Revista Hera Antônio Brasileiro [Et. Al]. Edição fac-Similar, Salvador, Fundação Pedro Calmon; Feira de Santana UEFS, 2010. 714 p. il. Valor: R$ 70,00 |
Nunca entendi – confesso – a necessidade das Vanguardas; muito menos seu papel determinante nos rumos da arte e da literatura modernas.
Talvez a minha ignorância advenha do fato de eu sempre ter encarado os movimentos de vanguarda como uma maneira meramente escandalosa e, em alguns casos, até um pouco equivocada, de se construir e complicar o porquê de uma situação que se faria naturalmente sob uma simples “cortina de silêncio”. Tal cortina nada mais é do que o próprio esgotamento dos recursos expressivos de um determinado movimento ou escola, quando não uma variação mais aprofundada de um estilo de época antecedente, como foi o caso do Impressionismo – bem como de todas as escolas literárias desde a Grécia Clássica aos nossos dias –, o qual, quando finalmente se viu como algo próximo a uma vanguarda, deu os seus primeiros passos rumo à confusão identitária, à ruptura de seus valores e de suas idéias mais originais, e, evidentemente, à sua total decadência.
É por causa desta minha maneira de ver – e, até hoje, ninguém a conseguiu mudar, que, acredito, os movimentos de vanguarda só podem fazer-se entender como legítimas manifestações do espírito criativo quando se desvencilharem do protesto escandaloso pelo qual se fizeram apresentar e, também, livres de teorias frívolas, manifestos agressivos, polêmicas desregradas e dotadas de uma postura mais consciente do meio em que se ocupam, oferecerem uma perspectiva verdadeiramente prática pela qual deverão ser analisadas, consideradas e – só depois... e bem depois – aceitas e seguidas. O problema é: cumprindo-se estas exigências, não se poderão – por não mais portarem-se como tal – chamarem-se vanguardas, a não ser que continuem a insistir em uma atitude já desnecessariamente desordeira e, conseqüentemente, irascível.
Como acontece a quaisquer movimentos, as vanguardas necessitam de um estudo aprofundado e honesto, logo após as fases de apresentação e aceitação, para se chegar a uma visão clara e realmente crítica do que nelas há de verdadeiramente artístico ou não. Ademais, nenhum movimento que se preze deve querer, proposital ou indesejavelmente, constituir um fim em si mesmo, como foi o caso do Modernismo Paulista de 1922, que não possui um poeta para além de Manuel Bandeira – que era pernambucano e que nunca se mostrou um adepto genuíno do travestido avant-gard pequeno burguês de Mário e Oswald de Andrade – e cuja aludida “Antropofagia” só se fez valer em Raul Bopp e Tarsila do Amaral, apenas.
Isso sem contar com o fato de que, com seu preciosismo vocabular, com suas imagens fantásticas – e, por vezes, fantasmagóricas –, misto de expressionismos e surrealismos, além de suas “tiradas afrontosas”, como bem apontou Antônio Houaiss, Augusto dos Anjos, é muito mais revolucionário que qualquer participante da Semana de Arte Moderna de 1922, ou mesmo seus influenciadores futuristas, se o bardo paraibano desgraçadamente, estivesse no mesmo nível de um vanguardista, mas seu rigor formal nasce da necessidade de dar concretude, através de uma realidade imaginária, à própria realidade, sem enganá-la ou substituí-la e este seria um dos propósitos de toda vanguarda, mas também de toda verdadeira arte, não?! E os processos destrutivos comuns aos movimentos de vanguarda não são outra coisa senão a busca do cerne dessa furtiva realidade, que se vai revelando, no entanto, e inevitavelmente, impalpável e confusa quanto mais se agarram a ela desvinculando da verdadeira...
O grande problema dos “movimentos revolucionários” é a perigosa negação dos valores estabelecidos, bem como dos moldes históricos, por uma legião de, quase sempre, carentes de talento – em sua grande maioria – engajados a ideologias desprezíveis – principalmente as de Esquerda –, que, também, impregnam, desde há muito, a nossa crítica literária, empurrados pela frustração e pelo ressentimento. E se o papel das vanguardas é a insurgência contra os padrões e os instrumentos demasiadamente gastos de movimentos antecedentes, lamento dizer que tal papel cabe a qualquer escola literária no mínimo bem intencionada, seja ela apresentada pelo escândalo ou seguindo o seu caminho natural de desenvolvimento e adaptação, pois mudanças sociais também são indicadores de que mudanças artísticas virão. É por saber de tudo isso que considero intolerável e repugnante que a poesia brasileira tenha adentrado o século XXI ainda contaminada pelo legado concretista e extremamente iludida com o clamor ressequido e, há muito, descontextualizado, pela poesia marginal e político-social dos anos 1970. Para piorar, ainda há muitos – incluindo amigos, colegas e professores – que acreditam que a vexação comandada pelos paulistas de 1922 constitui, realmente, na maior “inovação” que a poesia brasileira viu desde o último século, e que movimentos como os da prosa e poesia dos anos 1930, bem como os novos formalistas surgidos a partir dos anos 1990, são conseqüências, mesmo que indiretas, do anedotário de Oswald de Andrade. Mas como se sabe, há doido para tudo neste mundo, sem dúvidas.
