Os dramas dos personagens de Vicky Cristina Barcelona não decorrem de situações necessariamente
concretas, mas de suas próprias angústias interiores. |
A ÚLTIMA ÁRIA PARA UMA FLAUTA...
ou Vicky Cristina Barcelona
a releitura de um clássico
para Antônio Nahud Júnior
"Enquanto era
preparada a cicuta,
Sócrates estava aprendendo
uma ária com a flauta.
'Para que lhe servirá?',
perguntaram-lhe.
'Para aprender esta ária antes de morrer'
".
CIORAN
Os Clássicos são aqueles livros
dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou relendo..." e nunca
"Estou lendo...". Assim define Ítalo Calvino em sua famosa obra, Por que ler os clássicos? Esta definição
também pode se aplicar às mais diversas formas artísticas: estamos sempre a
olhar novamente àquele quadro, a escutar àquela música, ou “reassistir” àquele
filme...
Bem, seguindo esta lógica, revi,
esta semana, ao filme Vicky Cristina
Barcelona, de Woody Allen, (Espanha/Estados Unidos, 2008; com Rebecca Hall,
Scarlett Johansson, Penélope Cruz, Javier Bardem, Christopher Evan Welch, Chris
Messina, Patricia Clarkson, Kevin Dunn, Julio Perillán e Josep Maria
Domènech...) que talvez não seja lá um bom exemplo de “clássico”, se a este
termo acrescentarmos a imagem de coisa também antiga, passada... mas para o
próprio Calvino: um clássico é aquilo que “nunca terminou de dizer aquilo que
tinha para dizer”, e, nesse sentido, a idade pouco importa.
Desde o seu surpreendente, e,
por isso mesmo, maravilhoso Ponto
Final, Woody Allen tem nos mostrado possuir uma capacidade pouco
comum em cineastas veteranos, por melhor que eles sejam: a de “renovação”. E
isso aconteceu justamente quando Woody era acusado por muitos de não se cansar
de New York, de Jazz, de comédias e de outros temas tão comuns à sua obra
cinematográfica... Aí aparece Ponto
Final, onde New York é trocada por uma Londres sem estereótipos,
onde o jazz dá lugar à ópera e a comédia é envolvida por uma tragédia sem
precedentes. Seguindo esta mesma receita, vieram Scoop – O grande furo (a partir daí, ninguém
mais teve dúvidas de seu casamento profissional com a talentosa e exuberante,
Scarlett Johansson) e o não compreendido O
sonho de Cassandra e, claro, Vicky
Cristina Barcelona.
Vicky
Cristina... bem poderia ser uma ópera, por causa de sua
carga dramática e variações de duetos, trios e até quartetos que mais escondem
do que denunciam as verdadeiras intenções de seus protagonistas, como nos
libretos musicados por Mozart, ou mesmo protagonizar “barracos” semelhantes
àqueles que constrangem até os mais desaforados personagens favelados das
novelas de Glória Perez, como nos romances de Dostoievsky, mas Vicky Cristina Barcelona é um filme e
por isso mesmo há uma atmosfera de intensa reviravolta que sempre acometerá
seus espectadores mais proféticos, que acabam por acreditar que tudo já está
intricado, alinhavado e a qualquer momento a resolução de todas as coisas
aparecerá antes mesmo dos créditos finais, mas não é bem isso que Woody Allen
nos mostra em um filme onde tudo, aparentemente, parece se dirigir para o óbvio
e para o lugar-comum, a aparente ordem dos factos
se subverte e o que antes parecia racional, se entrega quase que inteiramente
ao romantismo intenso, a um Carpe
Dien impulsionado pelo desejo de felicidade incondicional, que é o
caso da personagem Vicky, vivido pela talentosíssima Rebecca Hall, e o que
antes era apenas impulso e desejo de descoberta, se deixa arrebatar por
situações incontroláveis e impossíveis de se fugir, que se aplica à Cristina,
personagem de Scarlett Johansson. Vicky aproveitará o impulso para se construir
uma nova rota para sua vida; Cristina declinará e se envolverá em um círculo e
voltará ao mesmo ponto de partida, porém triste, insatisfeita e angustiada,
principalmente por descobrir que a vida pode conter inúmeras coisas em que lhe
faltam coragem e sabedoria para abraçá-las.
No centro desde dilema, estão
as figuras do sedutor Juan Antonio, muito bem interpretado por Javier Barden, e
da caótica e sensual Maria Elena, a quem Penélope Cruz empresta toda a sua
força e beleza. Segundo Isabela Boscov, “trata-se, enfim, quase de um jogo de
salão, em que cada espectador deve decidir ao final se é mais Vicky ou mais
Cristina, e se isso lhe convém realmente ou não”. Vicky Cristina... mergulha profundamente no
universo de Barcelona, e o seu diretor parece se absorver (e também querer que
experimentemos tamanha sensação), da arte, da música, da cultura e do calor
catalão.
