por Jessé de Almeida Primo
Começarei com um clichê imprescindível como a maioria dos clichês: O livro de Scardanelli (É Realizações, 2008), de Érico Nogueira, não é uma obra comum. A discussão conteudístico-formal que subjaz a essa obra não parece, à primeira vista, familiar à nossa paisagem mental, muito menos à lírica, ainda que tenha contato, como se verá, com um poema de muito sucesso no Brasil.
De tal modo essa estranheza se manifesta que algum desavisado poderia pensar que o livro é de autoria de algum estrangeiro exilado nos trópicos, aborrecido com o sol infernal e que, saudoso de sua terra, escreve diante de um freezer aberto e com o ar condicionado ligado no máximo. Sim, a obra em questão tem algo de gélido, mesmo quando fala de verão e primavera; assim como nela tudo é noite, mesmo que brilhe o sol. Dessa assimetria falarei mais adiante.
Seria, por acaso, uma tradução? Suspeitá-lo-ia o leitor que já tenha passado pelo ciclo de Scardanelli de Hoelderlin ou simplesmente aquele que leu o posfácio do autor, em que ele explica que se limitou a emular tão-somente “o metro, o ritmo e as rimas dos originais”. Isso, sim, que é originalidade. O resto é conversa.
Não se trata de um mero paradoxo. Segundo escreve Carlos Felipe Moisés no belo ensaio “Para quê poetas?”, que acompanha O livro de Scardanelli, a verdadeira identidade do poeta alemão, numa rara demonstração de loucura, é enterrada sob este curioso pseudônimo à italiana. Já na emulação feita por Érico Nogueira, mais uma vez com Felipe Moisés, há uma tentativa de recuperação dessa identidade.
Nessa emulação, o autor resgata a tradição da imitação que praticamente se findou com o apego desesperado aos direitos autorais, o que certamente tenha coincidido com o advento da indústria do livro. Talvez Manuel Bandeira seja uma exceção se levarmos em conta os seus “À maneira de”. Fora isso, temos as famosas imitações de Homero por Virgílio, as de Petrarca por Camões, as de Camões por Góngora, as de Quevedo por Gregório de Matos, ou seja: entre os melhores estavam aqueles que melhor imitavam. Imitação essa que estava muito longe daquela empreendida por um escritor inventado por Borges, cujo “Don Quijote” reproduzia exatamente o texto de Cervantes, mas teve sua originalidade garantida por tê-lo escrito no século XX. A imitação de que aqui se fala é antes de tudo intimidade com a arquitetura dos poemas originais, é procurar realizar determinada forma tão bem quanto aquela que inspira essa imitação. Quanto às motivações da emulação aqui estudada, veremos mais adiante.
Horácio esteve aqui
"Se as cores se fundiram em verde-musgo," (Hora Média, Livro de Horas)
"As folhas já se foram há certo tempo,
há certo frio rochoso nas escarpas," (Vésperas, Livro de Horas)
"(...) O tédio
me faz seguir a tortuosa rota
da mesma água para foz ignota
em vez de atravessar um vau inédito
que acaba onde se quer. Mereço crédito?" (Soneto 5, Cancioneiro Inglês ou de Sandra Gama)
"A terra limpa e arada,
o vento encurvando as oliveiras," (Dois hálitos, Cadernos de Exercícios)
Os versos acima são alguns dos belos exemplos d’O livro de Scardanelli, constituído por 72 poemas que se distribuem em três partes: “Livro de horas”, 23 poemas compostos segundo a pauta determinada pelos que formam o ciclo Scardanelli, de Hoelderlin; “Cancioneiro Inglês ou de Sandra Gama”, uma seqüência de 24 sonetos em que uma linguagem, digamos, mais contemporânea - sem contar os registros lingüísticos mais clássicos também -, encontra maior adequação numa forma muito característica da tradição inglesa, que é justamente o soneto inglês; e, por fim, as formas mais variadas (do soneto, passando por formas em que mais predomina a quantidade da poesia greco-latina que o metro silábico do português, até a oitava camoniana) dão o tom de “Cadernos de Exercícios”, justificando dessa forma o seu nome. Mas os exemplos supracitados não foram escolhidos pela sua beleza, e sim por força de um aspecto que une as três partes de que esta obra é constituída: sua limpidez geométrica. Como se vê também pelo colorido bucólico de muitas dessas composições, estamos diante de uma obra neoclássica concebida em pleno século XXI.
