A Sutileza do Sangue, de Andre Gomes Ferraz, a ser lançado dia 16 de dezembro, em Floresta, Pernambuco. |
A VERDADE, A FICCÃO E SUAS CRUEZAS
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O ROMANCE
A SUTILEZA DO SANGUE, DE ANDREA FERRAZ
ao amigo Emmanuel Mirdad
Dispersei-me
na curva como a luz
do sol que agora estanca-se no outeiro
e assim também meu sonho se reduz
de encontro ao obstáculo primeiro.
do sol que agora estanca-se no outeiro
e assim também meu sonho se reduz
de encontro ao obstáculo primeiro.
CARLOS PENA
FILHO
No
artigo anterior escrevi a respeito do promissor trabalho de Emmanuel Mirdad, em
seu livro O grito do mar na noite, em
que ele estreia como contista. Nesse artigo, disse acreditar que uma boa
leitura é aquela que nos dá um choque de realidade, que não traz um mero compromisso
indistinto com a fantasia, mas constrói realidades. Também disse que um bom autor
precisa sempre desnudar a verdade aos nossos olhos, sem necessariamente
mascarar a beleza, e, ao invés disso, revelá-la em sua forma mais pura,
oferecê-la de bom grado, e não fingir conhecê-la. Em tempo, admoestei a quem
interessar pudesse da necessidade de nossa literatura voltar aos grandes temas
universais, e à profundeza moral e psicológica que se fez viva em nossas Letras
em um passado não tão distante.
Agora,
imaginem a minha alegria ao saber que a escritora pernambucana, Andrea Gomes
Ferraz, também estreante no mundo das Letras, aceitara o desafio – desafio que,
primeiramente, ela propõe a si mesma – de dar à nossa literatura,
principalmente à tão carecida prosa contemporânea, uma narrativa tão bela
quanto crua, onde uma construção bem elaborada dos personagens se faz à medida
que a autora mais e mais se aprofunda em suas almas, evitando a descrição banal
e meramente decorativa, desviando-se, cada vez mais, da armadilha da
trivialidade gratuita tão presente, hoje em dia, nas nossas narrativas.
Utilizando-se
períodos curtos e mesmo capítulos que não ultrapassam uma linha, Andrea dá ao
seu romance uma dinamicidade narrativa sem igual. Não se engane, porém,
qualquer um que queira argumentar que tal característica é um sinônimo de
despreparo ou falta de assunto, tudo o que está ali escrito, tudo que se conta
da vida de personagens como Pai Manoel, Zé Grande ou Padrinho Pedro, seja em
mais de três ou quatro laudas, ou numa frase que mal atravesse uma página, é
demasiadamente importante, não se pode nem se deve tirar uma única palavra ou
vírgula sem que toda uma estrutura demasiadamente bem armada não desmorone por
inteira, pois o que esta sendo dito ali é tão somente o necessário, e o necessário
é o que por si se basta; é assim que Andrea exercita o seu Ne quid nimis, compondo esses personagem à imagem e semelhança do
mundo particular, no caso o interior de sua cidade natal, Floresta, no Sertão
pernambucano, em que estão inseridos. A
sutileza do sangue é a de uma viagem introspectiva, tanto de seus
personagens, bem como de sua autora, que não teme mergulhar numa fonte
autobiográfica para, a partir daí, construir uma realidade onde esteja, mais do
que garantida, a catarse de seu leitor.
