quinta-feira, 1 de setembro de 2011

FLORISVALDO MATTOS: POETA DE MEMÓRIAS...




Manhã de sábado. Rasgo um envelope que me destina o poeta Florisvaldo Mattos. Seu conteúdo não me é um mistério; sei que ali se encontra um exemplar de seu livro Poesia Reunida e Inéditos (Ed. Escrituras, 2010), mas isto não quer dizer que descobertas inumeráveis não se escondem de mim  dentre essas páginas.
 
Abro-o, então. Começo a lê-lo e nada mais parece importar. O fim de semana me ajuda no degustar de cada palavra, cada verso, cada poema, sem que ninguém me interrompa, me atrapalhe ou me desconcentre. E, graças ao meu acaciano talento para perceber o óbvio, não demoro a descobrir que estou diante de um poeta cuja linguagem e ritmo particular fazem dele não só um dos maiores poetas baianos de sua geração, mas um poeta universal.


Florisvaldo Mattos é abrangente, sua poesia se cobre dos mais diversos temas, formas e dicções; seus versos, ao mesmo tempo diretos, sintetizadores, aspirando ao raciocínio filosófico, onde nada além do necessário se nos mostra, são também de uma leveza muito rara e de grande força lírica que, parecem-me, à primeira vista – como deveriam parecer aos admiradores de outrora –, o mais puro produto das musas, da magia ou coisa parecida... mas é irresponsável pensar assim, que uma coisa tão desejada e tão bem elaborada se realize magicamente. Não se espera de um poeta que produz versos desta qualidade nada menos que a severa vontade de prover seus melhores meios de execução, e provê-los bem. Florisvaldo sabe disso, sabe que o prazer estético é também um prazer da razão e que a lei da mais pura e verdadeira arte é a lei do Ne quid nimis, como afirmara Ortega y Gasset, por isso sua lírica se apóia numa distribuição mística, mas sem perder as rédeas da razão e das formas que lhe ajudarão em seu próprio entendimento, de maneiras a que se associam unidades de sentido de natureza extremamente complexas. Não é à toa que seus sonetos são o que de mais forte e verdadeiramente poéticos há em sua obra, garantindo a ele um lugar que se destina a poucos em nossa literatura; lugar onde se encontram também colegas seus de geração, como Ildásio Tavares, João Carlos Teixeira Gomes e Maria da Conceição Paranhos e que se juntam a nomes como Emílio Moura, Carlos Pena Filho, Reynaldo Valinho Alvarez; aproximando-se, conseqüentemente, dos melhores: os excepcionais Jorge de Lima e Bruno Tolentino.

Essa minha afirmação, no entanto, não descarta a destreza e acuidade de sentido que este poeta grapiúna empresta aos seus poemas livres – que de livres não têm absolutamente nada – nem àqueles que flertam com outras formas ou mesmo com a experimentação lírica – mal necessário, pelo que me parece, a todos os bardos que viram e viveram os anos 1960 e 1970. Mas é da própria natureza do soneto suprimir o supérfluo e o substituível em nome da beleza e sua perpetuidade, assim sendo, Florisvaldo Mattos pode muito bem buscar aquela “essencialidade da expressão verbal”, de que fala João Carlos Teixeira Gomes, na apresentação de Poesia Reunida e Inéditos, sem se preocupar demasiadamente com labor formalista, nem se entregar desgraçadamente aos transbordamentos líricos tão comuns aos nossos poetas, mesmo os que se acham em melhor prestação.  


