No ponto de encontro entre estes dois movimentos tão antagônicos, encontram-se, mais diretamente, dois poetas demasiadamente originais, cujo legado formal e sensorial de ambos, livrá-los-ia da idéia de poesia obscura, compreensível a uma parca minoria, que se recusava às sensações elementares em nome de um culto à forma meramente dita e aos malabarismos sem fundamento ou conteúdo. São estes: Augusto dos Anjos – de quem já tive o prazer de falar noutra oportunidade e cuja concentração no conteúdo independentemente de sua linguagem alardeadamente cientificista e demasiadamente metafórica, que em nada contribui para nos privar daquele prisma que a perplexidade direciona aos nossos olhos, tornou-o “popular” ou, pelo menos, provocante ao nosso pasmo ante à sua imensa prioridade poética, apesar das excentricidades das quais sempre foi acusado – e Sosígenes Costa.
Vivendo vida adulta de 1900 até a sua morte, em 1914, Augusto dos Anjos coexistiu com os mais diferentes estilos literários e, respectivamente, com escritores que, além de se integrarem a estes estilos, levaram consigo uma cultura erudita de massa e seus rudimentos, como Aluísio Azevedo, que morre em 1913; Inglês de Souza, morto em 1919; Machado de Assis e Arthur Azevedo, falecidos em 1908 para citar realistas e naturalistas; além de poetas parnasianos, simbolistas, seus colegas, por assim dizer, pré-modernistas, e outros, como Coelho Neto, morto em 1934; Alberto de Oliveira, 1937; Raimundo Correia, 1911; Olavo Bilac, em 1918; Joaquim Nabuco (este, ainda, um romântico, no melhor sentido do termo), em 1910; Rui Barbosa, em 1923 e, claro, Euclides da Cunha, em 1909. Sobre Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar, entre muitos, aponta-nos o caráter inovador – modernista – da poesia do bardo paraibano: é quando ela rompe com as muitas conveniências verbais e sociais da época, levando, o Augusto dos Anjos, a uma mescla perfeita entre a beleza e o asco, entre os momentos sublimes e toda a sujeira da vida, sem contar certo prosaísmo, que triunfa sobre a rígida linguagem de seus sonetos... isto é ser ou não ser modernista?
Ao contrário do bardo paraibano, que via na ciência e na própria história do homem, um meio de se chegar ao belo e à construção de uma arte demasiadamente sincera, o poeta baiano, nascido sob a decadência de nosso eruditismo mais secular e aascenção de um modernismo errôneo promovido pelos paulista de 1922, constituiu sua arte e buscou a beleza através da percepção sensorial e da idéia de “poesia pura” que o Parnasianismo (e seus prosélitos) e os Simbolistas (de posse de um cabedal parnasiano) lhe deram. Sem se prender, demasiadamente, à realidade, nem às suas formas mais frias e degradantes, como o poeta do Eu, Sosígenes Costa não se permite a uma interpretação do real por meio de uma idealização – pelo menos eu não a vejo assim – das coisas, mas uma “descortinação” de suas camadas mais cruas, criando uma poesia que se origina, única e exclusivamente, da força contemplativa, do olhar admirado, do espanto diante da beleza das coisas na maneira mesma com que estas se apresentam ao poeta, bem como a todos nós.
A poesia de Sosígenes Costa é a poesia da contemplação, de quem traz uma espécie de amor ao belo, presentes nas coisas tangíveis e imediatas, e ao imagético, não por ser poeta – simplesmente – mas por amar demasiadamente, embora somente na condição de poeta – e poeta dos melhores –, é-lhe possível atribuir, ao mesmo tempo, tamanha simplicidade temática e força versânica, como, bem mais tarde, o fará Bernardo Linhares (outro poeta baiano), na primeira parte de seu livro As Flores do Ocaso. Ambos farão de sua poesia uma celebração constante das formas, das cores, da natureza e da ação propriamente dita do contemplar... (e, aqui, eu parafraseio as palavras de Henrique Wagner, no prefácio do livro de Bernardo). Olhem só o caso de Sosígenes Costa:
Resplandece o crepúsculo de jade,
de turquesa, de opala e cornalinas.
Pelos céus há pavões.Toda a cidade
é lilás com repuxos de anilinas.
As aves cor de gesso, à claridade
do acaso, ficam quase solferinas.
A cor douradas agora tudo invade,
tornando as passifloras ambarinas.
A natureza cintilante e amena
sardanapalescamente se decora,
brilhando mais que as asas da falena.
Todo o horizonte de lilás se enflora.
Traja galas de príncipe a açucena.
Não parece o poente mas a aurora
Agora, o de Bernardo Linhares:
Tecendo e penetrando a nova aurora,
a lua nova agora devaneia.
Além da vela, vibra a flor da flora.
