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Cantares de Arrumação:
panorama da novíssima poesia de Feira de Santana e Região (Mondrongo, 2015). |
“CANTARES DE ARRUMAÇÃO”
(por Lucifrance Castro)
Feira de Santana, além de ser um dos
mais importantes polos industriais e comerciais do Brasil, há muito deixou
claro que é igualmente importante culturalmente. Uma cidade que possui
bibliotecas, Filarmônicas, centros culturais, Universidades, Faculdade de
Música; rica de bons músicos, de teatro, e, claro, de grandes poetas e
escritores. Algo que se pode perceber pelos muitos feirenses que se têm
destacado no cenário literário nessas últimas décadas.
Muitos desses mais novos nomes podem
ser conferidos na antologia Cantares de Arrumação:
panorama da novíssima poesia de Feira de Santana e Região (Mondrongo,
Itabuna, 2015), organizada por Silvério Duque, com lançamento marcado para o
dia 03 de março, quinta-feira, no Radiola Lanchonete Cultural, que fica
na rua 1o de maio, no 20,
no bairro São João, rua que fica de
frente ao Mercantil Rodrigues da Avenida Maria Quitéria, cuja proposta não
é menos que compilar, em uma mesma obra, os principais nomes da literatura
feirense e região; àqueles que lançaram seus livros a partir dos primeiros anos
deste século, e que vêm, cada uma à sua maneira, garantindo destaque e
prestígio nos meios literários desde então.
A ideia de organizar um panorama da
novíssima poesia feirense e região, segundo seu organizador, parte de um
projeto muito maior e há muito posto em prática pela Mondrongo, afirma Silvério
Duque. Ao lançar sua antologia: Diálogos:
panorama da nova poesia Grapiúna, o poeta e editor, Gustavo Felicíssimo, audaciosamente, achou por
bem da literatura baiana e de seus poetas e leitores, estender tamanho trabalho
a outras regiões do Estado, e, assim, traçar, da melhor forma possível, um
painel com o que de mais novo e melhor se tem feito em matéria de poesia em toda
Bahia; desta forma, foram-se editando um “panorama” da poesia da região norte,
chapada, oeste da Bahia, etc.
A incumbência de traçar um retrato da
novíssima poesia de Feira de Santana e Região ficou com o poeta Silvério,
natural de Feira, que é também músico profissional e professor de Literatura
Brasileira e História da Arte. Silvério, que é autor de cinco livros de poesia
(três, pelo menos, no mercado): O crânio
dos Peixes (Ed MAC, 2002), Baladas e
outros aportes de viagem (Edições Pirapuama, 2006), A pele de Esaú (Via Litterarum, 2010), Ciranda de Sombras (É Realizações, 2011) e Do Coração dos malditos (Mondrongo, 2013), diz que a maior
dificuldade de se fazer um trabalho como esse é estabelecer critérios rígidos
para compilação em um universo tão vasto de ideias, estilos e temas; por isso
mesmo, segundo ele: “tive que escolher não só autores nascidos em Feira, mas
autores que escolherem a ‘Princesa do Sertão’ para morar, ou se fizeram,
educaram-se e se descobriram versificadores por aqui, principalmente através da
UEFS”. E completa: “a antologia era para destacar os principais nomes de nossa
poesia entre os novos poetas, mas escolhi poetas mais experientes por terem
lançado seus primeiros livros há pouco; ou seja, estão começando agora também;
são tão ‘novos’ quanto os demais”.
Além da organização de Silvério Duque, Cantares de Arrumação conta também com capa
ilustrada por Gabriel Ferreira, artista plástico nascido em Tanquinho, ou seja,
completamente inserido no contexto da obra, e texto do poeta Antonio
Brasileiro. Cantares de Arrumação
conta com nomes de significativo destaque na atual poesia baiana como Luiz
Antonio Carvalho Valverde, Sandro Penelú, Anne Cerqueira, Araylton Públio,
Patrice Machado de Moraes, Fábio Bahia, Idmar Boaventura, Herculano Neto, Ísis
Moraes, Ribeiro Pedreira (Dado), Ronald Freitas Anunciação, Nívia Maria
Vasconcellos, Valquíria Lima, Thiago El-Chami, Wesley Correia e Clarissa
Macedo. Para o poeta Antônio Brasileiro, que também prefacia a antologia, são
“todos herdeiros da grande linhagem que vai de Baudelaire, na França, a
Drummond, entre nós, passando por Mallarmé, Rimbaud, Valéry, Eliot e o grande
Fernando Pessoa, estão (e sabem disso) imbuídos daquela certeza maior dos
criadores: há sempre que perguntar pelo sentido das coisas e do mundo. Como,
sobretudo, quer a grande poesia”.
