para Ana Carolina Miranda & Darlan Zurc “Eau, quand donc pleuvras-tu? Quand sonneras-tu, foudre”?1
C. BAUDELEIRE
Lembro-me que, em um de seus mais famosos poemas, Charles Baudelaire nos fala de um cisne que, fugindo da morte certa, ergue suas asas em clamor e repreensão aos Céus, num belíssimo e trágico exemplo de transcendência, libertação e de inútil desafio ao destino.
Em Baudelaire, o tempo e a perplexidade sempre nos levarão à multiplicidade fenomênica das formas e das circunstâncias, revelando uma condição tão inevitável quanto essencial em nossas vidas: o Abismo. Como o próprio Charles Baudelaire afirma:
Je vois ce malheureux, mythe étrange et fatal (...)
vers le ciel quelquefois, comme l'homme d'Ovide.2
Neste processo de transfiguração, o poeta toma para si o ato de animal como uma atitude necessária a ele, enquanto homem, mas a ele faltando, diferentemente ao cisne agônico, a iniciativa e o seu próprio sacrifício, aceitando a privação do espaço ao qual lhe é legítimo. Ciente de suas repressões, cabe ao poeta apenas a admiração e completa:
Vers le ciel ironique et cruellement bleu,
Sur son cou convulsif tendant sa tête avide
Comme s'il adressait des reproches à Dieu!3
Esta temática de dor, de conhecimento e de libertação, à maneira das grandes tragédias gregas, pois é composta de três elementos básicos: a presença de fatores transcendentais – neste caso, o Destino –, o aniquilamento do próprio herói – na vã tentativa de salvar-se – e a inevitabilidade da catástrofe desde sempre anunciada, que, por sua vez, são o tema central de Cisne Negro (Black Swan, Fox Searchlight Pictures, 2010; com Natalie Portman, Vincent Cassel, Mila Kunis, Barbara Hershey e Winona Ryder) que poderias seguir as mesmas tendências de seu diretor, o genial Darren Aronofsky, que, em filmes como Réquiem para um sonho e O Lutador, mostrou grande habilidade em tratar de personagens às voltas com suas frustrações e as dificuldades de lidarem com elas ou encontrar expedientes necessários para superá-las ou resolvê-las. Entretanto, este não é bem o caso da personagem central de seu mais novo filme, a jovem Nina, interpretada magistralmente por Natalie Portman.
Nina é uma dedicada bailarina de uma grande companhia de Nova York, e, como muitas de seu meio, à espera de “sua oportunidade”; quando esta, finalmente, aparece-lhe, o que deveria ser o seu grande momento de ascensão, torna-se o início de uma decadência física, moral e, principalmente, psicológica que chega ao extremo do horror como muitos poucos filmes de tal gênero já produziram.
Criada por uma mãe (a culpa, pelo que parece aos estereótipos psicanalistas, é sempre dela) muito cuidadosa e, pelo que percebo, uma artista fracassada, Nina vive numa redoma de super proteção que se revelará numa forma de a sua mãe compensar todo o seu insucesso. Para tanto, Nina se dedica infatigável e dolorosamente a uma tortuosa rotina de ensaios que acabam por tornar seu corpo cada vez mais frágil e machucado. É a partir daí que o espectador testemunha todo o sofrimento físico oculto por traz da beleza e da leveza coreográfica dos balés: unhas quebradas com violência, quando não os dedos, contusões por repetidos e incansáveis treinos, hematomas e quedas constantes que se somam a um ambiente extremamente competitivo e, por vezes, irascível, principalmente com a chegada de uma nova bailarina, Lily, personagem de Mila Kunis, que atiça toda a sua paranóia... e algumas “coisinhas” a mais, também.
Daí em diante, o que acontece na vida de Nina é uma metamorfose que, comme l'homme d'Ovide4, embora desencadeada por fatores externos, é composta por elementos despertados de dentro de sua alma; por isso mesmo, não seria bobagem dizer que, quando Nina, até então, o Cisne Branco, da peça de Tschaikovsky, passa a se transformar no antagônico Cisne Negro, ela não passa a ser outra coisa senão ela mesma. O que, a partir de então, posso deduzir é a existência de uma Nina oculta, reprimida por uma mãe sempre presente e, por isso mesmo, dominadora, revelando-se quando sua condição e capacidade são postas à prova. Desta forma, quando o Universo parece conspirar contra ela, um mundo de descobertas começa a se revelar cruel e incontrolável. A atmosfera de horror é levada a um extremo tamanho que, por várias vezes, é fácil questionar, de tão envolvido, neste momento, o espectador, a veracidade das perturbações de Nina, mas sem lhe negar a condição de loucura.