O azul cavalga o dorso da sereia.
Nascendo rosa toda passiflora,
clareia o amarelo e o azul semeia
seus tons, seus entretons, fazendo a hora;
e o azul cavalga o dorso da sereia.
No verde, coroada por gaivotas,
a lua nova permanece acesa.
Feliz, a flor do mar dá cambalhotas
mostrando sobre as asas seu sorriso.
A vida segue a trilha da beleza
do azul que faz de tudo um paraíso.
Tendo como ponto de partida “a rápida visão, a captação imediata do momento, à maneira de um impressionista do verso, transformando-o em poesia”, como bem acentuou Celina Scheinowitz, em O Cromatismo poético: os Sonetos Pavônicos de Sosígenes Costa, numa profusão de imagens sensoriais, para onde o pessimismo e o sofrimento típicos do existencialismo ateu não têm voz nem vez, abrindo-se, cromaticamente, a uma percepção viva das coisas, onde só os sentidos perecem interessar quanto mais mesclados possam parecer, ou, como melhor acentuou Florisvaldo Mattos, em Travessia de Oásis: a sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, prolifera, na poesia do bardo baiano, “um portento trânsito de percepções, determinado pelo entrelaçamento dos sentidos, facultando múltiplas combinações que dão suporte a imagens encarnadas de transmitir o conteúdo de um fato acontecido na ordem natural ou pessoal”. Este suporte imagético, entretanto, é fruto muito mais do ritmo, da musicalidade e da força moldável de sua métrica do que de seu gosto sensorial.
Esta musicalidade, presente em sua poesia, em certos pontos, parece-me servir de meio para arrancar, de seu leitor, a atenção mais acurada e meramente racional, que, entre tantas coisas, roubaria, a seus versos, esta extravagante contemplação do instantâneo, na qual toda a sua obra, principalmente a mais madura, fundamenta-se, e, sem sombra de dúvidas, donde consegue extrair originalidade e beleza da mais excessiva abstração, graças a um domínio muito pessoal sobre a palavra, numa intuição particularmente sensível dos efeitos cromáticos, rítmicos e musicais, encontrando maior representação somente, entre seus contemporâneos, nos sonetos, de Carlos Pena Filho, como neste, do poeta pernambucano, que se segue:
Entro em teu breve instante, onde os minutos
são três pássaros líquidos e enormes
e contemplo os gelados aquedutos
guardiões do silêncio, enquanto dormes.
Pouso a cabeça nos teus lábios sujos
de mundo e de tempo, e vejo que possuis
em teus seios, dois bêbados marujos
desesperados, sós, raros, azuis.
Enfim, além (no além de tuas pernas
onde Deus repousou a sua face
cansado de inventar coisas eternas)
desvendo ao desespero de quem passe
a rosa que és, a mística e sombria,
a noturna e serena rosa fria.
Porém, esta proximidade com Carlos Pena Filho, dar-se-á, também, no campo da influência que a estética de Marllamé e Paul Válery exercerá tanto em um quanto noutro. Esta influência da poesie pure garante a Sosígenes Costa uma ordenação lingüística e uma rítmica do verso que se farão necessárias à menor compreensão que se possa fazer de sua poesia, a qual, aliás, dispunha de um conjunto de instrumentos poéticos e verbais de primeira grandeza, essenciais ao seu trabalho de poeta, ao mesmo tempo, que afirmava a “modernização” de sua linguagem, bem como a inovadora visão de mundo que se alinhava à sua sensibilidade formal e musical, no mesmo instante que se fazia valer as influências de uma visão, por assim dizer, passadista, fazendo-o se diluir nos sistemas expressivos de autores do passado que lhe serviam de base para que pudesse, antagonicamente, andar com as suas próprias pernas. Não obstante, é na busca de uma modernidade – e não na afirmação da forma ou nos valores dos grandes mestres do passado – que reside os grandes versos de Sosígenes Costa, pois, ao experimentar demasiados caminhos, também percorridos por seus contemporâneos modernistas, fez com que nem tudo que escrevia fosse realmente digno de publicação e, para falar a verdade, quando, voluntariamente, afasta-se da ordem, da música e do exotismo de seus sonetos, atirou-se, propositadamente, num abismo de artificialismos e de excessos esquemáticos que transformaram sua poesia “moderna” em algo muito mais falso do que os ortodoxismos parnasianos que o antecederam, fazendo com que exista muito mais riqueza de pensamento e perfeição artesanal – num rigor que fornece um modelo exato de força e beleza – num Vaso Grego, de Alberto de Oliveira, do que em suas Cantigas de Romãozinho. Fora do campo do soneto, a poesia de Sosígenes Costa é mera idéia sem prática ou significado pleno, fazendo-o cometer os mesmos erros de Jorge de Lima, em Poemas Negros, e com que seu Iararana seja, à maneira de um Macunaíma, de Mário de Andrade, uma obra-prima que não saiu uma obra-prima.
