quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

REGIONALISMO & POESIA


Retirantes de Cândido Portinari



No ano que passou, o romance Vidas secas, do alagoano de Quebrângulo, Graciliano Ramos (1892-1953), completou 70 anos, merecidamente festejado como uma das maiores obras da História da Literatura Brasileira. Graciliano encontra-se no centro (não só no sentido metafórico) de uma tendência literária que se divide, historicamente, entre a celebração e o olhar pejorativo – o Regionalismo; que, desde o exotismo romântico de José de Alencar, e, não totalmente, do Visconde de Taunay, ao quase desprezo de autores, tanto já veteranos, como João Ulbaldo Ribeiro e Antônio Torres, a contemporâneos de igual qualidade, tais quais Milton Hatoum, José Lins Passos e Ronaldo Correa, acusando tal tendência de ser uma forte variante de “beletrismo estético”, o Regionalismo (e entenda-se aqui toda literatura que, desde a segunda metade do século XIX, se direciona para o interior geográfico do Brasil, apresentando uma série de aspectos muito próprios das comunidades afastadas dos grandes centros urbanos, que vão desde o modo como declinam a minudências na descrição de dados locais, à maneira como incorporam certos maneirismos lingüísticos) tem nos dado algumas das maiores obras de nossa literatura, além de ser o responsável pelo desbravamento cultural de regiões, até meados do século XX, desconhecidas do grande público leitor, como o Sertão do Nordeste, os Pampas gaúchos, os canaviais próximos ao litoral nordestino, a região cacaueira da Bahia ou a Amazônia, mesmo como o já citado exotismo de alguns românticos ou com o realismo profundo, e com uma verdadeira preocupação político-social e histórico-cultural, propostos, já no fim do século XIX, por Franklin Távora, autor de O Cabeleira. Aliás o apogeu do Regionalismo vem com a geração neo-realista de 1930, onde, como é sabido de todos, encontra-se algumas das melhores obras da ficção brasileira, como o já citado Vidas secas, além dos antológicos Fogo morto de José Lins do Rêgo, Gabriela, de Jorge Amado, O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, O Quinze, de Raquel de Queirós, A Bagaceira, de José Américo de Almeida, por exemplo; já o que me parece ser muito pouco comentado, inclusive nos livros didáticos que chegam às mãos de milhões de alunos de todo o País, com respeito ao Regionalismo, é a grande participação que a Poesia assume em todo esses contexto, até porque, a linguagem poética, extremamente diversa e subjetiva – abrindo-se à possibilidades infinitas de interpretação, inclusive à péssimas interpretações –, por mais que muitos a queiram anti-lírica e objetiva, não se limitaria totalmente a quaisquer paradigmas, por mais que os autores se dedicassem à tamanha proeza, no entanto, alguns tornaram-se famosos por trazer, à poesia, as mesmas propriedades presentes nos romances ditos regionais, tais como João Cabral de Melo Neto, Ascenso Ferreira, Alberto da Cunha Melo, e o tão desconhecido do grande público, quanto notável em suas aptidões de poeta, o feirense Eurico Alves Boaventura (1909-1976), que, neste ano, completa seu primeiro centenário, e de quem recolho um dos melhores exemplos de uma poesia regionalista, no mais autêntico e perfeito sentido do termo:




MANHÃ

Há uma douçura nos longes de um azul discreto.

A manhã desce pela serra,
uma doce, suave manhã adolescente.
Há um gosto de mulher nua pelo ar úmido de luz.
E as longas estradas esquecem-se de si mesmas,
numa indolência vaga, indefinida.

Mugidos de reses nos currais perto da vida adormecida.

Os meus pulmões cansados de civilização,
agora gritam como cabritos ágeis e vadios,
bebendo o ar puro da manhã de sol,
quando vem este perfume de rosa-amélia dos quintais abertos.
Nem anúncios de jornais, nem estrídulos de carros,
nem o drama angustioso de mocinhas para o trabalho,
nem o tédio bom das boemias doiradas, nem o rumor,
da vida encantadora da cidade, nada, nada...

A vila é um compêndio natural de moral e probidade
Que vive da ignorância de viver, que é a felicidade afinal.

Manhã pura.

Salpicada de orvalho, atarantada, suja,
passa na douce manhã vilarenga, numa auréola de mosquitos,
a doidinha trazendo no chapéu braçadas de malua veludosa,
para lavar a louça das casas abastadas da vila.

Olho as estradas. Penso nas lindas mulheres que adormecem ainda,
lá pelas cidades grandes, depois das reuniões veladas.
Um juiz, para a vila pacata, não deve
nunca ter pensamentos assim. Comprometê-los-ão tais pensamentos.

* * *

Os caminhos perdem-se na boca escancarada do céu,
deitado sobre o horizonte lá longe...

E, na manhã doce como amora madura,
a pequena vilazinha, sem ninguém, descuidada, ressoa
.




Feira de Santana/Capivari, 14 de março de 1935.

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