Se pensar é a maneira pela qual capturamos a realidade por meio de idéias, como dissera o autor de A Rebelião das Massas, o fazer poético é sem dúvidas uma maneira de construir realidades; o perseguir da verdade não pertence àqueles que fazem versos, se, ao fazê-los, criam ou recriam, os poetas, suas próprias verdades, seus próprios mundos para contê-los, para carregá-los... Florisvaldo sabe que um grande poeta precisa de tradição, precisa trazê-las consigo, expô-las, resumi-las, fazer com que se façam presentes em sua obra para, daí, esculpir o novo, o moderno, as formas renovadas de uma força e de uma essência que são sempre as mesmas ou estão sempre retornando ou se renovando, porque, diga-se de passagem, a poesia sempre foi, no melhor sentido do termo, cópia, roubo, apropriação indevida de cabedais, imitação – como já afirmava o bom e velho Aristóteles – de Homero a Bruno Tolentino ou de Hesíodo a Guimarães Rosa é assim, e a transubstanciação do mundo físico para um mundo de subjetividades – que é também cópia – como bem nos alertou o João Carlos Teixeira Gomes, não se faz valer com tanta perfeição em outras formas de arte como se faz através da poesia; e poucos são os poetas que a faz como realmente precisa ser feita. A consciência do poeta a respeito de seu papel no mundo, de sua missão – pois sem missão não há poeta – é o passo mais importante à maturidade tanto do homem quanto de sua obra e eu pude constatar que de Rio Remoto (primeiro poema, da primeira página, de seu primeiro livro) a Caminhos (até então, seus derradeiros versos) evidentemente (os títulos estão aí para provar que eu não estou mentindo) nos apresentam uma idéia de continuidade, de amadurecimento e de realização... da busca incansável, graças a Deus, da realização.


E, pelo que muito li, entendi, gostei e tomei para mim mesmo, vejo que Florisvaldo Mattos não se utiliza de maior recurso rumo ao seu crescimento poético que não o da Memória. Não importa se esta memória é puramente pessoal – como no soneto Água Preta – ou, quiçá, histórica – como nos épicos versos de A domação das pedras; se pertence a ele ou se emprestada de outros poetas e vultos, como em poemas como O Tempo, o Lugar ou Duas Almas. A memória funciona como o meio mais preciso de emulação de meios para que o poeta se atente ao tempo, compreenda-o, poetize-o e dele se faça livre, como afirmou, no pósfacio de Poesia Reunida e Inéditos, Alexei Bueno. E assim é, por exemplo, de seu Soneto do silêncio, de 1954:

Marca o silêncio, todo aroma e exílio,
uma incidência tal, terrena e vaga,
que inviolada ternura a brisa molda
de amadas que se foram sem retorno.

Da inconstância da neblina salta
quem o olhar esqueceu dentro do rio,
para não ver a sombra de quem ama
retornar ao caminho imprevisível.

Há uma coroa de cantos e astros leves,
sons e rumos previstos que se ocultam
sob o manto de angústia decisiva.

Há mesmo quem não saiba para onde
vai; no entanto sua alma, seu mistério,
no silêncio extra-humano deposita.


ao soneto Tempo Belo, de 2007, pertencente ao livro Decifração de Cristais:


Logo, fecho o caixão e fecho o tempo
das almas arbitrárias que vivi.
Amante e amado fui e conheci
a dor que é de meu tempo passatempo.

Rebenta, alma insensata, o teu passado
e vai por outras dores comezinhas;
segue por tua senda, a que caminhas,
rio em que tua margem é o outro lado.

Estás ausente em ti para o meu gesto,
simples estado neutro de passar,
de olhar, sentir e perceber funesto

e súbito negar da primavera,
mais que breve e raro, cumprimentar
o prazer de passar que a vida era.

 
e, entre um e outro, o belo exemplo de um soneto intitulado de Cegonhas em Trujilho:
 
 
Para sempre serás pranto e ruínas
guardadas pelas aves coniventes
que do inverno se lançam repentinas
a colher o que resta das sementes.

Mas ocultas o cerne entre resinas
de remoto sumir que já não sentes,
se o tempo desafias, se ruminas
o passado das coisas decadentes.

Antes que a fome das sagradas aves
a memória corrompa dos espelhos,
descerras conubial os sítios graves

a cavaleiros que manejam relhos,
flagelando-se em coágulos de ausência
junto aos muros que sangram resistência.

