engolido por elas. Mas esses jogos de proporções não acabam por aí, pois essas naves são devolvidas às suas grandezas quando diante delas vemos a imagem solitária e pequenina de Rey, uma catadora de sucata que se arrisca no imenso interior dessas naves em troca de comida. E é a partir daí que vemos outro lado maravilhoso e igualmente imenso de Star Wars que é o dos dramas humanos.

É difícil imaginar que, em uma história com proporções tão gigantescas – toda a geografia das batalhas não se prende simplesmente a um planeta, o que já seria demais para nossa mente, mas a uma galáxia inteira –, foque-se basicamente em dramas pessoais, no encontro aparentemente ao acaso – aparentemente, repito – desses dramas, no entanto, é exatamente isso que acontece em Star Wars: o despertar da Força. Numa galáxia carcomida por uma guerra civil milenar e de proporções igualmente galácticas, é impossível aos seus habitantes a neutralidade; cada um é empurrado, de uma forma ou de outra, a escolher um “lado” e por ele está disposto até mesmo a morrer. Aliás, algo muito comum em momentos de crise política, senão, olhem aí para as Linhas do Tempo de seus Facebooks, sempre a favor ou contra os mandes e desmandes do PT, e verão que essas coisas não pertencem a uma galáxia muito, muito distante...

Por isso mesmo, a personagem de Maz Kanata, cuja voz é emprestada pela expressiva Lupita Nyong’o, deixa bem claro a Rey que só uma única guerra existe: “a do bem contra o mal”, e a melhor maneira de identificar um do outro é quando, em nome de um, as vontades do outro prevalecem. Vou explicar melhor: é o caso de Finn, o stormtrooper interpretado por John Boyega, que não aceita matar um grupo de camponeses inocentes em nome de “algo maior”. Esse gesto de não deixar que suas ideologias, muito menos suas ordens, fiquem acima do que é certo, faz-se tão simbólico quanto o fato de Finn ganhar um nome no lugar de um número. Em outras palavras, é quando escolhemos o bem, a verdade e a retidão, que deixamos realmente de sermos mais um para finalmente sermos alguém.
  
Essa busca para saber quem realmente se é, catalisa toda a inesperada amizade entre Ray e Finn. Ela é alguém que sabe o que quer à espera de uma chance de buscar; ele, alguém que toma iniciativa de mudar, para depois fugir. Ele tem a chance, e até a cria, mas não sabe ou não tem uma razão para lutar; Rey tem todas as razões e vontades, mas não tem nenhuma chance até que a oportunidade surge com a fuga de Finn. No fim das contas, ambos devem aceitar o seu papel em toda essa batalha e fazer valê-lo. Até mesmo o grande vilão da história, Kylo Ren (devidamente incorporado pelo californiano Adam Driver), neto de Darth Vader, vive a dor desses conflitos que uma alma atormentada precisa passar, da mesma forma que seu avô também passara. Esses conflitos, aliás, não são um luxo apenas dos neófitos da Força, o próprio Luke Skywalker (Mark Hamil) se exilou nos confins da galáxia por sentir-se culpado pela falha de seu aluno Kylo; Léia (Carrie Fischer) e Han Solo (Harrison Ford) não ficam atrás, e sofrem a dor pela separação e da perda de um filho. Nem mesmo o velho droid R2-D2 escapa de uma crise de bipolaridade. Todo se encontra na mais completa instabilidade, menos os lados da própria Força: o lado da “Luz” e o lado “Obscuro” (quem quiser que fale “Negro” e aguente as consequências).

É muito interessante essa analogia que Star Wars sempre fez com a política e, em  O despertar da Força, não foi diferente, e diria  até intensificado. Vejam, por exemplo, como o discurso do General Hux (Domhall Gleeson) lembra os discursos nazistas de Nuremberg, o teor moralista deste mesmo discurso nos remete ao Fascismo europeu e ao uso do povo, com o fim de recrutar em suas camadas mais pobres, os novos soldados da Nova Ordem, como ainda fazem os partidos comunistas de todo o mundo. A própria Nova Ordem tem o apelo ao "fundamentalismo teológico" comunista de que fala Vladimir Tismăneanu. Assim se faz o lado negro da Força: objetivo é tudo, seres no caminho não são nada. Essa é a atitude do militante comunista e deve ser a de um stormtrooper, bem como a qualquer membro da Nova Ordem, como Finn, mas ele sente e entende isso, desviando-se do caminho maléfico antes que sua alma se corrompa. Em outras palavras, Finn se nega a uma prática muito comum ao Comunismo que é a planificação do ser humano em suas mais diferentes esferas. O que Finn, numa atitude nobre, mas com certo ar picaresco, busca é restituir tudo que tem de valor e tudo que lhe confere alguma autoridade para si mesmo. Na prática a Nova Ordem é como um partido comunista, não muito diferente dos nossos PT, PSTU, PSol, PCdoB, etc., e, para o Comunismo, o Partido é tudo, pois ele é o instrumento insubstituível da História que, em determinado momento a furtará. Essa ideia de fundamentalismo religioso oriundo da política da nova Ordem é conflitante com a abnegação e fé dos verdadeiros Jidis, ou da religião de fato, que nada mais é do que o caminho que se escolhe para se chegar ao Divino, o que no caso de Star Wars é representado pela Força. Uma religião sem Deus, ou a figura Antropomórfica de Deus, como é o Budismo que serve de base à Ordem Jidi, mesmo assim uma religião e uma religião de verdade, moldada nos melhores exemplos das de nosso planeta. Àqueles que veem na ideia da Força como uma negação do religioso, a frase de Han Solo, aliás, vem bem ao caso: “eu também pensava que uma força que regia tudo e a todos era baboseira, mas, hoje, eu sei que não é”.

