ao poeta e
amigo Antônio Brasileiro,
pois tudo
que, aqui, se aplicar ao brasileiro de
Jacobina-Ilhéus,
aplicar-se-á,
muito melhor, ao brasileiro de Feira de Santana...
Esquecida
no tempo, a alma procura
algo que,
já não é, porque era tanto...
EMÍLIO
MOURA
Fui
presenteado ontem, por seu próprio autor, com o livro O chão e a nuvem (Mondrongo, 2013), de Heitor Brasileiro Filho, e,
sem perder tempo com a tamanha falta de tempo que muito me desagrada
ultimamente, li-o de pronto e com muito apetite. E posso confessar que, com o
manjar poético que Heitor Brasileiro Filho preparou para mim, bem como aos seus
outros leitores, dei-me muito por satisfeito.
Poeta
de alma e coração de ouro – por ter nascido na cidade baiana de Jacobina – e de
verso e prosa atrelados a uma consciência tão lírica quanto rebelde – pois é
escritor radicado em Ilhéus –, Heitor Brasileiro Filho revela-se um poeta de
temas e formas tão engenhosos quão bem realizados, por mais que lhes faltem,
muitas vezes, as técnicas clássicas que formaram nossa consciência literária ao
longo de séculos e lhe sobrem aquele impulso de liberdade e, muitas vezes, de
libertinagem, que nos é inerente desde a aurora do século passado. Dizer mais o
quê, então...?!
Vejamos...
À primeira impressão, o livro (com uma primorosa edição, diga-se, bem típica à
qualidade que a Editora Mondrongo tanto gosta de prezar e presentear aos seus
consumidores) não poderia me parecer melhor, porque os elementos estruturais da
poesia de Heitor Brasileiro Filho revelam-se frutos de uma consciência
artística muito vigorosa, sem que, em algum momento, venham perder-se de uma
identificação realista tanto com a vida, em suas mais diversas impressões,
quanto com a natureza, em seus mais diferentes sentidos, mostrando pouquíssimos
traços com as influências românticas e modernas das quais a expressão poética
brasileira, em sua atualidade, ainda se fia e se confia. Não que Heitor Brasileiro
Filho não as possua; só não se dá ao luxo idiossincrático de revelá-las, sem
nenhum pudor, a um público tanto preparado, bem como àquele pouco afeito a
discussões poético-formais de quaisquer tipos, como é o caso deste que vos fala...
– Oh, meu Deus!
Também,
não é preciso, todavia, um diploma universitário de qualquer tipo para perceber
que, em sua poesia, Heitor Brasileiro não é um homem de comportamento fechado –
defeito terrível de muitos pequenos e grandes bardos –, digo: de se apresentar (enquanto
poeta que é) fechado ao mundo. Como queria um T.S. Eliot, o autor de O chão e a nuvem não foge “ao desenho de
autorretratos nem de confissões pessoais”, sem que sua veia poética se perca
por causa disso. Tudo que se lê, em O
chão e a nuvem, é de uma autonomia muito sagaz, e digo até sem vergonha, pois
se lá existem temas fortes à pessoa de Heitor Brasileiro Filho, os mesmo
poderiam ter um alto preço ao poeta.
Uma
coisa é certa, este versificador de formas livres e, às vezes, até descuidadas,
sabe (como poucos) captar a essência espiritual de pessoas de modos e vidas
simples, somadas, evidentemente, aos modos e, quem sabe, à vida simples dele
próprio. Seus versos, diga-se não só de passagem, têm uma espécie de engenharia
que muito contribuem para isso. E, se não bastasse, aglomeram um imenso cabedal
de sons, imagens e efeitos sinestésicos tão dissonantes, muitas vezes, que só
poderiam terminar numa mistura tão inusitada quão intensamente reveladora. É o
caso de versos como os contidos em Soluços
Sísmicos:
Farto é o fogo
dos vulcões
julgados extintos
soluço sísmico
na contração do parto
pende um quadro
trêmulo
na parede do útero
Sem a distorção
da moldura
arde uma tela
de Cícero Matos:
deserto
a ser florido
rio morto
a ser aguado
Jacobina
não é apenas um retrato
na
parede
um berço
a ser embalado.
os do intricado e revelador O grande espetáculo da terra:
Hoje não vou à Broadway –
pois não é que nunca vou à Broadway –
que importa fogo ou neve em New York?
Vou ficar para o grande espetáculo da terra
como o circo de Maru
com a rumbeira Margareth
e os clowns
Chega-Chega e Batatinha
no ritmo inebriante de Tijuana Taxi
meu Deus, que fim levou a rumbeira Margareth
delírio da criançada de perdida infância
casou-se e foi para Feira de Santana
véus – muitos véus – iam-se dissolvendo um a um
agora grinaldas, o buquê, girândolas de pétalas
uma tiara de corações partidos
e aquela calda toda
de branco
imagino-a sob o altar da Catedral
da sagrada Nossa Senhora de Sant’Anna
ao eterno som de Tijuana Taxi
“Pã! Parampampã-pã-pã-pã!”
(apoteose dos grotões de minha terra:
na aurífera
na agrícola
nessa imensidão distante e tão próxima
como a antiga cidade de Jacobina
sem o arpejo, o canto, o desespero de Bob Silva
sem o auto-faltante da Rádio Nacional
nem a doce viola de Paulo da China
numa esquina perdida da Rua Ana Nery
mas cristalizada numa antiga cantiga)
Há um momento em que os malabares
eternizam-se
no ar
e o trapezista projetava-se
para o alto e precipitava-se
sobre um assoalho de taipás
para o delírio da meninada
sem infância
sem rede
sem coração
e lá estava o homem-borracha
estatelado em linha reta
– e a
linha tênue –
Na linha oblíqua do chão
“Pã! Parampampã-pã-pã-pã!”