Segundo
a própria Andrea Ferraz, com quem tive o prazer de conversar a respeito de seu
primeiro rebento literário, este livro trata de “um enorme painel por onde o
leitor poderá passear, ora seguindo em frente, ora olhando para os lados”. O
tema central de seu livro não podia ser melhor, nem demasiadamente perigoso,
para uma estreante; autobiografismos, pouco ou muito, podem levar a quem os
escreve ao paraíso ou a mais completa ruína; mas se Dostoievsky e até mesmo o
Bruxo do Cosme Velho, segundo alguns, deram-se a esse risco, porque uma autora,
em seus primeiros passos, não poderia fazê-lo? Desta forma, o universo central
de A sutileza do sangue é composto de
três casas; as histórias interligam-se, gerações se misturam e culminam na
história do pai da autora, a quem, segundo a própria Andrea, não fez
concessões, e acrescenta: “Meu livro não é a biografia de meu pai. Apropriei-me
de sua figura, mas o reescrevi através do personagem, utilizando-me de ficção e
fatos reais”. Ainda segundo a escritora Andrea Ferraz, a ideia deste livro é
“mostrar as máscaras humanas” para depois deixá-las cair, e, desta forma,
contemplar os seres humanos “em seu estado mais cru”.
Os personagens de A sutileza do sangue têm uma relação
muito forte com a natureza, o ambiente familiar, a casa onde moram, a roça em
que trabalham; não se trata aqui de determinismo social, ambiental ou outros
empréstimos da literatura de Graciliano Ramos; o caso aqui é de extensão. Cada
casa ou objeto, cada roça plantada, cada sotaque, são extensões dos
personagens, de suas psicologias, de seu modo de vida, de seu caráter e moral.
Um fogão de lenha completa uma personalidade determinada, uma roça plantada é
extensão de um capricho que vem da alma mais cuidadosa, a natureza acerba são
reflexos de nada menos que a própria maneira de vê-la e dela tirar seu
sustento. Tudo é um mesmo corpo, um mesmo universo, uma visão aparentemente
primeva e utópica, mas para quem já viveu, e, principalmente, cresceu no
sertão, sabe que isso não é coisa só de literatura. Sobrevive à natureza forte
do sertão quem é forte como ela para, primeiramente, consegui entendê-la.
Moldamos a natureza a partir do molde que ela faz de nós, ou como se diz no
capítulo 21:
Quando era vivo, João
Gomes botava o tabaqueiro na janela, o vento acalmava.
Andrea Gomes Ferraz, ao
longo de todo o seu romance, vai compondo, de pincelada em pincelada, uma mais
branda, outra mais intensa, mas todas com uma profusão de cores muito fortes e
significativas, um painel cada vez mais preciso e, muitas vezes, amarescente da
vida sertaneja, mas sem os excessos dramáticos e sociais, típicos de tal
narrativa, nem com os exageros descritivos de uma natureza por vezes explorada
até o desbotamento. Tudo que é pintado aqui é extremamente poético, e ganha
forças graças a essa essência lírica que Andrea, também escritora dada aos
versos, empresta à sua narrativa e às descrições de um ambiente que, como já
disse, são extensões as almas que o permeiam. Não há, ao longo de todo o
romance, um personagem mais forte e presente – e é ele, de certo, a figura
verdadeiramente principal deste livro – do que o ambiente sertanejo onde tudo
se passa: a caatinga, ora ossuda, ora esmeraldeada; o Pageú, às vezes seco, às
vezes feroz e inundante; a cidade de Floresta e, acima de tudo, o Tempo, a
fazer com que tudo se mova, se transforme, se prolongue ou que simplesmente se
vá. É sobre a história dessa natureza e desse tempo que esse livro
verdadeiramente parece se debruçar... A sensação que mais se deixa transparecer
nesse livro é a da composição não de uma fotografia, mas de um quadro; mas não
no sentido técnico e preciso de um Michelangelo, mas de uma profusão de cores
que se desencadeiam freneticamente, não obstante, sem perder o foco da
realidade, como num Renoir, quando não desbaratando de uma vez, como um
Pollok...