Mas quando tocamos em questões como mito e religiosidade, que são, sem sombra de dúvidas, os pilares principais do universo de Star Wars e o segredo, talvez, de boa parte de seu sucesso e longevidade, falamos do pouco que há de verdadeiramente ruim neste universo, que nada mais é do que uma alegoria, um simulacro de verdade que em algum momento se quis verdadeiro. O poder dos símbolos contidos no universo criado por Jorge Lucas há quase 40 anos, mitologia grega, cristianismo, budismo, códigos samurais, tornam a história fundamentada e muito bem estruturada. Entretanto, quando a representação de um símbolo é confundida com o próprio símbolo que ela representa, temos um problema terrível; é o caso de muitos nerds – essa palavra não é sinônimo de inteligência – que, ao invés de se utilizarem de Star Wars como porta de entrada para o mundo de símbolos e mitos que fundamentam as trilogias, confundem-na com esse próprio mundo de símbolos e mitos.  O próprio criador da coisa acabou passando pela mesma confusão pela qual passam os fãs de sua criação, quando se acreditou cineasta e atribuiu à sua cria valores que ela não tinha, fazendo-se cego para suas verdadeiras qualidades. O resultado foram os episódio I, II e III que todos conhecem, mas quase ninguém tem coragem ou estômago para falar a respeito, com exceção da Camille Paglia, que, aliás, acerta em muita coisa, mas só naquilo que, acredito, o Jorge Lucas acabou errando e, por isso mesmo, saiu bem feito. Em outras palavras, Star Wars é uma fábula, deve ser encarado como fábula e nada mais.

Mas quero falar de coisas boas, 2015 está chegando ao fim, então falemos de coisas agradáveis. Vão duas realmente maravilhosas deste filme. A primeira: a mão certeira de J. J. Abrams, alguém que, em um determinado momento, revitalizou Star Trek, e por isso mesmo, era o homem certo para recuperar a chama de Star Wars que se consumia em um passado de glória remoto, como o Esporte Clube Bahia, sendo motivo até de piada pelos fãs do outro blockbuster. Como um fã confesso e devoto, Abrams não deu a Star Wars mais efeitos especiais e criaturas exóticas e chatas – foda-se, Jar Jar Binks –, mas aquilo que um fã confesso e devoto realmente queria, a revitalização daqueles pilares que fazem de Star Wars o que Star Wars realmente é e significa, trazendo para este filme diálogos realmente dignos, um roteiro que tivesse pé e principalmente cabeça, uma concepção visual realmente ampla e condizente com todo aquele universo, além da inserção de novos personagens dignos, como o robozinho BB-8, uma versão mais ativa e igualmente simpática de Wall-E, que muito bem se coadunam com os antigos personagens, aqueles com os quais gerações inteiras cresceram um dia. A segunda: a inglesa Daisy Ridley, de apenas 23 aninhos, que dá vida a personagem Rey. Poucas vezes nessa ou em qualquer galáxia reunir-se-ão tantas qualidades em uma só atriz (e ainda mais em uma “iniciante”) como as reunidas em Ridley: talento, carisma, entrega, beleza, vitalidade... A forma com que ela se dedicou para estar nesse filme é admirável e, em certos momentos, é visível o olhar dela para o Harrison Ford que extrapolava a atuação; ela estava orgulhosa por estar ali, não só como atriz, mas como alguém que, no mínimo, sabe, como ela mesmo já confessara em outras oportunidades, a importância dessa história para tantos e tudo que ela significa. Por isso, não seria pretensão dizer que o roteiro da história parece fluir dela e não para ela, e que o papel que um Harrison Ford ou um Mark Hamil desempenham com tanta verdade, não tem nenhum outro motivo que não seja Daisy Ridley.

À maneira de sua criação mais famosa e até hoje mais controversa, a série Lost, J.J. Abrams se empenhou em criar pequenos mistérios para serem resolvidos ao longo da nova trama e fechando muitos outros. Uma coisa, no entanto, já é certa: Star Wars: o despertar da Força, traz mais combustível a uma chama que nunca se apagou de verdade e que agora brilha mais do que nunca, principalmente porque, para além de suas bases mitológicas, suas referências histórico-políticas e simulacros de realidade, a maior “força” de Star Wars está no poder moral de seus antigos e novos personagens e, queira Deus, àqueles a quem Star Wars tenha um real significado e com ele se possa aprender algo de verdadeiro... Que a Força esteja com todos nós.   




Candeias, 31 de dezembro de 2015.





quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

UM SONETO DE NATAL...


O "nascimento de Jesus"de Lorenzo Costa (1460 - 5 de Março de 1535); pintor italiano do Renascimento. Nasceu em Ferrara, mas se mudou para Bolonha quando tinha 20 anos. Neste quadro, chama atenção os detalhes da cidade ao fundo, a pose do bebê deitado sobre o braço e uma certa tristeza de José e do menino Jesus.




UM SONETO DE NATAL
(por Silvério Duque)





É este o meu amor e o meu lamento
tudo que fui e sou é só saudade
e a realidade é apenas doce invento
porque de sombras vive a claridade.

Jamais me transportei em pensamento
para além desta morte que me invade
e o que interessa a mim cada momento
se já não me apetece a Eternidade?