A opção por uma referência pretérita, por sua vez, fundamentada em outra ainda mais remota, que é a poesia greco-latina clássica, não se explica pela vaidade erudita, “there is a method on it”. A escolha neoclassicista é antes de tudo tática, pois é uma forma de expressão, digamos, tão geométrica quanto a loucura. (Antes de prosseguir, não quero dar a entender que os renascentistas e os neoclássicos eram loucos, mas com certeza os loucos são renascentistas ou neoclássicos...)
Não estranhe o leitor essa consideração, pois nada tão organizado quanto a mente de um louco, que odeia as coisas fora de lugar; mais ainda, a assimetria perturba-o à exasperação. A loucura não é simplesmente uma desordem mental ou uma forma de desarticulação espiritual. É a pretensão de impor uma ordem ou uma forma justamente onde estas não se manifestam, pelo menos não do modo esperado. É o desejo de que tudo se encaixe, de que tudo se explique, enfim, é um desejo tão solar quanto desesperado de simetria. Quando, porém, a realidade se revela “desajustada”, nada resta senão criar um mundo harmônico, dotado de uma perfeição geométrica, onde tudo funcione, ou, quiçá, idealizar uma época em que tudo era bom, em que os campos eram mais verdejantes, quando o homem e a natureza davam-se as mãos. Esse aspecto da loucura como sede de simetria é a grande sacada de O livro de Scardanelli, de Érico Nogueira, em que um verdadeiro inferno espiritual habita formas harmoniosas e versos tão límpidos quanto os rios à beira dos quais descansam cabras e pastores.
Se a tranqüilidade dos pastores romanos parecia genuína, a dos renascentistas parece calculada, e esse cálculo parece atingir seu ápice na produção dos poetas neoclássicos, de modo que os pastores e suas cabras, a despeito da qualidade de sua poesia, mais lembram criaturas saídas de uma incubadora que de uma natureza suja, hostil e fugidia. Como não se lembrar de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga? Marília, assim como Sandra Gama, da segunda parte do livro de Érico Nogueira, dá a impressão de ser algo próximo de uma sombra mental, como nos ilustra o autor no seu 22º soneto, quebrando assim, como nos lembra Felipe Moisés, a expectativa sensualista do leitor. E como não se lembrar de O mundo como idéia, de Bruno Tolentino, a quem, não por acaso, o livro é dedicado? O que é essa geometria obsessiva senão o inferno que Tolentino tão bem traduziu na imagem de “um puro palácio aritmético”?
Curiosamente, o "Cancioneiro Inglês", pouco importa se deliberadamente ou não, e a despeito de seu aspecto farsesco, é o Marília de Dirceu de nossa época: tanto em um como em outro há um sujeito que, num processo de interiorização, - e entre várias elucubrações - rumina o nome de uma mulher cuja existência parece mais criação de uma mente solitária que um fato concreto. Acontece que no "Cancioneiro Inglês", principalmente a partir do 18º soneto, a confusão se estabelece e a loucura parece atingir o paroxismo: ora a existência de Sandra Gama é carnalizada e a presença do amante se abstratiza, ora é a presença dela que se anula e o amante recupera a sua, ora ambos somem de uma vez:
"Por isso não conheço com quem lido:
pois de mim mesmo sou desconhecido." (soneto 19)
Fernando Pessoa compreendeu tão bem (para não dizer dolorosamente) o fenômeno do desespero geométrico que se poderia dizer que seu heterônimo mais angustiado é Ricardo Reis, precisamente um poeta horaciano neoclássico. Se a expectativa da morte ou de uma constrangedora decepção e a certeza da contingência se interpõem entre ele e sua Lídia (“desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos”), a destemida voz que procura atingir os sentidos de Frederico ou a que predomina no "Caderno de Exercícios" manda esse pudor às favas:
"Quando passou, então, por essas frutas,
a água não molhou – ficaram, pois, enxutas,
sem que um teu dente ao menos as marcasse;
aonde a água ia que o justificasse?" (Hora Média)
"pensar e não comer, que idéia louca." (As pêras de Diana)
Ou seja, o que poderíamos chamar de convenção de escola acabou servindo ao propósito de, a um só tempo, garantir-lhe a permanência e discutir, com seus próprios termos, o que subjaz a essa convenção.