Na verdade, Nina não sabe lidar com tais situações, pois foi privada, sobre muitos aspectos, da realidade e de seus muitos males e quando, finalmente, resolve amadurecer, isto é feito de maneira violenta, mas, mesmo assim, não tão violenta quanto a sua volta à realidade, muito mais direta, chocante e cruel do que todos os seus delírios. De qualquer for, no caso de Nina, a impostura sempre parece mais convincente do que os modelos autênticos, como diria Jean Ginet, dos quais não toma parte; assim, é mais fácil para ela se entregar à insanidade do que pôr os pés na realidade, pois isso, pelo que me parece, seria o mesmo que admitir que a verdade pode ser mais falsa do que a sua esquizofrenia.
Não obstante, se há algo verdadeiramente de ruim em Cisne Negro é o fato de ele se entregar demais aos modelos e mecanismos freudianos que Hollywood tanto ama produzir, no entanto, sua essência não é tão simplória, limitando-se a um mero drama de desejos recalcados, é sim um grande questionamento sobre os sentidos que damos e, muitas vezes somos sentenciados a dar às coisas. Nina sabe que a realidade é inevitável e que ela nos bate à porta quando menos esperamos, mostrando-nos uma face que não reconhecemos como a nossa própria face. Neste sentido, o mundo de loucura no qual Nina mergulha é o mudo real, pois não existem dois mundos para o mesmo mundo, duas realidades à mesma realidade, a vida e a arte são um único mundo que têm apenas fins diferentes, porém este mundo de loucura é um mundo parasitado, formado apenas de paixões e de conceitos quase sempre antitéticos.
Nina nos deixa bem claro o quanto que se pode viver acorrentado a um mundo de coisas irreais, mas os grilhões que nos prendem a este mundo de irrealidades são, muitas vezes, bastante verdadeiros. Por isso mesmo que, embora deslizando por um caminho de bifurcações psicanalíticas, parece-me que é na linha reta do sacrifício, no sentido mais religioso do termo, pois sacrifício é troca e, neste caso, a morte de uma Nina faz brotar uma outra que ela encontra a verdade escondida sob os atos e os propósitos; e a angústia da música de Tshaikovsky – este sim alguém que, na vida, soube viver no limite se seus dilemas e compartilhar isto, com o mundo, de uma forma tão sublime quão caótica – encontra a dor e o desejo de transformação naqueles versos de Baudelaire.
Pelo visto, todos nós estamos condenados à verdade, à liberdade e a dar às coisas um sentido. Se, em algum momento, Nina acorda para a realidade ou para a idéia que ela tem de realidade, logo aparece o rosto de sua mãe, a qual, na busca desesperada pela beleza e adiamento do tempo, não consegue enxergar a deformidade que, aos poucos, vai se tornando, mas que serve de espelho para que Nina venha a contemplar o seu verdadeiro eu: não aquele que parece se transformar num cisne, mas a própria Nina, há muito aprisionada numa idéia, em um conceito que, ao longo dos anos, aprendeu a reconhecer como ela mesma.
Assim sendo, em Cisne Negro, a tragédia de Nina nos mostra que, ao contrário do que pensava Sartre, não é nos outros que se encontra o Inferno, mas, no caso dela, como no de muitos... em nós mesmos.
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E aqueles versos de Baudelaire ainda me perturbam a memória:
...mais rien dans ma mélancolie
n'a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,
vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie
et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs (...).
Je pense à mon grand cygne, avec ses gestes fous,
comme les exilés, ridicule et sublime
et rongé d'un désir sans trêve!5
Candeias, 30 de fevereiro de 2011.
1 – “Oh, quando cairás, água! Quando ressoarás, oh trovão”?
2 – Eu vejo esse mito infeliz, estranho e fatal (...)/
para o céu, por vezes, olhar como um homem de Ovídio.
3 – Ergue-se cruelmente para um céu azul e irônico,/a cabeça a emergir sobre um convulso pescoço/como quem, a Deus, lançasse um desafio agônico.
4 – Como um homem de Ovídio.
5 – ... mas nada na minha melancolia/mudou! Novos palácios, andaimes, blocos,/bairros antigos, tudo para mim torna-se alegoria/e minhas melhores lembranças são mais pesadas que rochas (...)./Acho que do meu grande cisne, com gestos selvagens,/como exilados, ridículo e sublime/e consumidos por um desejo sem tréguas!