Mas nunca é mais que ideias os instantes
essa pobre ilusão chamada vida
cheia de sons e lumes incessantes.

 – Recordas-te de mim, grande Lusbel
para além desta memória dolorida
e da torre maldita de Babel.

A SUTILEZA DO SANGUE, DE ANDREA FERRAZ...

A Sutileza do Sangue, de Andre Gomes Ferraz, a ser lançado dia 16 de dezembro, em Floresta, Pernambuco.















A VERDADE, A FICCÃO E SUAS CRUEZAS

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O ROMANCE
A SUTILEZA DO SANGUE, DE ANDREA FERRAZ

ao amigo Emmanuel Mirdad

Dispersei-me na curva como a luz
do sol que agora estanca-se no outeiro
e assim também meu sonho se reduz
de encontro ao obstáculo primeiro.
CARLOS PENA FILHO






No artigo anterior escrevi a respeito do promissor trabalho de Emmanuel Mirdad, em seu livro O grito do mar na noite, em que ele estreia como contista. Nesse artigo, disse acreditar que uma boa leitura é aquela que nos dá um choque de realidade, que não traz um mero compromisso indistinto com a fantasia, mas constrói realidades. Também disse que um bom autor precisa sempre desnudar a verdade aos nossos olhos, sem necessariamente mascarar a beleza, e, ao invés disso, revelá-la em sua forma mais pura, oferecê-la de bom grado, e não fingir conhecê-la. Em tempo, admoestei a quem interessar pudesse da necessidade de nossa literatura voltar aos grandes temas universais, e à profundeza moral e psicológica que se fez viva em nossas Letras em um passado não tão distante.

Agora, imaginem a minha alegria ao saber que a escritora pernambucana, Andrea Gomes Ferraz, também estreante no mundo das Letras, aceitara o desafio – desafio que, primeiramente, ela propõe a si mesma – de dar à nossa literatura, principalmente à tão carecida prosa contemporânea, uma narrativa tão bela quanto crua, onde uma construção bem elaborada dos personagens se faz à medida que a autora mais e mais se aprofunda em suas almas, evitando a descrição banal e meramente decorativa, desviando-se, cada vez mais, da armadilha da trivialidade gratuita tão presente, hoje em dia, nas nossas narrativas.

Utilizando-se períodos curtos e mesmo capítulos que não ultrapassam uma linha, Andrea dá ao seu romance uma dinamicidade narrativa sem igual. Não se engane, porém, qualquer um que queira argumentar que tal característica é um sinônimo de despreparo ou falta de assunto, tudo o que está ali escrito, tudo que se conta da vida de personagens como Pai Manoel, Zé Grande ou Padrinho Pedro, seja em mais de três ou quatro laudas, ou numa frase que mal atravesse uma página, é demasiadamente importante, não se pode nem se deve tirar uma única palavra ou vírgula sem que toda uma estrutura demasiadamente bem armada não desmorone por inteira, pois o que esta sendo dito ali é tão somente o necessário, e o necessário é o que por si se basta; é assim que Andrea exercita o seu Ne quid nimis, compondo esses personagem à imagem e semelhança do mundo particular, no caso o interior de sua cidade natal, Floresta, no Sertão pernambucano, em que estão inseridos. A sutileza do sangue é a de uma viagem introspectiva, tanto de seus personagens, bem como de sua autora, que não teme mergulhar numa fonte autobiográfica para, a partir daí, construir uma realidade onde esteja, mais do que garantida, a catarse de seu leitor.

Segundo a própria Andrea Ferraz, com quem tive o prazer de conversar a respeito de seu primeiro rebento literário, este livro trata de “um enorme painel por onde o leitor poderá passear, ora seguindo em frente, ora olhando para os lados”. O tema central de seu livro não podia ser melhor, nem demasiadamente perigoso, para uma estreante; autobiografismos, pouco ou muito, podem levar a quem os escreve ao paraíso ou a mais completa ruína; mas se Dostoievsky e até mesmo o Bruxo do Cosme Velho, segundo alguns, deram-se a esse risco, porque uma autora, em seus primeiros passos, não poderia fazê-lo? Desta forma, o universo central de A sutileza do sangue é composto de três casas; as histórias interligam-se, gerações se misturam e culminam na história do pai da autora, a quem, segundo a própria Andrea, não fez concessões, e acrescenta: “Meu livro não é a biografia de meu pai. Apropriei-me de sua figura, mas o reescrevi através do personagem, utilizando-me de ficção e fatos reais”. Ainda segundo a escritora Andrea Ferraz, a ideia deste livro é “mostrar as máscaras humanas” para depois deixá-las cair, e, desta forma, contemplar os seres humanos “em seu estado mais cru”.

Os personagens de A sutileza do sangue têm uma relação muito forte com a natureza, o ambiente familiar, a casa onde moram, a roça em que trabalham; não se trata aqui de determinismo social, ambiental ou outros empréstimos da literatura de Graciliano Ramos; o caso aqui é de extensão. Cada casa ou objeto, cada roça plantada, cada sotaque, são extensões dos personagens, de suas psicologias, de seu modo de vida, de seu caráter e moral. Um fogão de lenha completa uma personalidade determinada, uma roça plantada é extensão de um capricho que vem da alma mais cuidadosa, a natureza acerba são reflexos de nada menos que a própria maneira de vê-la e dela tirar seu sustento. Tudo é um mesmo corpo, um mesmo universo, uma visão aparentemente primeva e utópica, mas para quem já viveu, e, principalmente, cresceu no sertão, sabe que isso não é coisa só de literatura. Sobrevive à natureza forte do sertão quem é forte como ela para, primeiramente, consegui entendê-la. Moldamos a natureza a partir do molde que ela faz de nós, ou como se diz no capítulo 21:

Quando era vivo, João Gomes botava o tabaqueiro na janela, o vento acalmava.