Essa assimetria, sombriamente introduzida com o verso “A hora lúcida de cara dupla”, do poema "Visão", o primeiro do livro, é o que também percebemos em todo "Livro de horas", onde se conta a história de dois seres condenados a não se encontrarem, daí que a voz dirigida a Frederico só seja ouvida pelo leitor. Ela nunca chega ao que deveria ser o principal interessado. Curiosamente, a “cara dupla” da referida “hora lúcida”, que é o leitmotiv da obra, tem algo de “a pair of star-cross’d”, que é o leitmotiv de Romeu e Julieta presente no soneto que serve de prólogo à peça – aliás, um casal presa de uma paixão às escuras por conta da inimizade entre suas famílias e cujo amor, numa trágica manifestação de assimetria que parece se opor à realização de um desejo, fora comprometido pela artimanha por meio da qual esperavam consumar esse amor de maneira plena.
A “cara dupla”, a assimetria, a falta de convergência entre objetivos, mais ainda, a presença de objetivo em um e a falta total de objetivo em outro explicam uma evolução notada na voz que fala, mas não naquele a quem ela se dirige. Além disso, a natureza toda parece brincar em torno de uma figura tão paralisada quanto a que se apresenta em um quadro de natureza morta:
"Um lume chega – ou vem do alto, ou vem de baixo,
a treva, devagar, expele um novo dia;
sorriem bocas, mas num outro pasto,
que neste não há boca que sorria." (Dilúculo)
Afinal, o que esperar de alguém cuja mente é um universo paralelo com o qual não se consegue estabelecer um contato genuíno? É o que parece acontecer também na Balada do cárcere, do já citado Bruno Tolentino, onde uma voz fala de um encarcerado conhecido como Numeropata (“Era o 212/voltava a cara ou as costas/ se alguém o chamava Ambrose”) ou a ele se dirige (“Dorme, Minotauro, mouro/ da mais amarga Veneza...”). Por outro lado, apesar de em ambas as obras haver uma tentativa de resgate de uma identidade perdida no imenso palácio da loucura, há um abismo que as separa: numa, há uma voz luciferina-epicurista que procura – pela apropriação da estrutura poética alheia que é a do próprio Hoelderlin, e assim penetrando no seu delírio - despertar uma consciência recolhida com uma solução, como diria o apóstolo Paulo, “segundo a carne” (“por isso goza, Frederico, a parte/ que do todo puder a tua arte.”); noutra, uma voz que procura aproximar o encarcerado da revelação, ainda que seja por caminhos tortuosos e surpreendentes (“É cavalgando a besta/ que a alma depara o criador”). Esse tortuoso caminho que conduz à revelação também está presente em As horas de Katharina, do mesmo Bruno Tolentino: “Porque se fácil fora abandoná-lo,/que difícil o ofício de voltar!/Com que dedicação há que escalar,/ para habitá-lo, os graus desse castelo.”
O que estas obras têm em comum com O livro de Scardanelli é a clausura: a prisão propriamente dita n’ A balada do Cárcere e a cela de um convento, n’As horas de Katharina. Há, porém mais do que isso para irmaná-las: no caso da Balada, Ambrose é também presa da loucura que se configura, por sua vez, na sede de simetria, a tal ponto que só atendia àqueles que o chamavam pelo número, “passara a ser algarismos”. Katharina, mais afortunada, já que podia contar com a lucidez, por outro lado parecia não perceber que Aquele por Quem tanto procurava e por Quem se sentia abandonada estava ao seu lado o tempo inteiro: “Fechei os olhos então,/fiz como ela [a andorinha] e fui eu,/eu mesma minha prisão.” Em ambas há a presença de quem está de fora e procura despertar aquele que se encontra recluso: Ambrose pode contar com a generosidade de seu colega de prisão, ainda que esta não seja percebida, e Katharina com o próprio Deus que lhe apresenta sinais o tempo inteiro. Porém, enquanto nessas obras as atormentadas personagens podem contar com um Virgílio, por sua vez sob os auspícios de uma Beatriz, para guiá-las pelo inferno até chegar ao Paraíso, Frederico é constantemente abordado por uma voz que procura apontar um caminho inverso: “daquela funda treva não se sabe/ como voltar, a altura não se anela” (Glosa de Mote Alheio).
A comparação acima levanta as seguintes interrogações: seria O livro de Scardanelli um antípoda da obra de Bruno Tolentino? Seria, por isso, uma reação luciferina contra o esforço de resistir ao “mundo como idéia”? De certa forma, pode-se afirmar que sim. A diferença moral entre as duas vozes é mais que evidente, e elas repetem num outro plano a famosa tentação no deserto de que falam os Evangelhos. Por outro lado, não seria imprudente afirmar o imoralismo da primeira face ao objetivismo moral da segunda? Por que, antes, não observar que o objetivismo moral de uma não ressalta, numa comparação como a empreendida no parágrafo anterior, o evidente imoralismo da outra? Lembremo-nos, afinal, de que a voz que se dirige ao pobre Ambrose, a qual ocupa a primeira e a terceira partes d’A balada do cárcere, é uma voz, dir-se-ia, direta, facilmente identificada com a voz do próprio Tolentino, em nada distante de sua particular visão de mundo, ainda que não abra mão, é claro, da ficção literária; ao passo que n’O livro de Scardanelli Érico Nogueira abdica de sua própria voz com o fito de abrir espaço para a voz de um esteta donjuanesco, tendo concebido, assim, uma personagem bastante convincente, o que (e encerrando aqui a comparação entre os dois poetas) na Balada só acontece na segunda parte, em que o autor se ausenta para deixar falar o Numeropata.
