1) Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?
Resposta: Creio que esse contato inicial com a poesia se deu mais cedo do que imaginei, por muito tempo, ao longo de minha vida, e por um caminho aparentemente sem muita relação com a arte das palavras. Deu-se pelo silêncio. É que sempre fui um garoto extremamente tímido, do tipo que filava os dias e as aulas, e freqüentava a vida apenas nas tardes de quarta ou quinta-feira, quando me isolava na laje da imensa casa de meus pais, para desenhar histórias em quadrinhos. Depois do silêncio veio a letra de música traduzida. Eu era assinante da revista Bizz, e vivia lendo as letras enquanto ouvia as bandas mais famosas do rock and roll americano. Tanto que meu primeiro “poema” parece a letra traduzida de uma canção americana, e eu até uso palavras do tipo “baby”, “garota”, e frases descritivas, cruas, tipicamente americanas. Eu tinha mais ou menos treze anos de idade, à época. Com o fim do meu primeiro namoro sério, escrevi, quase convulso, um texto desesperado, diretamente na máquina de datilografar – uma Remington portátil –, apinhado de erros de digitação que davam ao “poema” a aparência de um poema tipográfico mallarmeniano. Seguiu-se a essa experiência um longo feriado lírico, no qual vivi tormentas de toda ordem e muitos namoros, uma vida intensa ao lado de mulheres fortes que me ensinaram muito sobre poesia, na medida em que a mulher é de uma profundidade equivalente à mãe das artes. Retomei a poesia em forma de poemas aos dezoito ou dezenove anos, depois de sentir o desejo de ler poemas e não mais as letras traduzidas citadas acima. O que mais pode influenciar um poeta é outro poeta, e não a vida, como gostam alguns. E não afirmo que se trata de escrever imitando alguém, mas de fazer uso de uma mimese pouco aristotélica, pouco grega, que diz mais sobre o poder que tem a arte de incitar a arte, como uma espécie de parceria ou relação amistosa entre gêmeos. Um bom poeta é um digest, e certamente fez uso de outro poeta e outras leituras para a composição de sua obra, de modo a transmitir sua mensagem, séculos a fio, usando seu ethos transusbstanciado, um misto de natureza e cultura, vida e livros.
2) Como você vê a cena poética atual no Brasil?
Resposta: Quase não vejo, porque tenho me ocupado mais com prosa e dramaturgia, há alguns anos. E porque, também, quando leio poesia, ultimamente, busco um lugar seguro, leio os poetas que gosto ou que sei fazerem parte de uma linhagem que participa de minha orientação literária. Acresce ainda o fato de que jamais houve tanta poesia exposta no mundo, em função da internet, com seus tantos blogs repletos de poemas – em geral bilhetes suicidas e cartas de amor. De todo modo, preciso dizer que a poesia brasileira, a partir do pouco que li de poetas contemporâneos, vai muito mal. Vive-se ainda o restolho da poesia concreta, que, se já não era lá grande coisa, imagina em seus resíduos. Por outro lado, há aqueles que insistem em fazer poesia regional nordestina, tentando a sorte de um Cabral de Melo Neto. Há ainda a turma que anda fazendo uma poesia mais formal, numa retomada à geração de 45. E por fim, há a poesia “fácil” de uma turma sempre justificada por seu lirismo – nessa turma se encaixa perfeitamente o caso do poeta baiano Ruy Espinheira Filho, com sua mania de lembrança e seus poemas mornos, sem qualquer “susto” ou arrebatamento. Dos autores vivos mais velhos gosto muito de Alberto da Costa e Silva, Ledo Ivo – sempre esquecido por quem gosta de fazer afirmações bombásticas do tipo “o maior poeta vivo do Brasil, e sempre esbarram em Ferreira Gullar e Manoel de Barros; Ledo Vivo, ousaria o trocadilho, pedindo desculpas pelo fácil expediente –, Paulo Bomfim e o não tão velho Nelson Ascher. Gostaria de poder citar o Bruno Tolentino, encaixá-lo no time dos grandes poetas vivos brasileiros. Infelizmente, o secularismo não me permite tamanha metafísica. Pensando nos mais jovens, gosto do Alexei Bueno, algumas coisas do Ivan Junqueira, mais conhecido por seus ensaios e traduções do francês, e Rodrigo Petrônio, vencedor de alguns prêmios de poesia