Andrea Gomes Ferraz, ao longo de todo o seu romance, vai compondo, de pincelada em pincelada, uma mais branda, outra mais intensa, mas todas com uma profusão de cores muito fortes e significativas, um painel cada vez mais preciso e, muitas vezes, amarescente da vida sertaneja, mas sem os excessos dramáticos e sociais, típicos de tal narrativa, nem com os exageros descritivos de uma natureza por vezes explorada até o desbotamento. Tudo que é pintado aqui é extremamente poético, e ganha forças graças a essa essência lírica que Andrea, também escritora dada aos versos, empresta à sua narrativa e às descrições de um ambiente que, como já disse, são extensões as almas que o permeiam. Não há, ao longo de todo o romance, um personagem mais forte e presente – e é ele, de certo, a figura verdadeiramente principal deste livro – do que o ambiente sertanejo onde tudo se passa: a caatinga, ora ossuda, ora esmeraldeada; o Pageú, às vezes seco, às vezes feroz e inundante; a cidade de Floresta e, acima de tudo, o Tempo, a fazer com que tudo se mova, se transforme, se prolongue ou que simplesmente se vá. É sobre a história dessa natureza e desse tempo que esse livro verdadeiramente parece se debruçar... A sensação que mais se deixa transparecer nesse livro é a da composição não de uma fotografia, mas de um quadro; mas não no sentido técnico e preciso de um Michelangelo, mas de uma profusão de cores que se desencadeiam freneticamente, não obstante, sem perder o foco da realidade, como num Renoir, quando não desbaratando de uma vez, como um Pollok...






Andrea Ferraz que é admiradora e discípula de Raimundo Carrero – algo do qual ela se enche muito de orgulho ao falar, e com toda razão –, tem, em seu mestre, sua principal influência, obviamente; além da leitura sempre refeita de Graciliano Ramos, mas uma influência bastante indireta – sentencia Andrea. Aliás, é Raimundo Carrero, que já possui um Jabuti em sua galeria de prêmios, o primeiro a falar a respeito da “estreia com maturidade” de sua prosélita; e ele fala:
O leitor encontrará neste livro uma autora que, embora estreante, apresenta forte maturidade. Estudiosa das técnicas narrativas, evitou escrever uma história meramente informativa, conduzindo os personagens com a habilidade de quem já conhece os segredos da ficção.

aproveita para acrescentar:

É certo que Andrea Ferraz detinha esta história, que afinal é traço de sua família, mas ela soube distinguir entre o narrativo e a verdade de forma que se trata de uma ficção com tudo aquilo que o leitor, ao lado da autora, pode inventar e criar.  

e arremata:

A pouco e pouco se perceberá que o texto é leve e pontual. Sedutor, no sentido de envolver a todos nós e de nos tornar cumplices de cada personagem e de cada situação. Creio que ao final da leitura a surpresa será enfim desvendada pela qualidade do texto e provocará, ainda, alguma inquietação e busca.
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Andrea é, sem sombra de dúvidas, uma escritora disciplinada, o que, por si só, é ótimo para ela, e para a literatura, de um modo geral. Afirma escrever desesperadamente, tanto pelo dia, bem como varando as madrugadas. Amar seus personagens antes de escrevê-los seria o segredo para a eficácia de sua narrativa e uma maneira muito pessoal de lidar com o peso de dar vida a seres humanos que, pelo menos durante a leitura das poucas centenas de páginas de seu primeiro livro, fixar-se-ão nas mentes e nos corações de seus leitores. Andrea afirma ter, na paixão por suas histórias e no envolvimento com o próprio ato de escrever, a verdadeira disciplina de sua escrita, “priorizando a arte antes da métrica”. Fosse isso verdade, diria que ninguém é perfeito, mas quando se lê o que Andrea escreve, notoriamente há um embate entre aquilo que o próprio autor pensa a respeito de seu trabalho e sua prática propriamente dita. Aliás, isso parece ser uma mania entre os escritores pernambucanos, basta-nos lembrar das afirmações de João Cabral de Melo Neto, ao teorizar sobre seu próprio trabalho, com aquilo que, de fato, era por ele posto em prática.

Embora se afirmando “vulcânica”, não há dúvidas de que estamos diante de uma escritora verdadeiramente preocupada com o melhor; que não pretende para si mesma, muito menos para a sua obra, menos que a perfeição, ou pelo menos chegar o mais próximo dela. Seu livro é resultado principalmente de trabalho, de compromisso, de seriedade; de quem se preocupa, antes de qualquer coisa, em re-a-li-zar. Se não, como explicar alguém que escreve algo assim:

Bateram na porta dele.

O bezerro atravessado não podia nascer. Estava morto de tanto o povo puxar. A mãe, uma vaca de raça, muito cara.

Amarraram de corda, deram anestesia local, cortaram a barriga e fizeram a operação. O veterinário era novo. Cláudio ensinava e ajudava.

Fez vários partos de bichos e de gente metendo o braço e fazendo versão, girando feto atravessado.

Pouca coisa espanta esse homem, mas se altera contando:

 – Antes do ladrão sair ele pegou o revólver, reagiu. Enquanto um praticava o assalto, outro dava cobertura lá fora. Bandidos caga-cassetes. Covardes. Eram dois, 

Adolfo um só.