Têm-se infância e memória?
A quem importa a ruína do Empire State?
Que importa a estrutura vítrea do Louvre
o burburinho do Quartier Latin
as ruínas gregas e as pirâmides no Cairo
o Coliseu e o túmulo de Tutacamon?
Meu Deus, o que importa
a privada de ouro de um sultão em Omã
se o levante do Oriente
é o que há de mais moderno?
Que importa aquele edifício em Dubai
ante o singelo pedido da natureza –
subcutânea tatuagem e a fina estampa da pele?
Deem-nos infância e memória
e ficaremos para o grande espetáculo da terra.
ou mesmo nos versos, como dirá Jorge de Sousa
Araújo, de “solução simples e grande gozo estético”, contidos em Lirium:
quem
bem me
quer
não me
despe
ta
la
Mas cuidado, confissões
de poetas não tem valor algum para a obra de arte se não forem compostas como obras de arte. E versos como os contidos
em Soluços Sísmicos e O grande
espetáculo da terra, bem como a todos pertencentes em O chão e a nuvem são bem mais que meras confissões de um menino
ainda presente num homem adulto – tema, aliás, caríssimo ao velho Manuel
Bandeira – mas que não se encaixa muito bem à obra de nosso jacobino-ilheense
que, acima de tudo, quer se vestir de muita maturidade em tudo que faz e
escreve. É preciso, antes de qualquer interpretação ligeira, ler tais poemas
como uma grande crítica à política, ao mundo, ao cotidiano, à hipocrisia dos
homens e outras tantas temáticas ali presentes e tão prontamente reveladas por
uma poesia muito fácil de compreender; contanto que não se entenda “fácil”,
aqui, como sinônimo de coisa pouca ou sem grandes significados, pelo contrário:
um bom poeta, formal ou não, erudito ou afeito às cantigas populares, tem de
saber dialogar com o público que carrega sua poesia e a quem ela pertencerá
quando este se for deste mundo para se misturar ao húmus dos monturos e coisa e tal.
É
impressionante a capacidade que Heitor Brasileiro Filho tem em criar uma
espécie de background emocional em
seus poemas, fazendo com que a força dos elementos significantes de seus versos
pouco precise dever aos elementos de sua estrutura sonora ou rítmica, ao tempo
que tudo isso nasce de uma disposição muito engenhosa, como já disse. Assim
sendo, Heitor Brasileiro Filho pode muito bem se sentir à vontade para
reivindicar temas tão pessoais e que lhe trazem conflitos tão arrebatadores,
pois, ao se reportar novamente à infância, e com ela, por exemplo, a um circo
de onde a alegria e a ingenuidade de menino dão lugar aos primeiros delírios
eróticos de rapaz – como se pode facilmente perceber em O grande espetáculo da terra –, fica fácil, ao leitor, mergulhar no
turbilhão composto tanto de alegrias bem como de profunda angústia; de
esperança e tristeza; fantasia e realidade... e tudo o mais que se pode extrair
mesmo de uma leitura menos cuidada de versos como os de Heitor Brasileiro Filho
e que, em certos momentos, nos parece ser tudo que ele possui de real e de
valor. Eis a força da sinceridade de sua lírica e da maneira apaixonada com a
qual o poeta entrega-a ao seu público.
A facilidade em captar
diferentes planos para um mesmo tema ou efeito imagético, independentemente de
se tratar de um tema autobiográfico ou uma evidente intertextualidade, é, quem
sabe, a parte mais bem elaborada de O
grande espetáculo da terra e um caractere muito revelador em tudo que diz
respeito ao seu livro, O chão e a nuvem.
Com isso, Heitor Brasileiro Filho consegue poemas ao mesmo tempo tão belos
quanto elaborados dentro da melhor técnica artística possível e compreensível,
ou como dirá o professor Jorge de Souza Araújo, na apresentação deste mesmo
livro: “um poeta que se chama Heitor – evocando acordes de um Villa Lobos – e é
brasileiro no sobrenome e na natividade de ações afirmativas, tem, neste O chão e a nuvem, um agudo repertório de
espantos, uma frequência de ironias, uns remates de mímeses, coincidências fabulares, diálogos e interlocuções com
outros comparsas (a exemplo de Ferreira Gullar) a que não podemos deixar de
apreciar e refletir”. Em suma: a poesia de Heitor Brasileiro Filho se quer uma
poesia plena em sua essência, ou seja, quer nascer e se firmar através da documentação dramática que só a perplexidade aliada a uma carga lírica, tão técnica quanto
emotiva, pode nos trazer.
Se há algo de realmente
muito agradável na poesia de Heitor Brasileiro, mais até que a sua evidente
capacidade poética, é a sua total incapacidade para o “mascaramento”, tão comum
tanto ao poeta moderno quanto ao contemporâneo. Por isso mesmo, é mais que
evidente que um poeta que escreve um livro como O chão e a nuvem se sinta tão livre para eleger temas como os que
nele se encontram; capazes mesmos de fazer com que uma linguagem que não se
pretende mais do que simplória adquira conteúdos às vezes tão mágicos e cujas
metáforas possam abrir mãos de suas relações analógicas criando imagens tão
dissonantes e símbolos tão dissolventes que, aliados a temas tão pessoais, e,
não raramente, caros ao seu autor, capazes de trazer à superfície dos versos
uma pesada carga de emoções – nem sempre agradáveis – possam criar poemas como
esses: frutos de sonhos e de pó.
Candeias,
9 de novembro de 2013.