No entanto, a coisa não pára
por aí: Vicky Cristina Barcelona é
uma espécie de síntese de toda a obra do diretor nova-iorquino, uma súmula que
Woody Allen faz de si mesmo, no sentido de que nele se resolvam todos os
conflitos que o cineasta colocou a si próprio durante toda a sua carreira.
Desta maneira, Vicky Cristina Barcelona bem poderia ter o subtítulo de “Woody
por Woody” (um Clássico não pode “ser-lhe indiferente e que serve para definir
a você próprio em relação e talvez em contraste com ele mesmo”). Vicky Cristina
Barcelona trás personagens movidos, primordialmente, por suas angústias
interiores (pena que esta receita não se repita tão bem com Tudo pode dar certo e Meia noite em Paris); artistas e
intelectuais que, embora muito inteligentemente sofisticados e bem resolvidos
com seu trabalho, têm uma dificuldade visceral em lidar com suas emoções e
conflitos; e a isso se aplique um pouco de autobiografia, sim...! E como um
clássico também é uma maneira de se ler e reler outros clássicos, Vicky Cristina Barcelona possui um enredo
que pode muito bem se encaixar em uma matriz literária, como a dos personagens
de romances de Jane Austen e Henry James: está em dúvida sobre dois modos de
vida completamente distintos e o choque entre dois mundos aparentemente opostos
é o que movem as tramas dos literatos citados e o roteiro do filme de Woody.
Recorrendo, novamente, a
Calvino: “Os clássicos são aqueles que chegam até nós trazendo consigo as
marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram
na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem
ou nos costumes)”. Vicky Cristina
Barcelona faz isso com o próprio Woody Allen, pois, na busca de um enredo
em que os personagens não decorram de situações necessariamente concretas, mas
de suas próprias angústias interiores, Woody Allen encontrará o leitmotiv de toda a sua obra madura, que
se inicia, necessariamente, com Noivo
neurótico, noiva nervosa. Em Vicky
Cristina Barcelona quem melhor encarna a matriz clássica woodyana é Vicky,
interpretada pela britânica Rebecca Hall. No momento em que Juan Antonio, personagem de
Javier Bardem, convida as duas amigas para um serão de arte, gastronomia e ménage à tróis, ela se opõe
veementemente, para na cena seguinte voarem em direção à fantasia proposta pelo
pintor catalão. Nas idas e vindas da trama, é a profunda indecisão de Vicky que
motivará as suas mais radicais reviravoltas, que, graças à maestria de seu
roteirista e diretor, nenhum espectador ficará confuso com tantos enlaces e
desenlaces.
Cristina, por outro lado, é a
personagem que mais tempo ficará ao lado de Juan Antonio. Na trama, ela não só
está à procura de um novo amor, mas também de uma linguagem artística em que ela
possa se expressar e se extravasar. Acaba se decidindo pela fotografia, incentivada
pela ex-mulher de Juan Antonio, Maria Elena, interpretada por Penélope Cruz, que,
como o ex-marido, é também pintora, numa referência direta ao casal Frida Khalo
e Diego Rivera; ambos disputam espaço, se influenciam mutuamente, se amam e se
destroem. Vicky não é necessariamente uma artista, mas é uma admiradora de
Gaudí e faz mestrado em arte catalã. Todos vivem entre poetas, artistas,
músicos, intelectuais... menos o noivo de Vicky, um “picolé de chuchu” chamado
Doug, que menospreza os artistas e sua pretensão a seres “superiores e dotados
de sensibilidade”.
Influenciado pela literatura de
Henri James e se mostrando, mais uma vez, um profundo conhecedor do ambiente
cinematográfico europeu, Woody Allen é muito claro em criticar o provincianismo
e a visão tacanha do americano; assim como no romance As asas da Pomba, Allen pinta os americanos como ingênuos e
preconceituosos na arte de amar, em comparação aos europeus, adestrados nessa
arte pelas influências seculares de literaturas como as de Ovídio, Shakespeare,
Byron... O relacionamento intenso entre Juan Antonio e Maria Elena, que em
determinado momento terá a participação de corpo (literalmente) e alma de
Cristina, parece sempre escapar aos americanos Doug e Vicky. É como se algo de
essencial se perdesse na tradução de um idioma para outro. É um choque de
culturas entre o Velho e o Novo Mundo... onde saímos perdendo. Todavia, é
sempre bom lembrar que em seus vários momentos de Pedro Almodóvar captando,
deste, suas cores fortes e sua visão feminilizada da vida se entregando
totalmente às suas personagens femininas, Woody Allen nos presenteia com um
filme extremamente marcado pelo sabor e pela imagem do desejo. Até porque, Vicky
Cristina Barcelona é um Clássico... e um Clássico aquilo que “persiste como
rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”.
Feira
de Santana, 20 de maio de 2013