Ou assim:

É certo que esses olhos não podem ver mais que a delicada trama que a vida nos manda criar. Labirintos. Teatros. Moscas mascaradas.

Em pleno sol, bebemos suor, rachamos os pés, comemos poeira. A flor da angústia se abriu.

Não existe mais a cancela e o riacho está seco.

Por causa do amor, nasci desta paisagem que agora conto.

Os gibões de couro cru contêm a gema.

A travessia tem roteiro, trata-se de uma escolha, uma colcha de retalhos costurada por dentro de nós. Por fora, a membrana ingrata se esgarça. A dor afirma o percurso. A dor e a poesia.


Isso é escrever um romance: simular a vida, rescrever a realidade; dar à certeza que temos das coisas e de nosso mundo, dúvidas que esclarecerão e acrescentarão. O romance sempre será a história das coisas que não foram e por isso mesmo tudo nele é possível, é verdadeiro, cabível de acontecer e passar adiante. Isso é escrever bem, é escrever claro; dar as palavras usos e brilhos. É fazer com que revelem a clareza que lhes é natural. Um bom escritor jamais pode sê-lo se não nos proporciona um embate, que, muitas vezes, começa na própria pessoa de quem escreve. E um bom escritor, também, pode dar ao assunto mais banal e mais árido o interesse que só a literatura pode criar. Ninguém lê um romance para conhecer o seu escritor; não importa que Andrea Araújo Gomes Ferraz tenha tirado as histórias de seu A sutileza do sangue de sua própria história ou de sua família, não é a história de Andrea que queremos encontrar e sim a nossa própria história, diria Antônio Lobo Antunes e eu tenho certeza que Andrea Ferraz sabe disso.


Por isso mesmo, acredito que A sutileza do sangue é um livro que não passará em silêncio e nem deve, pelo que diz, como diz e para quem está dizendo; é assim como todo livro que se respeite deve se apresentar. E digo mais, Andrea Ferraz vem para somar ao lado dos novíssimos nomes de nossa literatura, como Karleno Márcio Bocarro, Nívia Maria Vasconcellos, Lorena Miranda Cutlak, Patrice de Moraes, Wladimir Saldanha, João Filho; escritores jovens, mas muito mais conscientes, mais preparados, e muitíssimos mais talentosos do que toda uma geração decrépita e frustrada de escritores formados à sombra maléfica do socialismo da USP e que acredita – e ensina, o que é bem pior –, por exemplo, que a Semana de Arte Paulista, de 1922, representou um marco para nossa literatura, que Oswald de Andrade é um intelectual de extremo talento, que Paulo Leminsky é poeta, Chico Buarque romancista, que a Márcia Tiburi é filósofa, que nada para além do eixo Rio-São Paulo é digno de atenção ao menos que a esse eixo se renda, etc... Infelizmente, é esse tipo de pensamento que ainda prevalece em nossas escolas e Universidades; todavia, há toda uma geração a surgir com o pensamento, o talento e a prática literária completamente diferente. E são eles os responsáveis por desmontar o playground de múmias que constitui nossas academias, a começar por nossos críticos, completamente ignorantes da nova produção de qualidade de nossa literatura, ou fingindo-se ignorá-la, como disse o amigo Jessé de Almeida Primo, por saber que a ascensão dos novos nomes que estão a surgir, representaria o desmascaramento e o fim de tudo aquilo que eles são e pregam.      

Enfim, voltando à Andrea Ferraz, lembro-me que Ortega y Gasset já dizia que “é imoral pretender que uma coisa desejada se realize magicamente, simplesmente porque a desejamos... Só é moral o desejo acompanhado da severa vontade de prover os meios da sua execução”. Leiam A sutileza do sangue e vejam como Andrea Ferraz se empenhou em prover uma das melhores narrativas que uma estreante podia nos dar nesse tempo de tantas crises, menos para a boa literatura, pois a boa literatura é a crise... o que, à boa literatura, é a algo maravilhoso.







Candeias, solstício de verão, 2015.


terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A TRAGÉDIA NOSSA DE CADA DIA...



SBN:
978-85-81510-97-2
Edição:
Ano de publicação:
2015
Nº de Páginas:
172
Formato:
14x21cm
Idioma:
Português






A TRAGÉDIA NOSSA DE CADA DIA

ou BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE
O LIVRO O GRITO DO MAR NA NOITE
DE EMMANUEL MIRDAD


  à minha caríssima Nívia Maria Vasconcellos; 
porque é muito bom tê-la de volta.

Para mim, nobreza é sinônimo de vida esforçada, posta sempre a superar-se a si mesma, a transcender do que já é para o que se propõe como dever e exigência. Desta maneira, a vida nobre fica contraposta à vida vulgar e inerte, que, estaticamente, se reclui a si mesma, condenada à perpetua imanência, caso uma força exterior não a obrigue a sair de si. Daí que chamemos massa a este modo de ser homem – não tanto porque seja multitudinário, quanto porque é inerte.
JOSÉ ORTEGA Y GASSET






 
Nos bastidores da FLICA (Festa Literária Internacional de Cachoeira) deste ano, quando me preparava para, cheio de honra e – confesso – com certo desassossego, dividir uma mesa de debates com o grande crítico e amigo Rodrigo Gurgel, sou abordado pelo camarada, e também um dos produtores do evento, Emmanuel Mirdad, que me presenteia com seu último livro de contos, devidamente autografado, mas não sem algumas ressalvas quanto aos seus escritos e com a recomendação de que eu começasse a leitura de seu O grito do mar na noite (Via Litterarum, 2015) por aquele que, segundo o próprio autor, era sua realização preferida. Não me fiz de rogado e, obviamente, aceitei o presente e atendi à exortação, começando pelo conto Sol de abril.

