VAMOS
FALAR SOBRE STAR WARS?
Não há
nenhuma novidade em saber que Star Wars:
o despertar da Força, sétimo episódio de uma franquia de sucesso há quase
quarenta anos, bateria todos os recordes comerciais que qualquer produção
cinematográfica hollywoodiana se pretenderia. Mesmo para os padrões monumentais
de hoje, onde as cifras acima de nove zeros já se tornaram comuns, para se
falar de cinema de entretenimento, Star
Wars impressiona. Porém, há muito mais nesse universo fabuloso do que meros
quase U$ 3.000.000.000,00 de bilheteria, nas primeiras duas semanas de exibição
(e olhem que, enquanto estou a escrever este artigo, o filme ainda nem chegou
ao Oriente), pois tudo em Star Wars: o
despertar da Força, assim como todo o universo onde ele se insere, é, de
fato, grandioso e converge para si muito mais do que cifras.
É
dificílimo dizer exatamente quais as razões que fazem tantas pessoas – estou
falando de milhões, espalhadas por todo o nosso planeta – comportarem-se com
verdadeira devoção diante de uma produção cinematográfica, e, mais ainda,
representar uma importância real em suas vidas. Eu mesmo, um desses milhões que
cresceram fantasiando um universo onde a tecnologia e poder mágico andam de
mãos dadas, testemunhei o choro de fãs das mais diferentes idades, a emoção da
surpresa em cada elemento referente aos primeiros filmes e a satisfação de ter
tanto apego recompensado depois de tantos anos e algumas (também) grandiosas
decepções. A verdade é que tudo em Star
Wars: o despertar da Força nos transporta a um universo real e de grandezas
igualmente reais (e mais uma vez não falo só de cifras) desde o momento em que
um enorme cruzador desliza em meio ao espaço, apagando a imagem longínqua do
planeta Jakku, e, por alguns segundos, quase esquecemos a infinita imensidão
por onde ele passeia, para logo depois assistirmos boquiabertos ao
apodrecimento de naves semelhantes que jazem nas planícies áridas de um planeta
que há alguns segundos parecia ser engolido por elas. Mas esses jogos de
proporções não acabam por aí, pois essas naves são devolvidas às suas grandezas
quando diante delas vemos a imagem solitária e pequenina de Rey, uma catadora
de sucata que se arrisca no imenso interior dessas naves em troca de comida. E
é a partir daí que vemos outro lado maravilhoso e igualmente imenso de Star Wars que é o dos dramas humanos.
É
difícil imaginar que, em uma história com proporções tão gigantescas – toda a
geografia das batalhas não se prende simplesmente a um planeta, o que já seria
demais para nossa mente, mas a uma galáxia inteira –, foque-se basicamente em
dramas pessoais, no encontro aparentemente ao acaso – aparentemente, repito – desses
dramas, no entanto, é exatamente isso que acontece em Star Wars: o despertar da Força. Numa galáxia carcomida por uma
guerra civil milenar e de proporções igualmente galácticas, é impossível aos
seus habitantes a neutralidade; cada um é empurrado, de uma forma ou de outra,
a escolher um “lado” e por ele está disposto até mesmo a morrer. Aliás, algo
muito comum em momentos de crise política, senão, olhem aí para as Linhas do Tempo de seus Facebooks,
sempre a favor ou contra os mandes e desmandes do PT, e verão que essas coisas
não pertencem a uma galáxia muito, muito distante...
Por
isso mesmo, a personagem de Maz Kanata, cuja voz é emprestada pela expressiva
Lupita Nyong’o, deixa bem claro a Rey que só uma única guerra existe: “a do bem
contra o mal”, e a melhor maneira de identificar um do outro é quando, em nome
de um, as vontades do outro prevalecem. Vou explicar melhor: é o caso de Finn, o
stormtrooper interpretado por John
Boyega, que não aceita matar um grupo de camponeses inocentes em nome de “algo
maior”. Esse gesto de não deixar que suas ideologias, muito menos suas ordens,
fiquem acima do que é certo, faz-se tão simbólico quanto o fato de Finn ganhar
um nome no lugar de um número. Em outras palavras, é quando escolhemos o bem, a
verdade e a retidão, que deixamos realmente de sermos mais um para finalmente sermos
alguém.