 
Não tenho medo ou se quer receio de afirmar que toda a poesia de Florisvaldo Mattos gira em torno da memória, mas não aquela memória ingênua e confessional de que até Drummond se serviu demasiadamente, mas duma memória que é também construção, mundo a pulsar e a se fazer em cada verso do poeta, porque os acontecimentos vividos são efêmeros, todavia o que é lembrado não tem limites, perpetua-se, pode mudar ou renova-se, e, pelo que se pode julgar dos sonetos acima, a memória, necessariamente, não se precisa explícita ou presente. O homem que recorda se compõe como ser poético, porque a memória está sempre a criar impressões que são ela e a não são ao mesmo tempo – palavras de Walter Benjamim.

Se a viajem é o tema mais recorrente na história da Literatura Universal, é a memória, por sua vez, o mais intenso e o que lhe renderá uma maior herança de expressões, formas e imagens. Fragmentário, cheio de falhas, impregnado de coisa passadas e do que se está vivendo, a memória constitui o principal recurso pelo qual o homem recorre para conferir significado às coisas, para reconhecer o que ali está e se constituir como sujeito tanto histórico como sujeito de si próprio. Esse poder construtor da memória, como afirma Henri Bergson, parte da proposição de que não existe percepção que não esteja impregnada de lembranças, e, nesse caso, “a nossa vivência do presente torna-se, então, um acúmulo de detalhes, soma de pormenores vividos que se agarram às imagens imediatas dos nossos sentidos”, que, tendo afinidade com o poético, infiltrar-se-á de ambigüidades, sobrepondo-se a outros sentidos que acabam por deteriorar o anterior. 

Por fim, é nesse território de instabilidade, em que os saberes mais diversos consagram o que se chama conhecimento humano, que se ergue uma poesia tão agraciada pela beleza e pelo amor à verdade... comuns apenas aos grandes poetas e presentes nos versos de Florisvaldo Mattos.


















Feira de Santana, agosto/setembro de 2011.




4 comentários:

Gustavo disse...

Assim não, né? Diminue esse ego, teu texto em letras garrafais e os poemas só com lupa, francamente...

Poeta Silvério Duque disse...

Caríssimo,

Perdoe-me! O tamanho dos versos nada tem haver com o meu ego – nem o poderia visto não falar de mim, mas de um grande poeta e amigo – mas tem haver com a maneira como o novo editor processa os texto do Word para a tela de postagem; e o que antes era uma diferença de 14 para13 no tamanho da fonte (padrão para qualquer edição) fica assim, fora os espaçamentos que preciso corrigir um a um após a colagem.

Todavia, já solucionei o problema e humildemente agradeço-te pela observação.

Abraço amigo,

Silvério Duque

Anônimo disse...

Olá, prezado Silvério Duque:

Valeu, homem: este seu comentário, dentro do melhor espírito de crítica impressionista, a que mais me agrada e mais vai ao cerne do que examina, sem acobracias de erudição e estilo das ginásticas laboratoriais comuns no modelo de crítica corrente, me agradou tanto quanto me comoveu, pela espontaneidade de que se reveste.

Você, além de um intelectual ágil, possui um alto grau de percepção estética aplicada à análise poética, dispondo inclusive de uma bagagem de conhecimento que muito qualifica sua abordagem.

Enfim, gostei muito. Mais tarde poderei me alongar nesses juízos, inclusive fazendo algum comentário sobre a quase cosmogonia espiritual de seu interessante "A pele de Esaú".

Parabéns pela presteza e eficácia de seu muito bem bolado Blog. Em tempo: o título do soneto citado no seu texto é Água Preta, nome antigo da terra onde nasci, hoje Uruçuca, não "Água Negra".

Um grande abraço agradecido.

Florisvaldo

MaRiShKa disse...

Se a nuvem disparar...e a música parar...o vento envolve.

Se o tempo revelar...outra face se apagar...o vento envolve.