Tomando como base a canção Assum Preto, de Luís Gonzaga e Humberto Teixeira, somos apresentados a uma sanfoneira “doca” que, há muito, deixara o sertão do Nordeste para tocar nas praças do Sul do Brasil... Emmanuel Mirdad constrói a história dessa mulher com um intricado jogo de narrativa psicológica e flashback, dando a este conto um dinamismo muito grande, ao tempo que nos transporta a um jogo imbricado de memórias e assim, cada vez que a história vem e vai, no tempo, somos preparados cada vez mais a um arremate cruel e surpreendente. Mas, embora tenha me agradado muito com esta história, não me contento só com a leitura de Sol de abril (bom sinal) e sigo com os outros contos do livro.

A história de Sol de abril, difere em muito de todas as outras histórias do livro, pois é a única passada longe de Salvador ou de qualquer cidade grande, de fato, e onde o ambiente citadino não se compõe quase como um personagem à parte, que vai conduzindo a história ao seu pesar e contentamento; características relevantes nos nove outros contos de O grito do mar na noite, e que constroem a quase total verossimilhança de tudo que neles se leem. Outrossim, está justamente nessa verossimilhança aquilo que eles possuem de mais incômodo, no melhor sentido desta palavra.    


Uma boa leitura, seja de poesia ou prosa, seja de uma música que se escuta ou um quadro que se observa, precisa incomodar; ser carregada na memória, digerida lentamente por ser algo em que nos reconheçamos e pela qual aprendemos.

Assim como acontece na poesia, a leitura de um conto, graças ao seu teor fotográfico, completa-se depois de lido o último parágrafo e fechado, mesmo que por alguns instantes, o livro. Um bom conto golpeia seu leitor que, ainda no tonteio do soco, procura a melhor posição para o contra-golpe, o revide... Por isso mesmo, e Emmanuel Mirdad que me perdoe, mas é preciso falar a respeito disso, o exagero de algumas descrições e informações, enfraquecem a narrativa – e isso, infelizmente, acontece várias vezes, durante todo O grito do mar na noite –, fazendo com que se perca muitas vezes o ritmo de sua narrativa, sem contar o desaforo que um bom leitor acaba sentindo, pois quando não lhe é oferecido um desafio de investigar em sua própria mente o quanto ele é capaz de compreender e se surpreender, no ato da leitura, o leitor é visto como um pacóvio.

Em resumo, entregar demais ao leitor é chamá-lo de bobalhão ou outorgar tal epíteto a si mesmo, enquanto autor. Por causa disso, determinados trechos mais enfadam do que realmente informam e fazem com que boas passagens, bem mais lúcidas e poéticas, percam sua beleza e razão, como, por exemplo:

Seu Humberto, o Beto, era cearense, assim como seu xará, O Teixeira, filho ilustre de Iguatu e parceiro mais célebre do velho Lua, o Rei do Baião, filho de Exu (PE)...


cuja resolução – perdoem-me a pretensão, apenas faço-a como exemplo de uma ideia e não uma tentativa de reescrever a história construída pelo autor – seria demasiadamente simples, e o leitor que se virasse para não se sentir subestimado:

[Seu Beto era cearense, como o seu xará, de Iguatu; parceiro mais célebre do velho Lua, o Rei do Baião...]

Mas, vejam como, antes, Emmanuel Mirdad conseguira um efeito justamente contrário, e, por isso mesmo, digno de exemplo, inclusive para ele:

De olho fechado, reza. A aparição mariana que lhe originou o nome pode até escutar, mas não deve responder. A paz brota do silêncio. E a cidade em flor começa o percurso dos fluidos de seu organismo. 


No final das contas, em qualquer narrativa que se respeite deve prevalecer aquilo que José Ortega y Gasset chamava de “A lei seca da arte”, ou seja, o conceito de Ne quid nimis, de “nada além do necessário”.  Um bom exemplo, e bom conselho a esse respeito, estão em Graciliano Ramos, quando o autor de São Bernardo e Vidas Secas compara o ofício da escrita ao trabalho das lavadeiras de sua terra natal:

Deve-se escrever da mesma maneira com que as lavadeiras lá de Alagoas fazem em seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

Voltando a Ortega y Gasset, ele nos admoesta de que tudo o que é supérfluo, “tudo aquilo que podemos suprimir sem alterar a essência é contrário à existência da beleza”. Isso vale para a poesia, para a prosa, para a música, pintura, dança; qualquer coisa que se chame de arte; qualquer trabalho que se queira bem feito; é algo que Emmanuel Mirdad, certamente, explorará muito mais daqui pra frente.