Essa
busca para saber quem realmente se é,
catalisa toda a inesperada amizade entre Ray e Finn. Ela é alguém que sabe o
que quer à espera de uma chance de buscar; ele, alguém que toma iniciativa de
mudar, para depois fugir. Ele tem a chance, e até a cria, mas não sabe ou não
tem uma razão para lutar; Rey tem todas as razões e vontades, mas não tem
nenhuma chance até que a oportunidade surge com a fuga de Finn. No fim das
contas, ambos devem aceitar o seu papel em toda essa batalha e fazer valê-lo.
Até mesmo o grande vilão da história, Kylo Ren (devidamente incorporado pelo californiano
Adam Driver), neto de Darth Vader, vive a dor desses conflitos que uma alma
atormentada precisa passar, da mesma forma que seu avô também passara. Esses
conflitos, aliás, não são um luxo apenas dos neófitos da Força, o próprio Luke
Skywalker (Mark Hamil) se exilou nos confins da galáxia por sentir-se culpado
pela falha de seu aluno Kylo; Léia (Carrie Fischer) e Han Solo (Harrison Ford)
não ficam atrás, e sofrem a dor pela separação e da perda de um filho. Nem
mesmo o velho droid R2-D2 escapa de
uma crise de bipolaridade. Todo se encontra na mais completa instabilidade,
menos os lados da própria Força: o lado da “Luz” e o lado “Obscuro” (quem
quiser que fale “Negro” e aguente as consequências).
É muito interessante
essa analogia que Star Wars sempre
fez com a política e, em O despertar da Força, não foi diferente, e
diria até intensificado. Vejam, por
exemplo, como o discurso do General Hux (Domhall Gleeson) lembra os discursos
nazistas de Nuremberg, o teor moralista deste mesmo discurso nos remete ao
Fascismo europeu e ao uso do povo, com o fim de recrutar em suas camadas mais
pobres, os novos soldados da Nova Ordem, como ainda fazem os partidos
comunistas de todo o mundo. A própria Nova Ordem tem o apelo ao "fundamentalismo
teológico" comunista de que fala Vladimir Tismăneanu. Assim se faz o lado
negro da Força: objetivo é tudo, seres no caminho não são nada. Essa é a
atitude do militante comunista e deve ser a de um stormtrooper, bem como a qualquer membro da Nova Ordem, como Finn,
mas ele sente e entende isso, desviando-se do caminho maléfico antes que sua
alma se corrompa. Em outras palavras, Finn se nega a uma prática muito comum ao
Comunismo que é a planificação do ser humano em suas mais diferentes esferas. O
que Finn, numa atitude nobre, mas com certo ar picaresco, busca é restituir
tudo que tem de valor e tudo que lhe confere alguma autoridade para si mesmo. Na
prática a Nova Ordem é como um partido comunista, não muito diferente dos
nossos PT, PSTU, PSol, PCdoB, etc., e, para o Comunismo, o Partido é tudo, pois
ele é o instrumento insubstituível da História que, em determinado momento a
furtará. Essa ideia de fundamentalismo religioso oriundo da política da nova
Ordem é conflitante com a abnegação e fé dos verdadeiros Jidis, ou da religião
de fato, que nada mais é do que o caminho que se escolhe para se chegar ao Divino,
o que no caso de Star Wars é representado
pela Força. Uma religião sem Deus, ou a figura Antropomórfica de Deus, como
é o Budismo que serve de base à Ordem Jidi, mesmo assim uma religião e uma
religião de verdade, moldada nos melhores exemplos das de nosso planeta. Àqueles
que veem na ideia da Força como uma negação do religioso, a frase de Han Solo,
aliás, vem bem ao caso: “eu também pensava que uma força que regia tudo e a todos
era baboseira, mas, hoje, eu sei que não é”.