Voltando à pátria do soneto, de onde jamais deveria ter saído, e, de onde o seu senso de melodia não transpõe o inventivo, a sua poesia sensorial – e, entre tantos sentidos, o da visão é o que está acima de todos – mergulhamos de cabeça no mundo das cores, cuja função de potência simbólica, para um aprofundamento psicológico mais apurado, remete-nos imediatamente a um mundo de instantâneos, de onde se liberam uma profusão de forças interiores que nos conduzirão aos mais diferentes níveis ópticos, donde o poeta se submete a um círculo mágico de efeitos poéticos que ele próprio cria para lhe conferir o máximo de expressão melódica e engenho lingüístico. Assim sendo, a poesie pure é, realmente, uma meta em prioritária em toda a sua obra e, ao mesmo tempo, a primeira de suas muitas características a serem negadas, pelo muito que tenho visto e lido, pela grande maioria de seus críticos que querem enxergar, em Sosígenes Costa, algo como um poeta para além de sua poesia, para além dos elementos primordiais de seus versos, para além do contexto sócio-cultural ao qual se inserira. Porém, ao menos que quem o esteja lendo seja um completo idiota, a sua poesia não é uma poesia para fora da plasticidade... algo, aliás, que não caracteriza, pelo menos para mim, nenhum problema.
Em sua poesia, e, principalmente, em seus sonetos, a plasticidade se impõe de maneira primordial por não haver quase nada que se contextualize fora deste universo plástico, desta revelação que lhe fazem o agora, e a perplexidade advinda do imediato. Esta plasticidade não pode, e nem deve, passar desapercebida nem ao analista literário nem, muito menos, ao leitor ávido por admirar. Do contrário, vejam este belo Soneto ao Anjo, de 1930:
Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios,
quando o poente cor-de-rosa e doce
punha pavões nos capitéis assírios.
Teu beijo como um pássaro me trouxe
o mais azul de todos os delírios.
Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios.
Só tu agora colhes azaléia
e os cintilantes cachos da azuréia,
mágica flor que em meu jardim nasceu.
Só tu verás os lírios cor da aurora.
Meu pavão dormirá contigo agora
e o meu jardim dourado agora é teu.
A precisão expressiva, na poesia de Sosígenes Costa, é tão instantânea quanto o seu gosto pela captação e apreensão do imediato. Mas tal precisão, em seus Sonetos Pavônicos, vai muito além da mera precisão artística e nem parece atingir um estado puro de beleza onírica, o qual, aliás, confere-lhe ainda mais a força plástica e sensorial de seus versos, registrando momentos e – por que não? – realidades sensíveis à percepção de seus leitores, bem como dos mundos paralelos e inventivos. A sua poesia, apresentar-se-nos-á como uma poética tanto da ordem quanto da desordem, tanto do espanto e da denúncia, quanto da vontade de desvendar seu universo plástico e a eminência dos corpos físicos transformados em palavras. Em Sosígenes, as “emoções e estados de espírito ganham saber e palpabilidade, como que beneficiários de uma lição natural, materializam-se em campo propício a reconfigurações”, como dirá Florisvaldo Mattos.
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Retornar às velhas formas, abraçar novas – sobre o gosto de estímulos dentro e fora do campo artístico –, reinventá-las, alinhavá-las e misturá-las, para muitos pode parecer um serviço, uma obrigação óbvia e simplista, mas, no caso de Sosígenes Costa – e, diga-se, um caso raro – tudo parece caminhar para um estado natural de coisas, de onde o mais puro, o mais simples e o menos imageticamente sentido, ainda que poeticamente e demasiadamente elaborado, revela-se importante, por mais que se nos mostre puro, livre e auto-suficiente. Como acontece a qualquer grande poeta, a obra de Sosígenes Costa caracteriza-se, antes de tudo, pelo domínio técnico em seu campo de expressivo e formal, porque a grande realização, e a grande peculiaridade da poesia, como afirmará César Leal, não é alguém emocionar-se com o pôr do sol, mas a de possuir capacidade técnica “para erguer uma estrutura lingüística a partir da emoção que tal fenômeno possa produzir em nosso espírito”.
O autor de Os cavaleiros de Júpiter pensava em Emílio Moura quando escreveu esta paráfrase de Gautier. No entanto, isso não significa que tais palavras não se apliquem – e, talvez, bem melhor – a Sosígenes Costa, que, entre nós, baianos, realizou, também, um milagre poético que só a poesia grapiúna – aquela que, segundo Gustavo Felicíssimo, nos deu, tratando-se da Bahia, a melhor poesia do século XX, e, em termos de Brasil, um dos nossos maiores poetas – poderia nos conceder.