segunda-feira, 26 de agosto de 2013

"A ANUNCIAÇÃO" DE FRA ANGÉLICO...





A Anunciação de Fra Angelico (Guido de Pietro) (1441-43):
Afresco; 187 x 157 cm – Museo di San Marco, Florença.









à amiga Sonia Coutinho, com grandessíssimo afeto... 

  



– Que o Teu Espírito, Senhor, adentre
o meu corpo, extasiado por conter-Te.
E, nesse transbordar, eu posso ver-Te
na chama casta que me invade o ventre

que, agora, abriga Teu altar e berço.
Toda carne contém algo de pressa,
alguma coisa aquém dessa promessa
que se deixa infundir em todo Terço.

Mas, em mim, como em tudo, não me basta
ser minha; antes, preciso ser-me Tua, 
como é da chuva a terra e desse intenso

mar, molde da imaginação mais vasta,
a mais sublime e inesperada lua,
para nascer, de mim, o Amor imenso.  







Este soneto é um dos poemas que integram meu novo livro Ciranda de Sombras (É realizações, 2013). Compre já o seu aqui:

http://www.erealizacoes.com.br/livros/Ciranda-de-Sombras.asp 

SÔNIA COUTINHO (1939-2013)




Sonia, também jornalista, contista e tradutora, venceu o Jabuti pela primeira vez em 1979, com o conto “Os venenos de Lucrécia”. Vinte anos depois, em 1999, ganhou pelo livro “Os seiso de Pandora”. Em 2006, recebeu ainda o Prêmio Clarice Lispector, dado pela Biblioteca Nacional, pelo livro de contos "Ovelha negra e amiga loura".






A escritora baiana Sonia Coutinho, de 74 anos, morreu, na noite de sábado, no Rio de Janeiro. O corpo da escritora baiana Sônia Coutinho será cremado nesta segunda-feira, 26, às 11 horas, no Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro. Sonia faleceu sábado, aos 74 anos, em decorrência de uma parada cardíaca. O corpo foi velado no último domingo, 25, no Cemitério São João Batista, também no Rio, onde vivia desde o final da década de 1960. Sônia Coutinho nasceu em Itabuna, em 1939, e era filha do poeta simbolista Nathan Coutinho (1911-1991), que foi deputado estadual e presidente da Assembleia Legislativa da Bahia. Seu primeiro livro, O Herói Inútil, foi lançado em 1964, em Salvador, pela Ed. Macunaíma. Romancista, contista e tradutora, Sonia ganhou duas vezes o Prêmio Jabuti de Literatura. Em 1979, com Os Venenos de Lucrécia, e em 1999, com Os Seios de Pandora. Em 2006, a escritora recebeu o Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional, para o melhor livro de contos com Ovelha Negra e Amiga Loura. Entre outros títulos da autora, destaque para Uma Certa Felicidade, Mil Olhos de Uma Rosa (2001), O Caso Alice (1991) e O Jogo de Ifá (2001). Sônia Coutinho foi casada com o poeta, escritor e jornalista Florisvaldo Mattos, com quem teve uma filha, a psicóloga Elsa de Mattos. "Ela foi uma pessoa de muita qualidade criativa e muito preparo cultural. Foi para o Rio de Janeiro e lá se realizou como uma das grandes de sua geração", diz Florisvaldo Mattos. Ruy Espinheira Filho, jornalista e membro da Academia de Letras da Bahia, recebeu com surpresa a notícia do falecimento da amiga, com quem esteve há pouco mais de um mês, em Salvador. "É uma pena que isso tenha acontecido, é uma grande perda para a nossa literatura. Sonia era uma das melhores ficcionistas brasileiras, tem um trabalho muito bom", afirma. Segundo Espinheira Filho, na conversa que tiveram recentemente, a escritora estava bem e animada em continuar produzindo. "Ela estava planejando ir a Paris lançar um livro", contou em entrevista por telefone. A escritora participou de várias antologias nacionais e internacionais e teve sua obra também publicada nos Estados Unidos, na França e na Alemanha. Seu conto Toda Lana Turner Tem Seu Johnny Stompanato, publicado originalmente em seu livro O Último Verão de Copacabana, foi incluído na antologia Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, organizado por Italo Moriconi. Em 1994, a escritora ganhou o título de mestre em teoria da comunicação com a tese-ensaio "Rainha do Crime — Ótica Feminina no Romance Policial". Sônia Coutinho era minha amiga e uma entusiasta de meu trabalho, que muito ajudou a divulgar. Guardo com orgulho e carinho dois livros de sua autoria que ela mesma me presenteou e autografou... Que Deus guarde a sua alma.



Camarão no jantar

(por Sônia Coutinho)






Chove há dois dias. A mulher sozinha trancada em seu apartamento. Está muito úmido. Acordou com o corpo todo doendo. E teve a deprimente idéia de que era reumatismo.

Depois do café da manhã, achou que era preciso mudar tudo. Como? Ah, sim, grande idéia. Na verdade, repetida ao longo de anos, a mesma idéia: tentar reativar um grande amor, que permanece em banho-maria. Morno mas ainda aquecido.

