segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A BAHIA SEGUNDO PATRICE DE MORAES...


Título: Minha Bahia
Autor: Patrice de Moraes
Gênero: Poesia
Apresentação: Nívia Maria Vasconcellos
Ilustração de capa: Gabriel Ferreira
Editora: Mondrongo
ISBN: 978-85-65170-28-4

Valor: R$ 20,00
Comprar: http://www.mondrongo.com.br








Um poema feito de Bahia

 (por Nívia Maria Vasconcellos)





Conheci Patrice de Moraes há exatos 13 anos nos corredores da Universidade Estadual de Feira de Santana. Mas o que me aproximou dele, mais do que o fato de cursarmos Letras, foi sua paixão pela poesia. Desde então, passei a conhecê-lo não apenas enquanto estudante, mas enquanto poeta. Sempre me atraiu muito e, por que não, seduziu-me muito seus poemas eróticos, ou como ele mesmo denominou no seu primeiro livro, euróticos. O trabalho dele, com esse leitmotiv, tornou-se constante a ponto de todos que já o leram associá-lo, imediatamente, às poesias eróticas em geral não deixando nada a desejar – e não é exagero essa minha assertiva – diante de poemas de igual temática de um Drummond ou de um Bocage.

Ao me deparar com Minha Bahia, por ter uma temática completamente diferente do que conhecia do criar de Patrice de Moraes, poderia ter ficado surpresa, mas não. A pessoa do Patrice de Moraes tem tanta baianidade em seu jeito de ser que este seu novo livro, mais do que uma leitura e uma apologia desse estado que ele notoriamente tanto ama, é uma leitura dele mesmo. O seu jeito de vestir, suas crenças, as músicas das quais gosta, a culinária, tudo está presente neste opúsculo. Nele, há cheiro, paladar, paisagens, religiosidade e as contradições que compõem a memória individual de Moraes que dialoga com a memória coletiva dos baianos e ora confirma ora cria uma memória dessa unidade federativa na mente daqueles a quem o poeta chama de não-baianos. Indubitavelmente, um poema que só poderia ser criado por um baiano que se sabe e se envaidece por sê-lo.

O título já comunica afeto. O pronome minha – mais do que um determinante do nome que lhe indica propriedade – manifesta aproximação, respeito e, sobretudo, intimidade. Algo muito comum em expressões como “minha preta”, “minha nega”, “meu dengo”, tipicamente baianas, que já aparecem nos primeiros versos do poema. Ainda na primeira estrofe, a palavra “porreta” comunica uma oralidade que não é fruto de um descuido formal, e sim um meio de se apresentar de forma mais fidedigna o modo de ser do baiano já que sua linguagem diz muito sobre seu comportamento e sobre demais características que o representa: como a criatividade e a malemolência.

O livro apresenta um poema composto por 15 partes. As 14 primeiras possuem uma padronização dos versos, divididos em 14 quartetos sempre finalizados com um verso que sintetiza a temática e que é uma espécie de chave de ouro. A última parte, diferentemente das outras, em vez de 14 estâncias, apresenta um soneto, forma que o autor domina muito bem e que já é uma de suas marcas comprovadas pelo Eurótico em poesias como Peculiaridade e pelo seu, ainda inédito, Amor em carne viva. Essa última parte ainda guarda uma surpresa para o leitor e mostra muito de sua habilidade com os versos, muito de sua grande artimanha criativa.

Seu metro formado predominantemente de versos decassílabos apresenta, muitas vezes, enjambements que permitem uma leitura mais fluída. Tal recurso assim como as pausas que são impostas dentro dos versos (conquistadas pelo uso de toda sorte de sinais gráficos como as vírgulas, o ponto de seguimento, os travessões, os parêntesis e as reticências) cadencia a leitura e materializa as intenções do autor num jogo de som e silêncio que atribuem ritmo ao ajuntamento das palavras. Posso acrescentar aí a homofonia que, quanto à posição no verso, é externa e, quanto à posição na estrofe, é intercalada (tipo de rima que ele domina muito bem por ser um exímio sonetista). A musicalidade alcançada por esse jogo rímico é intensificada pela tonicidade dos versos que são agudos e graves com a predominância desse último:

onde oração à vida e ao que ela tem
de essencial revelam a ambição
de um povo que desdobra o coração
na fé num orixá..., num santo... – amém.