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E por falar em anedota, é impossível pensar na revista baiana de literatura Hera, em seus mais de trinta anos de existência, por exemplo, sem pensar na influência de movimentos como o Concretismo, o Neocroncretismo e a Poesia Marginal, ao mesmo tempo, que sua evolução qualitativa se dá à medida que, gradualmente, seus colaboradores se afastam das realizações dos líderes e seguidores dogmáticos de tais movimentos. A melhora estética de Hera – e a verdadeira revolução poética que esta chegou a imprimir no cenário artístico baiano – só se impõem aos escritores que ajudaram em sua evolução a partir da negação de seus próprios esquemas teóricos. Assim sendo, as idéias referidas em seus manifestos valem menos – ou quase nada – que as influências sobrevindas de suas leituras particulares, sobretudo a de Carlos Drummond de Andrade, como se viu muito claramente no 14º número da revista, bem como as de Fernando Pessoa e Baudelaire.
Se há um salto por cima de tais movimentos de vanguarda que poderiam ter influenciado os poetas que se reuniram em torno dos ideais de Antônio Brasileiro Borges – para eles, diga-se, um ideal vivo... – é o de não se terem prendido ao cabedal concretista, ou ao das leituras de Lemsky, Cacaso ou coisas semelhantes, mas retomarem certas tradições, para muitos, antigas e quase apagadas, como a idéia de origem da poesia, ou da força artística, está, portanto, no poder de formar imagens, e no fato de ser a imaginação a grande mãe da arte. Assim, tendo em vista que a imaginação prende o pensamento, como pensava Benedetto Croce, em sua Estética, a atividade artística é anterior ao pensamento lógico, e os membros de Hera que assim pensavam, e assim o fizeram, desenvolveram trabalhos bem melhores e duradouros àqueles que viram, numa atitude contrária – e, por isso mesmo, vanguardista –, o verdadeiro caminho a uma poesia “pura e moderna”. Isso só prova as dificuldades de se querer fazer uma arte tida como subversiva quando a própria subversão se apresenta como regra.
Uma coisa é certa: os escritores que, há quase quarenta anos, abraçaram o projeto de Antônio Brasileiro, queriam fazer literatura, não importando como nem com que formas se fariam ouvir. Assim, nasceu Hera, até então, editada de 1972 a 2005, num total de 20 números que, vencendo todas as dificuldades editorias e ideológicas que projetos como estes costumam enfrentar, mesmo em nossos dias, cuja facilidade de divulgação é proporcional ao alcance que a Internet pode chegar, consolida-se como símbolo de um surpreendente movimento literário bastante atípico, pois se fez, em primeiro momento, fora dos muros da Academia, quanto das Universidades, além de se solidificar e se expandir a partir de Feira de Santana, interior da Bahia, e não na velha, poética e tradicional Salvador. E a maneira como o projeto de construiu não foi diferente à forma como se fizeram em grupos que, em São Paulo, Minas ou mesmo Bahia, ajudaram à consolidação da poesia moderna em nossas Letras, ainda nos primeiros anos do século passado: através de encontros regulares para a leitura de poesias, filosofia, história da arte; da troca de opiniões – principalmente a dos escritores mais velhos e experientes; do labor editorial; do vinho; do futebol; e, evidentemente, pelo desejo e dever de se fazer literatura, atentando para o fato de que ser escritor constitui-se de menos glória que labor, mais uma missão que um mero ofício. Desta maneira, a revista Hera, que em seus três primeiros números, publicara apenas pequenos contos – todos pífios, diga-se de passagem – volta-se, a partir de seu 4º número, à publicação exclusiva de poesia, provando que, se a arte caminha para a sua própria abolição, como afirmara Hegel, é com uma forma, que se inicia e se finda em si mesmo, que se alcançará a medida real daquilo que precisa ser vivido, dito e expressado, e, desta maneira, fazer-se uma verdadeira “revolução”, uma verdadeira “poesia moderna”, ou, simplesmente, para se fazer poesia.