O livro conta também com um estudo de
seu organizador sobre a história da poesia feirense, do século passado até
agora. Segundo Silvério Duque: “a ideia do estudo é unir essa produção da
poesia feirense desde Aloísio Resende, no inicio do século passado, seguindo
com Eurico Alves Boaventura, e revista Arco
& Flexa, não esquecendo, obviamente, do grupo Hera e seus representantes, unindo-os juntamente com seus
contextos histórico-culturais a esses novos nomes que se descobrem agora em
Feira de Santana”. Segundo o poeta e jornalista Emanoel Freitas, “a proposta de
Silvério Duque em organizar uma antologia de novos poetas feirenses é mais um
testemunho do desenvolvimento cultural de nossa cidade que agora ganha um
registro especial” (Viva Feira,
editorial; 25 de janeiro de 2016), e está mais do que certo.
O que esperamos de um trabalho como
este é que ele seja lido e estudado, independentemente de concordar ou não com
as escolhas e critérios do autor, para que estudos semelhantes surjam, e que a
poesia baiana, e, juntamente com ela, a feirense, alcance alturas cada vez
maiores.
Candeias, 25 de janeiro de 2015.
***
ANTOLOGIA
Travessia
(por Luíz Antônio Carvalho Valverde)
Pasmo de
beira de rio
sofrendo vagar,
pelo que está no meio,
o impossível.
Na terceira margem do adeus
vasto céu, a suprema intriga,
onde sabemos que achar
é não ocultar o homem,
mas expô-lo por inteiro e perdido,
paralisado na travessia.
Pedras
e ruas
(por
Sandro Penelú)
A
rua não é mais a mesma;
a
noite não é mais a mesma;
a
Lua procura ansiosa;
o
teu corpo que guarda um corpo.
As
pedras da rua não são mais as mesmas...
Busco
inútil pelo sorriso.
A
roseira ainda guarda um fio de cabelo
que
o vento brinca, balançando-o.
As
pedras, a rua e eu
não
são mais os mesmos...
Poema
revisitado
(por Anne Cerquiera)
Quero
te dar um presente, meu amigo
aquele velho livro ou disco
porque aqui tudo é velho
até mesmo o que acaba de sair do forno
já sai condenado. Vou ler um dos meus poemas
preferidos
para você achar que a vida tem jeito
e só os poetas sofrem
como Maiakovski
ou Bukowski que queria derreter a morte
com versos
como se derrete manteiga
e ele nem tinha ilusões, veja só
sinto pena.
De mim e de você que nada somos
e desafiamos a morte no supermercado.
Quero te dar um presente, meu amigo.
Talvez uma quantia em dinheiro
que te sustente na velhice se você chegar lá
envergado desse jeito
inútil desse jeito
da mesma forma que eu
que já vivi noventa anos em quarenta
(e foram só meses)
e nem tenho nada para te oferecer
pois tudo é gasto.
Vamos ouvir música
comer bobagens
atravessar a rua sob o sol de meio dia
porque é isso que nos resta.
Sou infantil, egoísta e confusa e quero te dar um presente, meu amigo
para que você me odeie profundamente
e diga:
não sei o que fazer com isso. E assim seremos iguais mais iguais que os outros.
Numa irmandade que não nos salva
nem preserva
não é bondosa
nem misericordiosa
nem má. Não existe por códigos especiais e secretos
nem nos torna especiais ou melhores
ou piores
ou diferentes.
Não nos subtrai, nem acrescenta. Mas pela graça de Deus
não nos pede retorno.
Toma é tua essa pedra.
Verbo.
Meu amigo, não sei para que serve
e talvez seja esta sua única função.
Trato
feito
(por
Araylton Públio)
Meu
rei, dê-me sua licença
Vou
ganhar o mundo todo
Pra
pegar tudo que é meu
Só
lhe rogo a dita bença
Pra
ventura deste seu
Ela
há de ser a bonança
E
me encher de confiança
Tocha
aberta contra o breu
Dê-me
logo a tal licença
Não
posso me demorar
Sigo
reto em minha crença
“Sei
que um dia vou voltar”
Por
ora me espera a prenda
Que
tenho de conquistar
Coragem
pra qualquer senda
Sei
que sua bênção dá
Não
se aperreie, eu volto
Dito
e feito, pode crer
De
promessa, jura ou voto
Como
eu posso me esquecer?
Meu
rei, deixe-me ir embora
Tenho
muito a conhecer
Por
mundos aí afora
Desejo
me embevecer
Só
lhe peço essa graça
Para
em paz poder partir
Vou
atrás da própria caça
Melhor
forma de existir
Agradeço
pelo amparo
Pela
consideração
Mas
o meu caminho é caro
Trato
feito, beijo mão
Amor,
escreve em mim teu alfabeto...
