“BIRDMAN”
ou A INEVITÁVEL VIRTUDE DA CONSCIÊNCIA
(por Silvério Duque)
Ninguém vive verdadeiramente se não cai
sob uma forma ou outra de sedução.
GABRIEL LIICEANU
Imagine a seguinte
situação: você é um astro hollywoodiano de primeira grandeza, daquele tipo de celebridade
mundialmente conhecida, que a maioria dos simplórios mortais se mataria para
ter um autógrafo, amado e admirado por milhões de fãs ao redor do planeta, mas
tudo isso se fazia quando você interpretava um famoso herói dos quadrinhos,
todavia, ao se recusar a fazer o quarto filme da famosa franquia, sua vida cai
em desgraça; você vê ir embora fãs, aquela sensação tão gostosa, quanto
inconveniente, de ser reconhecido e perseguido pelas ruas, sua esposa gostosa,
sua filha, que cai no mundo das drogas e na depressão, você mesmo se arremessa
em um quadro depressivo cada vez maior quanto mais seu dinheiro e prestígio vão
ficando escassos, e, como se não bastasse, com o ego e o senso de realidade tão
maltratados, os limites entre o real e o fictício se tornam cada vez mais
tênues, ao ponto de você não saber mais se está com os pés no chão do mundo
real ou voando por sobre suas próprias fantasias... Imaginou?! Bem, esse é o
mote para um dos filmes mais frenéticos e bem realizados dos últimos tempos: Birdman ou A Inesperada Virtude da
Ignorância (Birdman or The Unexpected
Virtue of Ignorance, Estados Unidos/Canadá, 2014), do premiado e controverso Alejandro Iñárritu e ganhador do Oscar
de 2014.
O filme, que concorreu
com uma penca de indicações, e trouxe, para as telas do cinema, outras tantas
de discussões e referências literárias e filosóficas, mostra-nos a vida de
Riggan Thomson (interpretado por um Michel Keaton excelente em tudo, a começar
por uma relação direta que o ex-protagonista de uma das franquias de Batman
possui com a história de seu personagem), ou dizendo melhor, um determinado – e
determinante momento – de sua vida, que é justamente o autor cuja vida foi
descrita na pergunta que fiz na introdução deste texto. É ele o ator que caiu
em total desgraça no momento em que se recusou a fazer o quarto filme da
franquia Birdman. Agora ele se
encontra em seu camarim, no Teatro St. James, em Nova York, tentando se
acalmar, ao tempo que procura entender quais os caminhos que o levaram
justamente àquela situação, bem como àquele momento. Incerto de onde está e do
que de fato fará, Thomson precisa voltar ao ensaio de uma peça que ele mesmo
adaptou de um conto do Raymond Carver, e, que, de quebra, também dirige e
ousadamente protagoniza. Essa é a sua tentativa desesperada de retornar ao
prestígio e ao reconhecimento, mas, dessa vez, a um prestígio e reconhecimento
bem diferentes; ele quer realmente provar a todos que é um homem deveras
talentoso e que seu brilho e sucesso vão muito além de um “enlatado” para
adolescentes sem noção.
Thomson não é o Ed
Motta, porém, quer ser reconhecido como um ator para um público seleto, que
valoriza de verdade o talento e a grandeza de uma atuação sincera. No entanto,
ele se vê, de pronto, com um problema terrível, um de seus colegas atores é
péssimo, e Riggan Thomson vê nisso um entravo considerável em seu caminhar de
volta à fama. Todavia, quando um spot
de luz cai sobre a cabeça de seu inapto colega, Riggan vê nisso um alívio que
logo se transformará em desespero, pois não há um ator de calibre para
substituí-lo até a pré-estreia de amanhã; todos os que Riggan pensa para
acompanhá-lo, em sua empreitada, ironicamente estão ganhando milhões
interpretando heróis, enquanto ele, que perdeu e está a perder milhões para se
livrar de um, desespera-se.
Sorte de principiante –
no teatro –, uma oportunidade única bate à porta de Riggan Thomson: Mike Shiner
(um Edward Norton muito à vontade em um papel que poucos poderiam interpretar
sem cair em estereótipos fáceis), o melhor e mais problemático ator em atividade
na Broadway está apto para assumir o lugar ao lado de Riggan. É justamente aí
que todos os conflitos que tornam Birdman
um trailer de barroquismos sem
comparação começam a tomar proporções tão imensas quanto desesperadoras. A
partir daí tudo é muito rápido e acompanhado por um solo de bateria igualmente
ininterrupto, que certamente deixou muitos espectadores do filme tão tonteados
quando o angustiado Riggan Tomson, ao encontrar-se no limiar entre a verdade e
a fantasia, entre o talento de Mike e sua capacidade indiscutível de semear a
discórdia, entre ser lembrado pelo que fez e reconhecido por aquilo que ele
está fazendo, entre ser uma “celebridade” e tornar-se de fato um “artista”,
entre a fé e a descrença em si mesmo.