Na órbita de Hera, e levando o seu nome, como bem escreveu José Carlos Barreto de Santana, no prefácio da edição fac-similar da revista, nascera um grupo que “criou raízes em Feira de Santana e foi responsável por um movimento plurifacetado, que alcançou outras áreas, como as artes visuais e a música, e promoveu ações e polêmicas culturais em diversos planos e, muitas vezes, em circunstâncias adversas”, mas, principalmente, criou uma poesia moderna, ou melhor, pós-moderna, ou ainda melhor, não-vanguardista; uma literatura como a literatura deve ser, pois, como afirma Hans Sedlmayr, “o melhor da poesia moderna, assim como qualquer produto da arte moderna” – que, na minha humilde opinião, podem muito bem ir de Luís de Camões a Fabrício Carpinejar ou de Giotto a Juraci Dórea – “não pertencem aos movimentos de vanguarda, ainda que estes tenham servido de ponto de partida para alguns dos melhores poetas e escritores de nosso tempo, e arte moderna que merece este nome nasce no meio da revolução descrita em oposição àquela arte que já não quer ser, mas nasce da substância e do espírito da antiga e eterna arte, mediante uma sublimação e transformação artística de pensamentos, considerações e formas que surgiram na Revolução, e é reconhecível no fato de, com toda seriedade, desejar uma adaptação lógica entre figura visível e significado, entre forma e missão, em recusar submeter-se a todos os poderes que estão fora da arte, em renunciar à figura, em reconhecer uma ordenação de valores e a eles subordinar-se”. É o caso, por exemplo, deste belo Soneto de amor profano, de Antônio Brasileiro, que se enquadra muito bem às deliberações do professor Sedlmayr:
Não me consinta o amor tanta alegria,
pois, por não merecê-la, me constrange
o peito (já uma dor, não longe, me
sussurra que este amor sem agonias
não há de consentir em tanta graça),
eis que, perdidamente, já pressinto
– e quando, e quando – que em amor perdidos
todos os lances, não há como obtê-lo
de outro modo que não por sacrifícios
e eis que este, pois, gratuita dádiva,
me chega às mãos de um modo tão profano,
de quase sempre estou de que, se o tenho,
já não o tenho por justo e dadivoso,
mas por amor que é fruto só do engano.
E não me engana o amor quando enganoso.
É claro que isto não se aplicará a todos aqueles que, ao longo destes anos, fizeram parte da revista Hera, pois toda revolução tem seus mortos – e, em sua a grande maioria, não serve para mártir. Como acontece a qualquer escritor, os membros de Hera, na eminência de seu resgate pela posteridade, devem ser vistos, minuciosamente, não apenas à luz de sua época, muito menos por sua pretensa condição de vanguardista, mas, e principalmente, pelas muitas e definitivas influências que lhes serviram tanto de base poética quanto de ideário estético, pois há uma concepção poética existente na proposta literária de Hera que, se não é possível reconhecer na prática, decerto existe em idéia: a de que a poesia é redação superior e a meta a toda manifestação sublime de arte e uma das únicas e verdadeiras maneiras de se chegar ao Belo. Todavia, se alguns de seus membros não o seguiram – e a posteridade provou que muitos passaram bem longe de tal alcance – foi por pura “questão de natureza” e ou “limitação de suas capacidades” quanto escritores e não por suas ideologias, muito menos por seus empenhos. Por isso foi impossível à Hera evitar verdadeiros erros editorias, como este Transição, de Iderval Miranda:
demônios
rasgam
ferem
distorcem
o cerne
dos sons altissonastes
deus é ouvinte
e
seu útero
ébrio de SPQR
rompe-se
descarregando cinzas
de Washington DC
ou esta absoluta idiotice “composta” por Erthos Albino de Souza:
himem
mhime
emhim
memhi
omemh
homem
nhome
enhom
emenho
emenh
semem
que nada aprenderam com seu mestre Antônio Brasileiro, que apóia sua poesia numa distribuição mística de formas associadas à unidades de sentido e de natureza extremamente complexas, mas que se apresentam de maneira leve e inteligível, principalmente quando sua imaginação criadora se sobrepõe a uma racionalização forçosa do verso e do labor poético, como também acontece com este verdadeiro Momento de luz, de Wilson Pereira:
Há um sono terrível nos meus olhos.
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Há uma ânsia muitas vezes repetida
e fixada em minha alma há tantos séculos.
Há algo em mim como uma dor estatelada.
Há algo em mim que envelheceu em canaviais
que sucumbiu no mar, no fogo e em madeiros.
E não sei se é dor. Se é amor. Ou longa estrada percorrida.
ou com as participações super-especiais de Maria da Conceição Paranhos, e seu Penélope Revisitada:
Se perco qualquer um de teus instantes,
e a ânsia do retorno me transtorna,
enquanto fica ausente, em meu mirante,
descrente de meu passo à tua porta.