respeitados, autor de poemas com um elevado senso de forma e consideração pelo conteúdo. Recentemente o amigo Raimundo Bernardes, poeta, ensaísta e tradutor baiano, me apresentou a dois poetas interessantíssimos: Érico Nogueira e Marcos Catalão. Ainda estou em fase de leitura da obra desses dois nomes. Mas já é possível perceber que são talentosos e originais, pelo que li até o momento. Infelizmente, depois de toda uma tradição de bons poetas, a Bahia de Gregório, Castro Alves, Junqueira Freire, Arthur de Salles, Sosígenes Costa, dentre outros, vem produzindo poesia de péssima qualidade. Aposto, atualmente, na poesia séria, consistente e sem firulas do Silvério Duque, com seus sonetos maduros quanto aos temas escolhidos e quanto à reserva feita a fórmulas fáceis. Há o que se trabalhar, ainda, mas penso que Silvério vem construindo uma poesia que nos prepara para uma grande obra, mais cedo ou mais tarde. E há a poeta Fabrícia Miranda, que faz uma poesia com profundo conhecimento do idioma e da complexidade da condição humana, escrevendo poemas marcados pela excelência em conduzir o leitor, por meios os mais sofisticados, ao cerne das grandes questões humanas, sempre com uma linguagem muito elegante, refinadíssima. Seus poemas inéditos, alguns postados em seu blog, são impactantes pelos temas e pelo trato dado aos temas. Quero ainda voltar ao amigo Raimundo Bernardes. Esse jovem poeta e intelectual está por trás da produção poética de quase todos os jovens poetas com alguma qualidade, na Bahia e fora da Bahia. Ele vem funcionando como um mentor para diversos autores, que, de forma ingrata, não dão os devidos créditos. Sempre que houver um poeta baiano escrevendo bem, acredite, há a mão de Raimundo Bernardes na construção do pensamento e da poética desse autor. Raimundo é muito generoso com os iniciantes, e trabalha na coxia, sem alardes. Mas é preciso lembrar que Raimundo não é milagreiro: ele faz o que pode, e pode muito, e se a poesia baiana vai mal, provavelmente é porque não tem a disciplina necessária para ser um epígono do amigo supracitado. Em tempos de preguiça, decorrente das facilidades e da pouca leitura invectivadas pelo mundo virtual, não há qualquer surpresa quanto a isso.
3) Como você vê a relação entre tradição poética e movimentos de vanguarda? É possível o diálogo entre a tradição e as vanguardas, ou uma poesia de invenção deve ser necessariamente uma poesia de ruptura?
Resposta: O diálogo é feito de perguntas e respostas, não? Pois bem, a vanguarda é a pergunta. Destarte, digo que o diálogo entre a tradição e as vanguardas não só é possível como existente, desde a Antologia Grega e as sátiras de Horácio. Uma poesia de invenção é, antes de qualquer coisa, uma poesia de qualidade. Com ou sem ruptura. Não vejo qualquer problema em inventar a roda, desde que se faça alguma contribuição à evolução da roda. É possível torná-la menos circular, por exemplo. O Borges poeta é um grande exemplo de autor entre a tradição e a vanguarda, que “deu certo”. Mas que vanguarda? Aquela que ousa inovar dentro da tradição. Isso, para mim, é mais louvável – e mais difícil, embora a dificuldade não seja um critério válido para mim – que um poema visual, que atesta a insuficiência da palavra escrita, por imperícia do poeta visual, não da poesia. Borges descobriu um modo de fazer poesia original porque investiu no passado, aumentando-o para os tempos modernos. Borges voltou à origem, e parece ter começado tudo de novo a fim de construir sua teogonia e sua odisséia. E o resultado é uma poesia de Borges, mais ninguém.
4) Parece existir um preconceito proporcionado por posturas pseudo-vanguardistas em relação à poesia que se pratica no Nordeste, sobretudo no eixo Sudeste-Sul. Muitos poetas de grande talento são totalmente ou propositalmente ignorados em outras regiões do país. Estaríamos diante de uma espécie de monopólio cultural (revistas, jornais, editoras, prêmios literários) cuja principal característica seria a recusa de qualquer poesia com os pés na tradição, ou seja, a aceitação de uma poesia que somente apresentasse um viés “inovador”?