E na história desse amor há um jantar que o Homem Amado nunca esqueceu. Deve fazer vinte anos, mas ele sempre fala daquele bobó de camarão preparado por ela.

Antes, houve uma série de tentativas de sua mãe, de lhe ensinar a cozinhar. Sempre se recusou a aprender, achava careta.

Rogério, o único homem que conseguiu, em toda a vida dela, levá-la para a cozinha. Decide ligar para ele, agora.

Decorou desde o início o número do telefone do escritório de Rogério. (Um dia, lembra, disse a ele: "Se esse número, alguma vez, deixar de atender, enlouqueço. Vou ter de mudar de vida. Ou de cidade, de país, quem sabe.")

Já o telefone da casa dele, Rogério sempre deu um jeito de nunca lhe informar. Muito menos, claro, de levá-la lá. A história era horrorosa: ele era casado desde quando se conheceram, e sempre disse o contrário. Mas veio a descoberta.

Ela estava em New Orleans — sua primeira viagem aos Estados Unidos, num grupo de turismo quando ligou para aquele eterno número do escritório de Rogério e ouviu a seguinte resposta de um dos dois outros advogados associados: "Ele saiu, foi levar ao médico a esposa dele, que está grávida."

Um dia inteiro ouvindo jazz em Bourbon Street e chorando. Até então tinha sido enganada — ou se enganara, voluntariamente, em dois anos de relacionamento tórrido (de sua parte).

Liga agora para Rogério, atende um desconhecido (os dois outros advogados do escritório mudaram) e vai chamá-lo.

Que voz a dele, maravilhosa. E sua eterna gentileza.

Depois de uma rápida troca de palavras, ela convida:

— Venha jantar aqui, na próxima sexta-feira. Desta vez, será bobó de camarão, prometo.

— Que maravilha! Vou sim, sem falta – responde.

Mas sempre se mostra entusiasmado, promete ir — e fica apenas na promessa. Nunca — ou raramente aparece.

Ora, corta essa de maus pensamentos, ordena a si mesma, ao desligar o telefone.

Deita-se no sofá e avalia o convite que acabou de fazer. Foi num impulso. Talvez não devesse.

Mas há a chuva, seu quase desespero. Tudo bem, fará o bobó.

Está de férias, pode enfrentar a trabalheira. Até agora, vem convidando Rogério, com escassos resultados, para vários outros tipos de refeição. Agora, usa seu maior trunfo.

Para daqui a uma semana. Assim, até dá tempo para todos os preparativos: limpar a casa, ver se está lavada sua única toalha de mesa realmente festiva (é linda), providenciar as bebidas.

E ir logo comprando todos os ingredientes do bobó. Menos, claro, o camarão, que fica para a véspera. É um prato que se precisa começar a fazer no dia anterior, não dá para aprontar tudo no mesmo dia.

Enquanto isso, cabe uma boa faxina no apartamento, escolher as flores que colocará nos jarros. E no que fará para criar um "clima". (Decide deixar apenas alguns abajures acesos, em pontos estratégicos.)

Pensa agora no próprio Rogério, na sedução dele. Também engordou, como ela. Mas tem uma espécie de doçura que o torna lindo. Seus dedos... Aqueles dedos grandes.

Um encanto irresistível que vem.,. sabe ela de onde! Um homem fechado, misterioso, Esconde o jogo.

Enquanto durou o caso de amor deles, Rogério a fez de gato e sapato, depois vinha sempre seu perdão. Primeiro, tem de reler a receita do bobó, que não prepara há tanto tempo, ver se ainda sabe os truques.

Depois fará uma lista de ingredientes. É bom lembrar que o mercado de frutas e verduras fecha na segunda-feira.

Além de ser o único homem para quem gostou de cozinhar, em toda sua vida, Rogério é também o único que lhe inspirou amor à primeira vista. Coisa em que não acreditava, mas aconteceu.

A paixão começou quando o viu sentado a uma escrivaninha do escritório dele (precisava de um advogado, alguém o recomendara), alto, todo grande, muito sério. A tarefa da vida dela seria amenizar aquela seriedade, só que ele não deixou.

Recentemente, em conversa pelo telefone, Rogério dissera, rindo: "Você mudou minha vida..." Talvez porque soubesse que era o que ela mais esperaria ouvir, da parte dele.

Um homem bem vestido e tratado como nunca tivera igual.

Ela, que sempre fez um gênero "alternativo", ela que usava bolsas indianas, colares artesanais, ela que anda sempre com sujeitos mais para artistas, "papo-cabeça". E agora Rogério, nada menos.

Ele seria, com certeza, a grande aspiração de mulheres de outro tipo. Para ela, significava entrar no comum.

Todas gostam de flores, mas ela nunca pensara nisso a fundo. Até que, um dia, começou a achar uma orquídea a coisa mais linda do mundo. Sua paixão por Rogério ficava nessa clave.