Mas quando tocamos em
questões como mito e religiosidade, que são, sem sombra de dúvidas, os pilares
principais do universo de Star Wars e
o segredo, talvez, de boa parte de seu sucesso e longevidade, falamos do pouco
que há de verdadeiramente ruim neste universo, que nada mais é do que uma
alegoria, um simulacro de verdade que em algum momento se quis verdadeiro. O
poder dos símbolos contidos no universo criado por Jorge Lucas há quase 40 anos,
mitologia grega, cristianismo, budismo, códigos samurais, tornam a história
fundamentada e muito bem estruturada. Entretanto, quando a representação de um símbolo
é confundida com o próprio símbolo que ela representa, temos um problema
terrível; é o caso de muitos nerds –
essa palavra não é sinônimo de inteligência – que, ao invés de se utilizarem de
Star Wars como porta de entrada para
o mundo de símbolos e mitos que fundamentam as trilogias, confundem-na com esse
próprio mundo de símbolos e mitos. O
próprio criador da coisa acabou passando pela mesma confusão pela qual passam
os fãs de sua criação, quando se acreditou cineasta e atribuiu à sua cria
valores que ela não tinha, fazendo-se cego para suas verdadeiras qualidades. O
resultado foram os episódio I, II e III que todos conhecem, mas quase ninguém
tem coragem ou estômago para falar a respeito, com exceção da Camille Paglia,
que, aliás, acerta em muita coisa, mas só naquilo que, acredito, o Jorge Lucas
acabou errando e, por isso mesmo, saiu bem feito. Em outras palavras, Star Wars é uma fábula, deve ser encarado
como fábula e nada mais.
Mas quero
falar de coisas boas, 2015 está chegando ao fim, então falemos de coisas
agradáveis. Vão duas realmente maravilhosas deste filme. A primeira: a mão
certeira de J. J. Abrams, alguém que, em um determinado momento, revitalizou Star Trek, e por isso mesmo, era o homem
certo para recuperar a chama de Star Wars
que se consumia em um passado de glória remoto, como o Esporte Clube Bahia,
sendo motivo até de piada pelos fãs do outro blockbuster. Como um fã confesso e devoto, Abrams não deu a Star Wars mais efeitos especiais e
criaturas exóticas e chatas – foda-se, Jar Jar Binks –, mas aquilo que um fã confesso
e devoto realmente queria, a revitalização daqueles pilares que fazem de Star Wars o que Star Wars realmente é e significa, trazendo para este filme diálogos
realmente dignos, um roteiro que tivesse pé e principalmente cabeça, uma
concepção visual realmente ampla e condizente com todo aquele universo, além da
inserção de novos personagens dignos, como o robozinho BB-8, uma versão mais
ativa e igualmente simpática de Wall-E, que muito bem se coadunam com os
antigos personagens, aqueles com os quais gerações inteiras cresceram um dia. A
segunda: a inglesa Daisy Ridley, de apenas 23 aninhos, que dá vida a personagem
Rey. Poucas vezes nessa ou em qualquer galáxia reunir-se-ão tantas qualidades
em uma só atriz (e ainda mais em uma “iniciante”) como as reunidas em Ridley:
talento, carisma, entrega, beleza, vitalidade... A forma com que ela se dedicou
para estar nesse filme é admirável e, em certos momentos, é visível o olhar
dela para o Harrison Ford que extrapolava a atuação; ela estava orgulhosa por
estar ali, não só como atriz, mas como alguém que, no mínimo, sabe, como ela
mesmo já confessara em outras oportunidades, a importância dessa história para tantos
e tudo que ela significa. Por isso, não seria pretensão dizer que o roteiro da
história parece fluir dela e não para ela, e que o papel que um Harrison Ford
ou um Mark Hamil desempenham com tanta verdade, não tem nenhum outro motivo que
não seja Daisy Ridley.
À
maneira de sua criação mais famosa e até hoje mais controversa, a série Lost, J.J. Abrams se empenhou em criar
pequenos mistérios para serem resolvidos ao longo da nova trama e fechando muitos
outros. Uma coisa, no entanto, já é certa: Star
Wars: o despertar da Força, traz mais
combustível a uma chama que nunca se apagou de verdade e que agora brilha mais
do que nunca, principalmente porque, para além de suas bases mitológicas, suas
referências histórico-políticas e simulacros de realidade, a maior “força” de Star Wars está no poder moral de seus
antigos e novos personagens e, queira Deus, àqueles a quem Star Wars tenha um real significado e com ele se possa aprender
algo de verdadeiro... Que a Força esteja com todos nós.
Candeias,
31 de dezembro de 2015.