Uma coisa que um autor (e, mais ainda, todo pretenso autor) deve saber, é que toda história é uma história que se poderia viver; de que aquelas situações ali poderiam ser vividas por qualquer pessoa de qualquer época e lugar; que aquilo em que o leitor tanto se concentra seria passível de sua própria experiência. Por isso, a vivência de uma boa leitura, não é só garantia de catarse, mas da própria catarse se extrair aprendizado. Mesmo as fábulas mais burlescas trazem uma carga moral imensamente aplicável ao nosso mundo e disso tiram toda a sua força e pragmatismo. Desta forma, para o homem grego do século V a.C., encontrar-se com grandes criaturas marinhas, ou cair dos caprichos arbitrários de deuses nada complacentes, era algo tão aceitável quanto deparamo-nos com a violência nossa de cada dia, promovida por homens e mulheres de carne e osso, mas carregados de ódio e preconceitos tão cruéis quanto os jogos de poder de deuses e deusas, onde dados e cartas eram os próprios destinos humanos, como é o caso do conto O banquete, onde, numa referencia nada platônica, Emmanuel constrói uma boa alegoria da burrice violenta que surge das multidões, instigadas pelas mais diferentes situações, formando a tragédia nossa que vivemos a cada dia:

O ponto dela chegou. Desceu compenetrada ao smartphone, sem olhar para os lados nem perceber o ambiente. Azar. Ninguém na rua, e os poucos estabelecimentos em volta, nenhum aberto. [...] Três carecas se aproximaram por trás. O que tinha uma suástica tatuada no cocuruto exagerou a mão na pancada, e a gordinha apagou... [...] Sorte; evitou a tortura morrendo de primeira. [...] Dentro do carro, a sensação dos três era de dever cumprido. [...] O celular passou de mão em mão. Miseravelmente, um deles apagou as fotos da viagem que a gordinha fizera com a namorada para o litoral, como se pudesse excluir da existência a opção que tanto odiava.  


Entretanto, o que poderiam ter em comum entre a narrativa clássica e o conto contemporâneo, por exemplo? O aprimoramento de caráter e de intelectualidade que todo herói trágico, a duras custas, adquire ao fim de sua jornada de angústias, isso é o que deveria existir em ambos. Tal aperfeiçoamento nos é garantido na literatura clássica, mas sentimos cada vez mais sua inexistência nas narrativas mais contemporâneas, onde a construção aprofundada de um personagem não vai além de sua cansativa descrição, ou a mera trivialidade ocupando o lugar do verdadeiro drama. A catarse, assim, parece algo impossível, já que o leitor não tem onde se mirar de fato, nem fazer aquela viagem introspectiva, de onde suas paixões seriam verdadeiramente purgadas. Emmanuel Mirdad, a meu ver, consegue, de fato, livrar-se do trivial e se aprofundar, verdadeiramente, em três de suas narrativas: Chá de boldo, Sol de abril e Aqui se paga.

        Um homem que aceita a mulher caolha após ter sido violentada e, em seu ato, bem como na dor de sua companheira, ver revelar-se toda a beleza para além das meras aparências, ou um velho, outrora abandonado pela filha, dedica-se com todas as suas mirradas forças a cuidar de sua antiga algoz, não representam uma mera luta contra sentimentos pessoais, das quais estão cheíssimas as narrativas de nossa atual literatura, o que, no mínimo, seria sinônimo de um moralismo oco; ao contrário, vemos nesses exemplos a escolha por um bem maior e pelo real dever que lhe cabem como verdadeiro amante, como pai, como seres humanos. Isso seria, nada mais nada menos, a real diferença entre a verdadeira moral e uma caricatura ordinária de moralidade; entre a real profundeza que esperamos de um escritor e a mesmice banal de quem apenas observa o cotidiano sem nada dele tirar e, muitas vezes, sem lhe arranhar direito a própria casca.  

            Um elemento muito importante e inegável por qualquer um que leia os contos de Emmanuel Mirdad, mantido ao longo de todo o livro, é seu efeito surpresa; a radical mudança que situações extremas possuem em suas histórias, e o conto O banquete é, certamente, o que mais se utilizará desse recurso. É mesmo “de oito a oitenta”, como se diz no jargão popular daqui da Bahia, que mudanças radicais e inesperadas se dão em suas narrativas, proporcionando não só um efeito estético proveitoso, fazendo valer, entre tantas coisas, aquela situação em que o leitor sente-se abobado e se desfruta de tal sensação. O banquete lembra-nos o quanto que nossa vida em sociedade está intimamente relacionada com cada indivíduo, da teia frágil que cada um vem tecendo no caótico mundo urbano, de sistemas fechados nada previsíveis, mas isso também pode ser vivenciado em Sol de abril, Chá de boldo, Aqui se paga, Quase onze dias... A melhor parte desse efeito é quando um amor que um dia se mostrou puro, se conclui através de um estupro, quando a dor e a raiva de um abandono são devolvidas com o cuidado extremoso de um velho pai, ou uma palavra cruel tem, na morte, pagamento certeiro e sem troco, obrigando-nos a refletir, a repensar tudo a nossa volta; o que temos, o que nos falta e, principalmente, o que perdemos.

Outro elemento que julgo de uma importância muito grande neste livro de Mirdad é o registro da linguagem coloquial de Salvador, mas também de outros recônditos da Bahia. Isso me faz lembrar um grande problema que enfrento, como professor de Literatura, que é fazer com que meus alunos, com terríveis limitações vocabulares e demasiadamente presos às maravilhas de nosso mundo tecnológico, tão diferente dos séculos de Machado e Guimarães Rosa, gostem e se aprofundem em um romance ou conto dentro de um contexto que eles desconhecem e não querem se esforçar para conhecer. Talvez por isso, romances de entretenimento para adolescentes, façam tanto sucesso, pois estão carregados de coisas que fazem parte de seu contexto e cotidiano, como computadores, celulares, tabletes... Mesmo histórias que têm, como pano de fundo, a Antiguidade e a Idade Média são narradas como em um roteiro de filme ou ganham uma gama de movimentos e cores como em um vídeo game; isso quando Perseu não se utiliza de um iPhone para matar a Medusa, ao invés de um escudo polido. Em compensação, se estas histórias não possuem palavras estranhas como “coches” e “lojas de belchior”, elas perdem naquele aprofundamento moral e psicológico em que um Machado e um Dostoievsky se tornam mestres e, até hoje, não possuem, pares semelhantes.