Todo ruído traz tua presença –
ausente do tecido desta espera,
nutrida de miragens e da crença
nascida de mim, comigo e eterna.
Amar assim, cercada pelo tempo,
é como desfiar os fios da teia
tecida e entretecida desde cedo.
Houve que acolhesse o seu amado
em malhas feitas e desfeitas sempre.
Mas eu teço o momento de perder-te.
ou, ainda, para não me acusarem de “formalista”, “tradicional” e “antiquado”, mais do que já o fazem, e destes versos curtos, livres, mas precisos e cheios de significado, de meu saudoso amigo Damário Dacruz:
Deixarei
a lua acesa
na varanda.
No meu retorno
dos becos noturnos
e do luau de Luciano
evitarei tropeçar
na tua ausência.
Mas Hera é assim. E, independentemente de todas estas considerações, a publicação, pela editora da Universidade Estadual de Feira de Santana, em parceria com a Fundação José Calmon, de uma edição fac-similar de todos os 20 números de Hera, representa um marco editorial para a literatura baiana, e, quiçá, brasileira, interessando a pesquisadores, professores, alunos de Letras, e, principalmente, ao público em geral que, através desta volumosa edição – 714 páginas, ao todo –, redescobrirá um dos momentos mais importantes e controversos da literatura na Bahia, por meio dos muitos nomes que ajudaram a compor a trajetória de Hera, como Roberval Pereyr, Juracy Dórea,Washington Queiróz, Wilson Pereira de Jesus, Cremildo Souza, Uaçaí de Magalhães Lopes, Gastão Correia, Trazíbolo Henrique Pardo Casas, Marcos Porto, Salete Aguiar, Rubens Alves Pereira, Iderval Miranda, Luis Pimentel, Luis Antônio de Carvalho Valverde, Assis Freitas Filho, Marco Lucchesi, Evandro Barreto, Carlos Cunha, Antônio Gabriel, Juciara Lima, Cristovam Aguiar, Raymundo Luis Lopes, Elieser César, Ruy Espinheira Filho, Cid Seixas, Maria da Conceição Paranhos, Jorge de Souza Araújo, Damário Dacruz, Tanussi Cardoso, Moacir Eduão, Outran Borges, Anne Cerqueira, Henrique Wagner e, principalmente, Antônio Brasileiro, entre outros tantos... Inclusive o pobre infeliz que escreve estas mal traçadas linhas...
Como o próprio Brasileiro professara, no pósfácio da 1ª edição de Hera, uma revista literária pode apontar nomes, mas é o tempo o arquiteto dos caminhos. Sobre a debandada da maioria, são pouquíssimos os que persistem; menos ainda os que realmente terão verdadeira representatividade. É a posteridade quem dará a última palavra. E deu...
Por mais que poucos de seus integrantes tenham realmente conquistado aquele “lugar ao sol” com que sonham quaisquer aspirantes às Letras, o ideal que moveu em torno de Antônio Brasileiro e seus neófitos feirenses, a quase quarent’anos, fez-se vivo, cumpriu seu dever, colheu resultados e, como aquela flor de brutal doçura, versificada por Roberval Pereyr, não se mostrou simples, nem cedeu às inúmeras pressões que projetos como esse costumam sofrer ao longo de sua existência:
Não quero ser simples.
Uma flor não é simples:
é uma flor. E não cede.
e, hoje, é impossível pensar na história da Literatura na Bahia, sem pensar no papel que Hera desempenhou ao longo de suas 20 edições. Eis aí uma verdade; uma grande e incomodativa verdade... doa em quem doer.
Feira de Santana/Candeias, agosto de 2011.
2 comentários:
Texto incrível! Para mim, um de teus melhores artigos. Uma verdadeira viagem pela literatura nacional. Feira de Santana - a cidade, Feira de Santana - a UEFS, Feira de Santana - BocasDoInferno, Feira de Santana - Hera, e Feira VI, todas estas ruas visitam cada linha que escrevo, quando escrevo evitando o risco das vanguardas, equilibrando as ânsias de minhas propriedades. Parabéns pela abrangência das palavras e por alcançar o leitor que precisa dela! (Moacir Eduão)
adoraria participar de um debate sobre a revista hera, mas seu texto é tão pobre ( e aqui quem fala é um dos poetas que você elogia), que não consigo ter a mínima inspiração. não vale a pena perder tempo com uma pessoa sem o mínimo de talento e tão cheia de ressentimentos.
passe bem silvério, o que acho muito difícil, em vista de sua imbecilidade e de seu ódio àqueles que são superiores em talento e humanidade a ti.
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