(por
Patrice de Moraes)
Amor, escreve em mim teu alfabeto.
Registra
a cor local do teu traçado.
Povoa
cada milímetro ofertado
como
povoa a planta o arquiteto.
Implanta
introdução do bem concreto
que
és tu, neste papiro rasurado.
Teu
desenvolvimento inacabado
fará
da conclusão pseudoprojeto.
Porque
tudo que almejo é ser um texto
composto
à densidade do contexto
do
vernáculo em ti constituído.
Um
texto de idioma universal
que
assente o seu império lexical
fluente
à proporção que seja lido.
HAI-KAI
(por
Fábio Bahia)
Onde
está da vida, a magia?
Ora,
até os animais sabem
vivemo-la
todos os dias.
Elefantes
(por
Idmar Boaventura)
Há algo de mágico nos elefantes;
estes,
no trapézio, são só engraçados.
Ainda
assim, há algo escondido
em
seus olhos:
são
elefantes, ainda lembram.
Se
não havemos de saltar, por que
haveríamos
de saltar?
Vejo
do alto os homens, e os homens doem.
Há
sempre algo de triste em ser uma estrela.
Direito
prescrito
(por
Herculano Neto)
nasci
com
defeito de fábrica
defeito
na alma
minha
mãe não notou
meu
pai não notou
ninguém
notou
só
perceberam
quando
achei de me remendar
me
colar
me
parafusar
aí
já era tarde
Ultimato
(por
Ísis Moraes)
Quem
navega naufraga,
meu
caro Ulisses.
Pequeno
tratado sobre a inveja
(por
Ribeiro pedreira (Dado))
Hoje
eu descobri
que
a inveja envelhece.
Só
que as rugas aparecem
não
na pele, mas no olhar.
Uma outra história
(por Ronald Freitas)
Na curva daquela estrada
a escuridão não veio.
(na curva, o dia era apenas sol)
Pena que não passamos por aquele caminho,
vivemos alheios às curvas.
Escondedouro
do amor
(por
Nívia Maria Vasconcellos)
O
amor não está na estrela
que,
ao cair, carrega o pedido sussurrado,
ele
está no olhar que a percebe e espera.
Não,
o amor não está nas cartas
lançadas
por mãos sobre mesas postas,
ele
está na tensão de quem as ouve e deseja.
Búzios,
números e datas
não
contêm o amor,
ele
não está numa procura.
Rezas,
promessas e velas
não
trazem o amor,
só
a esperança de encontrá-lo.
Mas,
ninguém encontra o amor,
ele
é (misteriosamente) despertado...
num
momento de distração e abandono.
Movendo-se...
(por
Valquíria Lima)
Como o vento,
assim
meus pensamentos.
Como
a brisa,
sempre
precisa.
Como
a tempestade,
baila
o meu corpo.
Como
os raios,
Explodo.
E
de mim
eu
saio,
ensaio
e
volto sempre.
Na
dança da minha cabeça
No
bailar dos meus olhos.
No
balançar da noite
e
no movimento dos dias!
O
Herege
(por
Thiago El-Chami)
"Meu
irmão, tu és réu desta heresia!
Grave abjuração, incúria extrema!
Renegaste ao teu Deus em voz blasfema!
Pagarás
com teu sangue à Confraria"!
"Há
um engano, senhores! Na homilia
que
ora vos submeto, a Lei Suprema
em
mil versos proclamo. Vede o tema!
Eis
que apelo à vossa fidalguia"!
Veio então a sentença: "o teu Destino,
ao
quebrar o silêncio do Divino,
e
ao fazer desta quebra o teu ofício,
será
errar pelo mundo, só, perdido
e
falar, sem jamais ser compreendido:
ser
poeta, homem: eis o teu suplício"!
Ação
de despejo
(por
Wesley Correia)
Chegaram
o promotor,
o juiz,
o policial.
Só
os cristais,
na
prateleira empoeirada,
permanecem
incólumes.
Daniel
(por
Clarissa Macedo)
Vem descendo da torre
como
quem desce ao Jardim.
O
semblante em asas.
Caminha
forte, assombrado
de
luz, coberto de si.
Na
cova, onde pasmado
contempla
jubas alegres,
toca
o fogo que aparece:
anjo
comensal da Graça.
Nessa
Fé, toda em redemoinho,
já
não se sabe quem é
anjo,
leão, homem ou nada.
Todos
voam na cova
em
aurora, todos passarinhos.