O curioso era ela, afinal, amar com tanta intensidade um homem assim. Tirou muitas fotos dele, admirando seu perfil grego. Um amor para ela irracional, como não acreditava que pudesse acontecer-lhe.

Porque havia um detalhe: Rogério era dez anos mais novo. O que dava àquele relacionamento o indispensável caráter de impossibilidade. Era um amour fou, apesar de tudo.

Chove, chove ainda. Dá um pulo do sofá, vai tomar um banho quente. E revê mentalmente, sob o chuveiro, todos os dados acumulados, ao longo dos anos, sobre aquele homem mistério.

Primeiro, meses de paixão e cama. Depois, a descoberta de que ele era casado, o que a fez romper dramaticamente o relacionamento.

Em seguida, um período de recaídas, relações intermitentes.

Sim, admitia que gostava de prolongar as coisas, não sabia nunca pôr um ponto final, quando algo, um dia, tinha sido agradável. Apegava-se interminavelmente a pessoas, situações.

Acabou havendo, no caso do Rogério, a inevitável sublimação: uma amilié amoureuse. Alimentada por telefonemas profissionais seus, pois continuava a precisar de um advogado: as eternas questões em torno dos imóveis que sua mãe alugava.

Mas quase todas as iniciativas eram suas. Para ela, mais sofrimento do que qualquer outra coisa, mas não sabia como se desprender daquilo.

Aquela ânsia que às vezes sentia por Rogério. Era preciso controlar-se para não telefonar mais uma vez. Como se convencer, afinal, de que aquilo não renderia nada mais além, na melhor das hipóteses, de uma eterna amabilidade?

Decide sair para almoçar fora, apesar da chuva. Está acostumada a sair sozinha, a entrar nos restaurantes sem olhar em torno.

Hoje, para combater a deprê, irá a algum lugar onde nunca foi, um restaurante mais caro. Fica imaginando qual.

***


E chega a noite do prometido jantar.

Não quero descrever a angústia dessa mulher, na sala à meia-luz, enquanto o tempo passa e a comida esfria.

Rogério está atrasado meia hora, mas ela ainda não sente inquietação. De vez em quando, vai até a cozinha dar uma olhada no bobó. Para acompanhar, há apenas arroz, uma refeição simplificada.

Agora, Rogério está atrasado uma hora, mas ainda sente esperanças.

Uma hora e meia de atraso, toda e qualquer possibilidade vai desaparecendo deste mundo.

Ah, mas que história insuportável. Ah, meu Deus, que dor. Terrível, a dor dessa perda.

Um amor que, no entanto, ela continua achando que não levou tão a sério quanto merecia.

Por que teve aquela reação tão radical, quando soube que ele era casado? Por que não fez como todas as outras, foi levando? Como não percebeu na mesma hora que tinha de ser humilde, porque jamais esqueceria aquele amor?

Um homem que, quem sabe — e isso alimenta sua dor —, ela talvez tivesse conquistado, no início, se fosse mais esperta.

***

Mas há ainda um final. Que vem — ou começa a vir — quando ela descobre que Rogério estava tirando uma parte indevida do dinheiro dos aluguéis que sua mãe recebe. (No dia da descoberta, estava no escritório dele e entrou uma garota linda, com um casaco de couro preto... Sorria, sorria para Rogério.)

Mesmo assim, dias depois, cheia de alguma estranha esperança de que nada disso seja verdadeiro, apenas um pesadelo, liga mais uma vez para o escritório dele. E o telefone toca, toca, ninguém atende, como sempre temeu que um dia fosse acontecer. Repete o telefonema nos dias seguintes — e nada.

Descobre, afinal, através de um conhecido comum, que o escritório de Rogério faliu. Que há agora inúmeros processos contra ele, tido como trambiqueiro perigoso. E que ele fugiu, ninguém sabe para onde.

No fundo, porém, ela continua achando que ele apenas se atrapalhou, cedeu a tentações.

Meses se passam e ela ainda se surpreende eventualmente esperançosa de rever Rogério. O telefone pode tocar e ela ouvirá novamente sua voz. Ou ligará para o número inesquecível e ele atenderá.

Mas acaba sentindo, certo dia, depois de muito sumiço, que nunca mais verá Rogério. É uma dor profunda. Pensa ainda, desesperada, em contratar um detetive particular, para tentar localizá-lo. Mas não chega a esse ponto. Ou, pelo menos, ainda não chegou, até o momento.

Por enquanto, contrata outro advogado, numa tentativa de salvar o que ainda é possível dos aluguéis.

Um ano depois, continua amando Rogério, mas, já, de alguma forma, conformada. Outro ano se passa. A ferida ainda existe, porém, e se ela cutucar...

A essa altura só entende o que essa mulher sente quem gosta muito de jazz. E, de repente, ouve Billie Holliday cantando e, com uma punhalada no peito, identifica a melodia: Can't Help Lovin' Dat Man.











Texto extraído do livro "21 Histórias de Amor", Livraria Francisco Alves — Rio de Janeiro, 2002, pág. 83. Fotografia da autora por Paulo Marcos.