Andrea
Ferraz que é admiradora e discípula de Raimundo Carrero – algo do qual ela se
enche muito de orgulho ao falar, e com toda razão –, tem, em seu mestre, sua
principal influência, obviamente; além da leitura sempre refeita de Graciliano
Ramos, mas uma influência bastante indireta – sentencia Andrea. Aliás, é
Raimundo Carrero, que já possui um Jabuti em sua galeria de prêmios, o primeiro
a falar a respeito da “estreia com maturidade” de sua prosélita; e ele fala:
O
leitor encontrará neste livro uma autora que, embora estreante, apresenta forte
maturidade. Estudiosa das técnicas narrativas, evitou escrever uma história
meramente informativa, conduzindo os personagens com a habilidade de quem já
conhece os segredos da ficção.
aproveita para acrescentar:
É certo
que Andrea Ferraz detinha esta história, que afinal é traço de sua família, mas
ela soube distinguir entre o narrativo e a verdade de forma que se trata de uma
ficção com tudo aquilo que o leitor, ao lado da autora, pode inventar e
criar.
e arremata:
A pouco
e pouco se perceberá que o texto é leve e pontual. Sedutor, no sentido de
envolver a todos nós e de nos tornar cumplices de cada personagem e de cada
situação. Creio que ao final da leitura a surpresa será enfim desvendada pela
qualidade do texto e provocará, ainda, alguma inquietação e busca.
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Andrea
é, sem sombra de dúvidas, uma escritora disciplinada, o que, por si só, é ótimo
para ela, e para a literatura, de um modo geral. Afirma escrever
desesperadamente, tanto pelo dia, bem como varando as madrugadas. Amar seus
personagens antes de escrevê-los seria o segredo para a eficácia de sua narrativa
e uma maneira muito pessoal de lidar com o peso de dar vida a seres humanos
que, pelo menos durante a leitura das poucas centenas de páginas de seu
primeiro livro, fixar-se-ão nas mentes e nos corações de seus leitores. Andrea
afirma ter, na paixão por suas histórias e no envolvimento com o próprio ato de
escrever, a verdadeira disciplina de sua escrita, “priorizando a arte antes da
métrica”. Fosse isso verdade, diria que ninguém
é perfeito, mas quando se lê o que Andrea escreve, notoriamente há um
embate entre aquilo que o próprio autor
pensa a respeito de seu trabalho e
sua prática propriamente dita. Aliás, isso parece ser uma mania entre os
escritores pernambucanos, basta-nos lembrar das afirmações de João Cabral de
Melo Neto, ao teorizar sobre seu próprio trabalho, com aquilo que, de fato, era
por ele posto em prática.
Embora
se afirmando “vulcânica”, não há dúvidas de que estamos diante de uma escritora
verdadeiramente preocupada com o melhor; que não pretende para si mesma, muito
menos para a sua obra, menos que a perfeição, ou pelo menos chegar o mais
próximo dela. Seu livro é resultado principalmente de trabalho, de compromisso,
de seriedade; de quem se preocupa, antes de qualquer coisa, em re-a-li-zar. Se não, como explicar
alguém que escreve algo assim:
Bateram na porta dele.
O
bezerro atravessado não podia nascer. Estava morto de tanto o povo puxar. A
mãe, uma vaca de raça, muito cara.
Amarraram
de corda, deram anestesia local, cortaram a barriga e fizeram a operação. O
veterinário era novo. Cláudio ensinava e ajudava.
Fez
vários partos de bichos e de gente metendo o braço e fazendo versão, girando
feto atravessado.
Pouca
coisa espanta esse homem, mas se altera contando:
– Antes do ladrão sair ele pegou o revólver,
reagiu. Enquanto um praticava o assalto, outro dava cobertura lá fora. Bandidos
caga-cassetes. Covardes. Eram dois,
Adolfo um só.
Ou assim:
É certo que esses olhos não podem ver mais que a delicada trama que a vida nos manda criar. Labirintos. Teatros. Moscas mascaradas.
Em
pleno sol, bebemos suor, rachamos os pés, comemos poeira. A flor da angústia se
abriu.