PARTE I


Na primeira parte, somos apresentados ao poeta enquanto baiano e a Bahia com toda a sua religiosidade, uma terra que, como ele mesmo salienta, tem: “tantos meridianos à religião voltados”. Assim, louva o caráter sincrético da religiosidade baiana, mas não omite também que sua origem não foi branda, mas herdada, por meio de muito sofrimento de seus antepassados.

As partes II e III confirmam a ideia de que suas estrofes podem até ser laudatórias, mas não são inocentes. Pretendem enobrecer, mas não deixam de reconhecer as adversidades, lutas, batalhas e senzalas, assim como as “correntes podres do racismo e da matança oficializada” que mancharam a história desse estado, mas que, por outro lado, formaram um povo que, ao contrário do que muitos pensam, tem consciência de que “nem tudo é fantasia de carnaval”.

Àqueles que quiserem exigir mais postura crítica nessa Bahia em versos, Patrice de Moraes traz um contra-argumento que se firma como uma justificativa não irrefutável, mas, pelo menos, aceitável: os satíricos poemas de Gregório de Matos que, barrocamente, realizaram tal empresa já cumpririam com excelência tal necessidade. Assim, ele dialoga com o nosso poeta barroco e suas composições trazendo em suas linhas a expressão Cidade da Bahia e, explicitamente, o poema Triste Bahia, o qual não só menciona, mas também transcreve seus versos: “Triste Bahia! Oh quão dessemelhante / Estás”. Por meio de tal fundamentação, desliga-se da obrigação de ser também satírico tal qual nosso poeta maldito, o nosso Boca do Inferno. E, a quem insistir, ele indaga: “Para que eu repetir o que foi dito [...]?”.O que ocorre é que ele não se furta totalmente do olhar crítico, mas não faz dele o ponto fulcral desta obra.

com o xique-xique, com o mandacaru,
com o solo infértil, com o rebanho à fome;
com a indiferença braba que consome
(mordaz) um e outro assim como eu e tu. (parte VI)


Mais do que desvelar os vícios sociais, o Minha Bahia pretende revelar a coragem e alegria do povo baiano não como fruto de uma alienação, mas, deliberadamente, de uma escolha. A prova disso é que há partes como a IV na qual salienta o fato de a então província da Bahia ser decisiva para a independência do Brasil e a sua confirmação, fazendo menção direta à batalha de Pirajá. Não se pode esquecer que a história do Brasil sofreu interferência direta das lutas por uma autonomia política iniciadas na Bahia como a Conjuração Baiana (1798), Federação dos Guanais (1832), revolta dos Malês (1835).






PARTE II

A quinta parte possui versos tão alegres quanto à ideia que passam. O riso – vocábulo constante em várias estâncias – é uma das marcas do povo baiano que coloca “a alegria à frente da tristeza”. A culinária, com seus acarajés e abarás, contém a própria alma do baiano. Nesse ato, o sabor do alimento vai dando espaço à criatividade musical que se confirma na parte VI, na qual grandes menestréis são aludidos (Xangai e Elomar) e outros tantos artistas são lembrados para provar o quão profícua é a Bahia, tão solidária ao oferecer ao Brasil e ao mundo grandes nomes nas artes como Gregório de Matos, Castro Alves, Jorge Amado, Dodô e Osmar (parte VIII), Riachão, Tom Zé, Raul Seixas, Caetano, Gil, Bethânia, Gal Costa, Glauber Rocha, João Gilberto, Dorival Caymmi (parte IX) e mais gente de “musicalidade variada” da qual o poeta, ousadamente, não deixa escapar nem a popular e massificada axé music

Outros nomes memoráveis saltam aos olhos como Irmã Dulce (parte VI), Divaldo Franco, Mãe Menininha do Gantois. Esse três nomes enumerados revelam muito mais que solidariedade e compaixão; sobretudo, denotam ecumenismo religioso: uma freira, um espírita e uma  Iyálorixá respectivamente. Todos reconhecidos nacional e internacionalmente pelos seus feitos e todos baianos de nascimento e vivência.