Essa tensão de ser e não ser, do existir e não existir e, enfim, de desencontros tão reais quanto alucinantes, é levada às últimas conseqüências no "Cancioneiro Inglês", como já vimos. O curioso é que Frederico, assim como Sandra Gama, é uma personagem da qual não conseguimos visualizar um rosto ou um gesto, mas com cuja ausência nos esbarramos sempre. É alguém que parece não termos visto mais gordo e, como diria a voz presente no "Cancioneiro", “que, por isso, me entalou na porta.”
Essa tensão adquire um contorno ainda mais doloroso no décimo terceiro soneto, o qual reproduzo na íntegra:
"A morta que deflagro, a mesma estátua
semi-sorrindo a um mesmo cemitério,
indiferente e fria como a prata,
ensangüentada e morta com o ferro,
ouvi-a, quando o vento estava quieto,
falar na concha, que tem voz de nácar:
'Ó marinheiro, que no sal asséptico
mergulhas e afias tua faca,
era mancha de sangue que polias,
era ferro manchado que salgavas,
que me deixou com as feições tão frias
de ensangüentada prata, sem ressalvas?'
Entre o poema e ela, eu o escolhi;
ganhei um tema, porque o mais perdi."
Deparamo-nos aqui com um drama que se elabora em bem construídas – e por isso mesmo naturais - rimas toantes (estátua/prata, cemitério/ferro; nácar/faca, quieto/asséptico) e numa impressionante plasticidade que muito bem diz da feição pétrea que se confirma numa condenatória permanência em certo lugar: “A morta que deflagro, a mesma estátua/ semi-sorrindo a um mesmo cemitério”; ou que reproduz a voz de quem, qual num pesadelo eterno, ou não se consegue fazer ouvir, ou, quando isso ocorre, soa como se vinda das profundezas: “ouvi-a, quando o vento estava quieto,/ falar na concha, que tem voz de nácar”.
Esse poema dramático, mais precisamente os dísticos que o encerram, remete a uma história segundo a qual Camões, em meio a um naufrágio, teria preferido levar Os Lusíadas a nado em detrimento de sua amante indiana que se afogava, compondo depois em sua homenagem o famoso: “Alma minha gentil que te partiste/ tão cedo desta vida descontente”. Pouco se sabe da veracidade do ocorrido, mas factual ou não, não se lhe pode negar o caráter exemplar: se nos outros sonetos que compõem a série do “Cancioneiro Inglês” a musa pode ser um mero delírio, no presente caso há um “agravamento moral” na medida em que o outro é visto como um possível obstáculo à realização artística, tendo por isso que ser ou eliminado ou reduzido a um modelo, ou senão as duas coisas ao mesmo tempo: “Entre o poema e ela, eu o escolhi;/ganhei um tema, porque o mais perdi.”
O aspecto mais assustador disso tudo é que não ocorre a romântica “salvação pela arte”, mas tão-somente “a salvação da arte”, a se traduzir no sonho de se construir uma cidade para habitá-la de estátuas em vez de gente (“apenas, entre alguém e seu retrato,/para meu dano, preteri alguém.” Soneto 16); um imenso museu, em que a perfeição geométrica manifesta nos mármores minuciosamente cinzelados não seja perturbada pela imprevisibilidade dos movimentos ou pela velhice ou pela morte que não pode existir porque a vida é algo ausente.
Encerrando nossa incursão no interior dessa grande criação literária como que saída de uma mente enferma, qual o papel do "Caderno de exercícios" nessa metódica loucura? De que modo essa terceira parte com ar de “outros poemas” participa dessa unidade? Carlos Felipe Moisés vem a nosso socorro dizendo que o Caderno de exercícios é “a matriz de onde tudo proveio”. A essa observação acrescentaria algo: “exercício” é, entre outras coisas, – e a julgar pela notável variedade formal – a busca incessante de um método. Logo, esse caderno é o método de que vai se servir essa loucura.