Ao lado desses
conflitos, que começam a se desencadear sem quase uma única pausa para
respirarmos, todo o filme assume um ritmo frenético e os acontecimentos vão se
desenrolando de uma forma que, antes que percebamos o passado, o presente já se
abre para o futuro e assim sucessivamente sem que muitas vezes percebamos os
intervalos que existem entre um e outro. Além do mais, há vários momentos em
que não sabemos se estamos a assistir o presente ou o futuro dos
acontecimentos, se estamos na realidade ou na fantasia, se é o ensaio da peça ou
a apresentação propriamente dita e, acima de tudo, não percebemos, muitas
vezes, se estamos ao lado de Riggan Thomson ou se estamos mergulhados em sua
mente e em seus delírios, como numa espécie de discurso indireto livre cinematográfico que o diretor Alejandro
Iñárritu aplica a todo o filme. É com essa manipulação temporal e realista que Birdman torna-se ao mesmo tempo um drama
com ares de uma comédia, uma composição erudita com ritmo e improvisação
jazzística, e um verdadeiro samba do crioulo doido onde tudo é embate: Riggan
deseja o prestígio e o reconhecimento de Mike, que esconde, ou finge esconder,
seu desejo de ser alguém que todos reconhecem na rua, como Riggan; a esposa de
Riggan deseja ser amada por ele, mesmo sem diminuir o rancor que sente pelo
ex-marido, que não sabe como dizer ou demonstrar que a ama, por mais que
queira; mesmo sem saber o porquê dessa necessidade, Riggan precisa ser um bom
pai para uma filha (a excelente Emma Stone) indignada e desencantada com tudo,
inclusive, segundo ela mesma quer acreditar, com o próprio pai; Riggan ainda
tem que cuidar de seu empresário desesperado (Zach Galifianakis), com uma
companheira de palco também insegura e desiludida (Naomi Waltts), uma namorada
tarada e também depressiva (Andrea Risebourouth)...
Contudo, nenhum embate é
mais significativo e violento para Riggan do que aquele entre ele e ele mesmo,
ou melhor, entre ele e seu ego inflamado personificado na forma do personagem
Birdman, que ele, por anos, interpretou, e, até hoje, vive à sua sombra.
Ironicamente, ninguém chama mais Riggan à realidade dos fatos e das coisas do
que seu “outro eu”, mostrando-lhe a falsidade, o vazio e o desinteresse que o
mundo contemporâneo tem pela grandeza e profundidade que Riggan tanto almeja a
esta altura de sua vida.
O tempo de tudo, ou
melhor, das duas semanas que transcorrem todo esse corte na vida de Reggan
Thomson se dá em duas horas, como um verdadeiro conto literário, numa aparente
sequencia única de câmera e que acompanha o ritmo e a desenvoltura de seu
próprio delírio, como em Arca Russa e
Festim Diabólico. Tudo isso exige dos
atores desse filme uma concentração absoluta para manter o espectador nesse
clima atordoante que Birdman nos
apresenta e se sustenta do primeiro ao último minuto. Onde todas essas coisas
vicejam está o grande trunfo maior do diretor Alejandro Iñárritu: pôr Michael
Keaton no papel de Riggan Thomson. Keaton está excelente, como nunca esteve em
toda a sua carreira, impecável em sua técnica até os mínimos detalhes, mas
também dono de uma emoção controlada e muito bem trabalhada que beira o
virtuosismo (mesmo assim, foi-lhe negado, injustamente, o Oscar), e, além
disso, ele, como já disse, tem um passado profissional que muito se encaixa na
história de Birdman, que foi o de
interpretar, como superastro dos anos 80 e 90, o papel de Batman, sob a direção
de Tim Burton, e que enfrentou uma perda quase irreparável de popularidade ao
se recusar a fazer o terceiro filme da franquia.
Levando tudo isso em
consideração, Birdman não é um filme
fácil, nem o poderia ser... Ele traz desafios técnicos e artesanais muito
complexos, diversos e impressionantes e satisfaz os estetas e críticos de
plantão, ao mesmo tempo que os critica de forma crua e contundente (reparem
como o trabalho dos críticos é apresentado no filme, e como ele é um soco com
luva de pelica em um grupo fechado que deveria ser responsável por ajudar as
pessoas a admirar e compreender a obra de arte, mas se mostram incapazes tanto
de ensinar quanto de admirar aquilo que veem e sobre o qual escrevem). Também o
mundo contemporâneo e tecnológico, com suas celebridades fáceis e efêmeras, e
seu vazio de conteúdo e perspectivas, são duramente criticados no filme, sem
que se perca de vista a força que tudo isso tem para os dias de hoje.
Críticas e filosofias a
parte, nada pulsa com mais força e fulgor do que o elemento humano presente e
explorado extremamente ao longo de toda a película. Além do mais, há uma forte
ideia de imortalidade presente no desespero de Riggan em fazer algo grande, que
o ponha no panteão dos imortais, dos lendários ou dos meramente lembrados pelos
seus grandes feitos. Riggan, como diria Kierkegaard, não quer fazer parte do “cardume
dos arenques”, em que 99% da humanidade se insere. Ele precisa fazer a diferença
da forma mais verdadeira possível ou enfrentará a pior das mortes: o
esquecimento; mas não qualquer esquecimento, um esquecimento que começa em vida
e estender-se-á daqui à eternidade... Se somos a nossa ação por sobre o tempo,
é ele, o tempo, como pensavam os barrocos, o agente de toda morte e destruição;
e o ego, nosso primeiro fantasma e mais infernal castigo.
Candeias, num calorento 17 de abril de 2015