Ele chega a aproximar Popó de Maria Quitéria em estrofes sucessivas (parte XIII) e alude a intelectuais, educadores, políticos, pessoas das mais variadas áreas (parte X). Uns ainda vivos outros já falecidos, uns no ostracismo outros no mainstream, todos vão sendo enumerados de maneira ritmada e sem perder a cadência do verso, o que demonstra toda a destreza conferida a nosso poeta e da qual ele lança mão a todo momento sem perder o jogo de cintura e mantendo seu esquema estrófico e rímico: os versos interpolados e a rima externa predominantemente grave.

posto, peculiar aos homens retos.
Mário Gusmão, Otávio Mangabeira,
Sérgio Cardoso, Walter da Silveira,
Assis Valente, João Ubaldo, – afetos

Outros do coração baiano –, Bel
Borba, Othon Bastos, Marta Rocha, e mais
Calazans Neto, Mário Cravo... Faz
Gosto citar baianos..., um mundéu


Enquanto também baiana, senti falta de personagens controversos da História baiana como Lucas da Feira e Besouro. Não sei se por lapso ou opção. Mas, como não é besta nem nada, nosso poeta não se esquece daqueles não-baianos que se deixaram apaixonar pela Bahia. Gilberto Freire (de quem ele pega emprestado a frase que forma a epígrafe deste opúsculo) é um dos nomes lembrados e não podia mesmo ficar de fora, pois, mesmo sendo pernambucano, reconhece que “todos os brasileiros são baianos”[1]. Para se juntar a ele, o poeta chama a Pierre Verger e Caribé. Algumas estâncias depois, já na parte XII, Carmem Miranda é aludida. Ela, mesmo sendo um exagero tropicalista e tendo feito algumas películas de qualidade suspeita na mais autêntica extravagância hollywoodiana, levou o nome do Brasil e, em especial, da Bahia para o mundo com a música O que é que a baiana tem composta por Caymmi e por ela imortalizada. Realmente, tantos nomes ilustres só podiam fazer os baianos “libertar o lado ufano”.







PARTE III

Patrice de Moraes vai se mostrando não só um adorador da Bahia, mas, inclusive, um conhecedor de sua história e dos sujeitos que a compõem. Além disso, um conhecedor da Língua Portuguesa e de suas possibilidades. Sagaz, na parte XI, compôs três estrofes nominais em sequência. Apenas artigos definidos e substantivos se apresentam na relação de palavras que se estende por 12 versos de musicalidade pulsante, os quais ele encera com uma brincadeira com a fonologia da língua trocando fonemas que fazem vir à luz novos vocábulos com novos campos semânticos:

a farra, a prosa, o brilho, o azul, o licor,
a rede, a esteira, o campo, o ar, a asneira,
o encanto, o espanto, a graça, o fruto, a freira,
o ocaso, o acaso, o ser, o amar, o amor, (parte XI)


Ainda na parte XI, corrobora o estereótipo da Bahia como a “terra da alegria”. Como Recife é a Veneza brasileira; o Rio, a cidade maravilhosa; Salvador é a Terra da alegria e, assim como essas, outras tantas antonomásias passam a existir para designar outros tantos topônimos, geralmente, resultado de uma imagem mental padronizada sobre tais localidades. Mas,apesar de ser repudiada por alguns que a veem como meio de maquiar problemas sociais diversos, Moraes aplica essa antonomásia em outra dimensão. Ele não quer ser panfletário e assegurar uma vaga na Bahiatursa. No seu poema, a alegria (ratificando o já dito) surge não como efeito de um ser que não se sabe sofredor e se encontra alheio aos maus-tratos que o vitimam, e sim como uma opção de indivíduos que sabem o que os aflige, mas optam pelo riso apesar disso. É uma questão de índole, de espírito pois:

Baiano que é baiano não se entrega.
Baiano que é baiano não desiste.
Baiano que é baiano põe-se em riste
mesmo atingido pela escolha cega  (parte VII)


Na penúltima parte, a Bahia vira vocativo e se personaliza pelo pronome quem: “que fazes tu, Bahia, ser quem és”. Sua segunda estrofe apresenta-nos um cultismo à moda dos versos barrocos gongóricos e seu jogo de palavras com seus hipérbatos e trocadilhos:

Que bom te ter certeza em minha vida;
em minha vida ter-te certamente.
Acerto em ter-te acertadamente.
E ter-te é glória certamente tida. (parte VII)

E mais espertezas criativas se apresentam como o neologismo “nordeste-me” e a divisão do “viste- / me” com um pronome na estrofe subsequente até chegar, como um bom Caminha, aos modestos versos “dei de mim o quanto foi possível / para exprimir destarte o inexprimível/ amor que tenho a ti”.Como um falso fim, os últimos quartetos se oferecem a nossa leitura. Eles mudam o vocativo, o interlocutor agora é Deus a quem Patrice dirige uma prece na qual sua religiosidade mais uma vez é posta à nossa presença e encerra uma súplica: continuar a ser baiano e a ser poeta.







PARTE IV

A última parte, entretanto, está por vir. A parte XV, um soneto à moda petrarquista, também classificado como soneto italiano por ter um agrupamento rítmico estruturado em 4 estrofes formadas por 2 quartetos e 2 tercetos. Ele se inicia com um verso decassílabo heroico “Sofrer..., mas ser da fé um puritano” (grifo do autor) e depois varia para outros ritmos. A combinação de rima das duas primeiras estâncias segue a mesma disposição das outras partes, rimas opostas, interpoladas: ABBA, seguidas de tercetos com esquema rímico CDD EED, como no poema Psicologia de um vencido do mestre Augusto dos Anjos.

Hábil em sua capacidade de criar versos, nosso poeta, neste opúsculo, apesar de seguir uma tradição poética não segue o rigor formal dos parnasianos. Goza de certa liberdade para cantar a sua terra como grandes poetas brasileiros já fizeram. Uns cantaram seu país, outros sua cidade: Gonçalves Dias exalta o Brasil em detrimento à terra lusa em seu poema Canção do Exílio, Manuel Bandeira alude a sua Recife em Evocação de Recife, Drummond evoca sua cidade mineira em Confissões de um itabirano, a lista é excessivamente grande para decliná-la toda aqui, mas podemos arrematá-la com aquele que cantou seu estado: Patrice de Moraes em seu Minha Bahia.

Inclusive o seu título me remete a outro poeta brasileiro, Casimiro de Abreu e seu poema Minha Terra, escrito em 1856 em Lisboa, no qual ele, já nos seus dois primeiros versos, torna-nos notório seu nacionalismo: “Todos cantam sua terra / Também vou cantar a minha”. E nosso poeta conjacuipense ao cantar a Bahia proclama que ela é “um estado em eterno estado de poesia”. Num momento em que a desterritorialização, adaptada às mudanças geridas pela nova globalização, impõe-se com todo o seu desenraizamento, mobilidade e hibridismo, Patrice de Moraes propõe uma reterritorialização por meio de seu esforço em fazer sobressair uma identidade baiana que particulariza e eleva os seus filhos e os diferencia dos demais brasileiros.



“Bahia Bahia Bahia: o início, o meio e o fim” deste opúsculo. Boa Leitura.



[1] FREYRE, Gilberto. Bahia e baianos. Salvador: Fundação das Artes, 1990.

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