Não
existe mais a cancela e o riacho está seco.
Por
causa do amor, nasci desta paisagem que agora conto.
Os
gibões de couro cru contêm a gema.
A
travessia tem roteiro, trata-se de uma escolha, uma colcha de retalhos
costurada por dentro de nós. Por fora, a membrana ingrata se esgarça. A dor
afirma o percurso. A dor e a poesia.
Isso é
escrever um romance: simular a vida, rescrever a realidade; dar à certeza que
temos das coisas e de nosso mundo, dúvidas que esclarecerão e acrescentarão. O
romance sempre será a história das coisas que não foram e por isso mesmo tudo
nele é possível, é verdadeiro, cabível de acontecer e passar adiante. Isso é
escrever bem, é escrever claro; dar as palavras usos e brilhos. É fazer com que
revelem a clareza que lhes é natural. Um bom escritor jamais pode sê-lo se não
nos proporciona um embate, que, muitas vezes, começa na própria pessoa de quem
escreve. E um bom escritor, também, pode dar ao assunto mais banal e mais árido
o interesse que só a literatura pode criar. Ninguém lê um romance para conhecer
o seu escritor; não importa que Andrea Araújo Gomes Ferraz tenha tirado as
histórias de seu A sutileza do sangue
de sua própria história ou de sua família, não é a história de Andrea que
queremos encontrar e sim a nossa própria história, diria Antônio Lobo Antunes e
eu tenho certeza que Andrea Ferraz sabe disso.
Por isso mesmo, acredito
que A sutileza do sangue é um livro
que não passará em silêncio e nem deve, pelo que diz, como diz e para quem está
dizendo; é assim como todo livro que se respeite deve se apresentar. E digo
mais, Andrea Ferraz vem para somar ao lado dos novíssimos nomes de nossa
literatura, como Karleno Márcio Bocarro, Nívia Maria Vasconcellos, Lorena
Miranda Cutlak, Patrice de Moraes, Wladimir Saldanha, João Filho; escritores
jovens, mas muito mais conscientes, mais preparados, e muitíssimos mais
talentosos do que toda uma geração decrépita e frustrada de escritores formados
à sombra maléfica do socialismo da USP e que acredita – e ensina, o que é bem
pior –, por exemplo, que a Semana de Arte Paulista, de 1922, representou um
marco para nossa literatura, que Oswald de Andrade é um intelectual de extremo
talento, que Paulo Leminsky é poeta, Chico Buarque romancista, que a Márcia
Tiburi é filósofa, que nada para além do eixo Rio-São Paulo é digno de atenção
ao menos que a esse eixo se renda, etc... Infelizmente, é esse tipo de
pensamento que ainda prevalece em nossas escolas e Universidades; todavia, há
toda uma geração a surgir com o pensamento, o talento e a prática literária
completamente diferente. E são eles os responsáveis por desmontar o playground de múmias que constitui
nossas academias, a começar por nossos críticos, completamente ignorantes da
nova produção de qualidade de nossa literatura, ou fingindo-se ignorá-la, como
disse o amigo Jessé de Almeida Primo, por saber que a ascensão dos novos nomes
que estão a surgir, representaria o desmascaramento e o fim de tudo aquilo que
eles são e pregam.
Enfim, voltando à Andrea
Ferraz, lembro-me que Ortega y Gasset já dizia que “é imoral pretender que uma
coisa desejada se realize magicamente, simplesmente porque a desejamos... Só é
moral o desejo acompanhado da severa vontade de prover os meios da sua execução”.
Leiam A sutileza do sangue e vejam
como Andrea Ferraz se empenhou em prover uma das melhores narrativas que uma
estreante podia nos dar nesse tempo de tantas crises, menos para a boa
literatura, pois a boa literatura é a
crise... o que, à boa literatura, é a algo maravilhoso.
Candeias, solstício de verão, 2015.
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