Essa necessidade de uma língua “nossa” e mais “pura” é uma característica que remonta a ideais ainda de nossos primeiros românticos, e serve como um verdadeiro presente ao leitor, bem como aos registros linguísticos e históricos, é o caso de expressões que fazem com que o leitor, principalmente o baiano, identifique-se com tudo aquilo que se passa na história, justamente por ter algo em que se reconhecer dentro dela. É o caso de expressões como “se pique, vá!”, “Meu rei”, “Vamo cumê aguá”, “Man...”, “E esse Baêa!?”, um alongadíssimo “Aonde” (que, na Bahia, também significa: “Não!”)... e “Receba!”, expressão a qual, aliás, nomeia um de seus contos mais inusitados. Vejamos, um exemplo:

Começo da noite, a academia está cheia.

– Rapaz, ontem eu peguei quatro!

– É lascador, esse menino!

Um grupo de homens sarados, alguns bem jovens, reveza o uso de um aparelho puxador, para exercícios diversos. Compartilham seus músculos ao espelho comum. “Você tá grande, hein, pai”? Uns fazem tríceps, outros remada em pé, alguns na barra comum, que poucos ali conseguem fazer. Eu sou o que mais faço; lembranças da época do quartel.

– Tá ligado, a Bruninha? Passei a pica! Putinha, putinha...

Man, vai rolar o ensaio na segunda, vamo dêcê? Só tá rolando as gata, Serjão deu as ideia. E vamo cumê aguá na segunda também!

– Bora!

– E o Baêa?!

Futebol, buceta e cerveja. Apenas três assuntos e em poucos segundos os homens são iguais, melhores amigos a décadas, inseparáveis...


Também a descrição de lugares badalados e famosos de todos que moram ou visitam Salvador completam isso. Aliás, Emmanuel trabalha em seus contos uma tendência de narrativa basicamente urbana, a exceção de Sol de Abril, com todas as suas nuances e, muitas vezes, clichês bem encaixados. Entretanto, seu maior trunfo, nesse sentido, é mostrar uma Salvador cheia de ricos curtindo suas vidas da forma mais prazerosamente louca, porque podem e só por isso; mas carregados de um vazio tão extremo, que a única coisa que lhes sobra é, puramente, o dinheiro que têm. Ou como Mirdad descreveu, usando um de seus personagens:

É uma vida superficial e retilínea, imune à trágica consciência de que há diversos conflitos na existência humana. [...] Eram alguns ricos, bem inseridos e farristas da elite baiana que se encontravam de quando em quando, para algum deles pagar a noitada.
  

         Acredito que uma boa leitura é aquela que nos dá um choque de realidade... Engana-se redondamente quem pense que um autor de ficção tem um compromisso indistinto com a fantasia. Mais do que construir realidades, um bom autor, ou quem se pretenda a tal, precisa desnudar a realidade aos nossos olhos; não precisa mascarar nenhum tipo de beleza, mas revelá-la em sua forma mais pura; oferecer de bom grado, a verdade, ao invés de fingir-se um conhecedor de alguma verdade que seja. Se a vida, no fim, se revelar vã, devolvê-la-emos à sua completude através da literatura.

Tudo isso serve para mostrar o quanto que o conto é uma forma de narrativa muito perigosa. Uma composição literária onde o muito, imprescindivelmente, deve ser feito com o mínimo possível, e, por isso mesmo, seja talvez a forma de composição em prosa que, junto às fabulas modernas, mais se assemelhe com o gênero poético, a necessidade de verossimilhança e do aprofundamento dos fatos narrados são tão grandes quanto à capacidade de seu autor em surpreender tanto por aquilo que está a ser lido, bem como pela reflexão que dá lugar às palavras depois da conclusão da leitura.

Assim sendo, Emmanuel Mirdad deu um passo importante, bem mais do que exercendo o papel de poeta, mas que só se concluirá numa longa e compensadora jornada se ele tomar como modelo seus acertos, entendendo que o crescimento como autor não é diferente do crescimento como ser humano. Ambos se modelam através de nossa capacidade de irmos além dos esforços estritamente impostos como reação às necessidades que nos chegam de fora, mas do empreendimento espontâneo e luxuoso. Eis o verdadeiro sentido da nobreza. Emmanuel Midard conseguiu alguns momentos de nobreza em suas narrativas... Que o criador, nesse caso, espelhe-se em sua própria criação.

Em resumo, é um livro de um estreante, sendo assim, uma obra que nos deixa sempre esperançosos. Eu, particularmente, gostei muitíssimo de O grito do mar na noite, independentemente das questões técnicas abordadas, até porque, essas questões dizem mais aos críticos; há, em O grito do mar na noite, histórias bem construídas, verossímeis e, ironicamente, seu maior trunfo e defeitos se encontram em sua linguagem e na maneira de como ela é construída. Emmanuel, com este livro, está no caminho certo; e eu, assim como outros leitores, ávidos por um considerável melhoramento nos temas e nas formas (e em algumas influências) de nossa atual literatura, esperamos que, deste caminho, Emmanuel Mirdad não se desvie.









Cachoeira/Candeias, entre outubro e novembro de 2015. 


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