Resposta: Não gosto muito de reclamar leitores. Há muito o que fazer na vida. Ler poesia é apenas uma das atividades humanas, e não acho que seja a mais prazerosa, aliás. O Nordeste já deu muita literatura – e muita arte, de um modo geral –, e acredito que está cansado, esgotou-se, assim como os leitores cansaram de tanta produção nordestina. Os grandes poetas ignorados pelo eixo Sudeste-Sul são verdadeiras lendas em suas aldeias. E uma aldeia fica. Muito mais que um exemplar da revista Cult. O monopólio cultural não existe apenas no eixo Sudeste-Sul. Existe no Nordeste também, que recusa a poesia “moderninha” dos filhos de Leminski e netos de Oswald de Andrade. Infelizmente o Nordeste não tem a força midiática que o eixo já citado aqui, tem. Mas isso não é resultado de uma política literária, mas de uma política “agrária” que envolve questões muito mais urgentes que literatura.
5) Como você vê a importância dos movimentos Modernista de 22, e do Concretismo para o desenvolvimento da poesia brasileira?
Resposta: Para mim foram movimentos de suma importância para tornar clara a supremacia, quanto à qualidade literária, da literatura feita depois desses dois movimentos. Todo modernismo tem, como obrigação, ser relativista, ainda que pareça, sempre, intolerante, radical etc. O relativismo se dá porque, enquanto o modernismo acontece, milhões de voltas ao mundo em 80 dias vão acontecendo. A necessidade de criar um manifesto, um panfleto, é tão grande, que esquecem de fazer arte, e uma arte que ponha em prática a teoria, que seja fiel às idéias propaladas muito mais por vontade de entrar para a história como inventor de uma tendência do que para criar, de fato, uma ruptura necessária. Aliás, alguns autores apontam para a infidelidade de Oswald de Andrade em relação a suas idéias, seus manifestos, seus panfletos. Dentre esses autores estão dois poetas respeitáveis: Ferreira Gullar e o extinto Bruno Tolentino. Em suma, esses movimentos foram importantes para o desenvolvimento da poesia brasileira porque mostraram algumas ruas inóspitas e becos sem saída. Mostraram ao autor brasileiro o que não se deve cultivar, por falta de consistência dos objetivos e das supostas teorias. A poesia brasileira, depois desses movimentos, voltou a estacar impávida.
6) O crítico literário Antonio Candido afirmou que todo país possuiria um representante máximo de sua literatura, um escritor que encarnasse a identidade cultural de seu país, sobretudo no âmbito da linguagem, e citou como exemplos nomes como Cervantes na Espanha, Goethe na Alemanha, Dante na Itália, Borges na Argentina, Camões em Portugal. O mesmo crítico afirmou que o Brasil não possuiria essa figura máxima em sua literatura. Talvez dois nomes: Guimarães Rosa e Machado de Assis. Qual a sua opinião sobre essa questão? O que pensar de um nome como o padre Antonio Vieira?
Resposta: Antonio Candido precisa lembrar, e não é tarde ainda, que o Brasil tem apenas 500 anos de zumbi. Não há tradição com quinhentos anos de vida, se pensarmos no hinduísmo, por exemplo, e ainda no velho continente, a Europa, que é uma invenção dos gregos, aliás. O poeta Hesíodo foi o primeiro a empregar esse nome, e o célebre Heródoto, o “pai da História”, no século V a.C., escreveu: “Quanto à Europa, parece que não se sabe de onde veio seu nome e nem quem o deu”. Sabe-se ainda um pouco da lenda: uma princesa chamada Europa, filha do rei Agenor, é raptada por um touro gentil, mas voluntarioso. Ele a levou para uma grande ilha grega, Creta. O touro uniu-se à princesa, tornando-a “mãe de nobres filhos”. Mas há o exemplo de Borges na Argentina, usado pelo famoso crítico literário e sociólogo brasileiro. Acontece que a Argentina é uma Nova Europa, assim como houve e há a Nova Inglaterra nos Estados Unidos da Hawthorne, com a sua letra escarlate. Acredito em Machado de Assis, sem qualquer hesitação, como figura máxima da literatura feita no Brasil até o momento. Mas outros virão, embora os prognósticos não sejam favoráveis. Quanto ao padre Antonio Vieira, há que pensar em seus lusitanismos – afastando-o, portanto, do posto de representante máximo brasileiro –, e na imensa parte de sua obra voltada para uma função social, porquanto religiosa em terra de índios, que diminui consideravelmente o valor artístico necessário a todo autor que se queira representante de uma literatura, em qualquer país.