terça-feira, 10 de outubro de 2017

"BLADE RUNNER" REVISITADO...



 “Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser.
Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. É hora de morrer”




BLADE RUNNER REVISITADO



"Hora de morrer", disse o androide,
um dourado ser ariano,
sentindo o tempo digital
de sua vida se acabando;

tempo de pétala, de pústula,
de pressa frívola, de dúvida,

destes fáceis jogos verbais,
coroas de lama e de louro
sobre os cabelos dos mortais;

hora de o ser voltar aos seus
eflúvios cósmicos de Deus.

ALBERTO DA CUNHA MELO




Vocês já foram assistir a Blade Runner 2049? Por esses muitos empecilhos de nossa vida moderna, eu ainda não fui, mas aproveitei o mote do novo filme, e o beneplácito da HBO Plus, e novamente assisti ao filme original... E, olhem, poucas vezes vi um filme ficar tão atual, tão melhor, tão delicioso com o passar dos anos, como é o caso de Blade Runner: o caçador de Androides.

Digo isso a vocês porque, apesar de o filme ser de 1982, e seu diretor, Ridley Scott, nos apresentar uma Los Angeles, de 2019, com carros voadores, viagens interplanetárias e robôs escravos, ele não erra na maneira como essa sociedade é retratada, e, principalmente, como ela se reflete na sociedade que temos hoje. Se não possuímos carros voadores, não viajamos no espaço, nem temos robôs ao nosso comando, os computadores mostrados no filme não são nem “o cheiro” dos que temos hoje, não há celulares, nem internet, mas cabines telefônicas onde se pode fazer vídeo chamada – pelo menos isso (rsrs) –, Ridley Scott, ao meu ver, não erra na decadência a qual essa suposta sociedade, de um distante 2019, está inserida e em completa consonância com a que temos hoje.

Blade Runner: o caçador de Androides, nos apresenta uma alegoria de uma sociedade que em tudo se perdeu por querer demais de si mesma. Uma sociedade que constrói humanos – ou “replicantes”, como eles gostam de chamá-los –, mas ao se assemelharem a Deus eles não dão às suas criações o direito ao livre arbítrio, ou a uma promessa de vida eterna, pelo contrário, esses  “replicantes” servem de escravos em colônias extraterrestres, e são programados para terem míseros quatro anos de vida total, não podendo formar lembranças sólidas, entendimentos, ou empatias suficientes para que se humanizem e assim se assemelhem aos seus criadores. Esses “replicantes” não podem viver entre nós, aqui na Terra, em nossa “antiga” sociedade, que nada mais é do que uma metáfora do que um dia foi um mundo prospero e que agora agoniza em seu sonho de grandeza, pois todas as pessoas que realmente podem construir algo de relevante no mundo partiram para colônias distantes, em meio às estrelas; o que sobrou foi um resto, que não serviu para um mundo futuro de esperança e novidade.

Quando seis desses “replicantes” se revoltam e voltam para a Terra, somos apresentados ao personagem principal da trama: Deckard, vivido por um jovem e visceral Harrison Ford. Cabe a Deckard, um Blade Runner (caçador de replicantes), encontrá-los e dar um destino final a eles. Nesse meio tempo, ele narra sua vida igualmente vazia e perdida de sentido em meio a uma cidade que não se apresenta menos desprovida de qualquer significado: Los Angeles é suja, úmida e habitada pela escória ou por humanos imprestáveis e não qualificados em todos os sentidos. Poucas vezes um filme foi tão sensorial quanto Blade Runner, quase dá pra sentir o fedor, o cheiro de suor e comida preparada na rua, o frio da chuva e a quentura-úmida dos pequenos hotéis e guetos de uma cidade em total decadência, que em tudo perdeu sua identidade e sua razão de ser.

Ao mesmo tempo, muito se pode compreender de uma sociedade que equipara os conceitos de “assassinato” e “aposentadoria”. E é justamente aí que eu considero Blade Runner tão atual, pois ele representa uma sociedade que começou negando valores e conceitos, os inverteu e depois os amenizou para enfim destruí-los. Não seria esse o grande mal de nossa sociedade, a amenização e a relativização de tudo? Quando um pedagogo pede a um professor não dar nota baixa a um aluno com a caneta vermelha, como se uma zero de verde fosse menos zero, não é uma negação da realidade através de uma disfarçada amenização? Quando aceitamos um fato de que um embrião não pode ser chamado ou aceito como ser vivo até determinado tempo de vida, não é isso que fazemos? Quando aceitamos que crianças toquem em um homem nu por simples “conceito artístico e estético” o que estamos fazendo senão negar, depois inverter e por fim amenizar, para destruir e, daí, acreditar que ‘bem’ e ‘mal’ são conceitos construídos e não algo verdadeiro, concreto e latente em toda criatura viva? Daí a máxima de que tudo é normal, ou não tão grave quanto aparenta? Não seria essa a personificação de um mundo sem Deus onde tudo se permite, se aceita ou se ameniza?

Muitos que não assistiram ao filme podem se decepcionar com seu clima “noir” e a pouca “ação” que se espera de um filme de ficção científica, isso porque tudo, em Blade Runner, é muito sutil e impossível de se compreender sem um mergulho tanto psicológico quanto filosófico em toda a atmosfera que ele nos apresenta. Por exemplo, os “replicantes” não voltam ao nosso mundo para dominá-lo, à maneira de Pink e Cérebro (rsrs), o que eles querem é o bem mais precioso que todo ser humano tem e muitas vezes pouquíssimos o aproveita: TEMPO. Eles querem mais tempo de vida, para amar, lembrar, sentir, viver... Querem ser humanos e não máquinas, querem viver o que não mais vivemos, aproveitar o que não mais aproveitamos, e sentir como nunca sentimos antes...Não para desperdiçar as suas vidas num turbilhão de orgias insanas, mas para fazer valer cada momento e dar-lhes seu devido valor. Isso é um soco em qualquer conceito moderno de mundo que podemos viver nos dias de hoje.

E por falar no mundo nosso de cada dia, não vejo alegoria melhor para ele do que o personagem de Sebastian, uma peça chave do filme e à compreensão da sociedade decadente e suja que ele nos entrega. Sebastian é o cientista, responsável por possibilitar a construção dos Nexus 6, esses “super-replicantes” que vemos nos filme, mas impossibilitado de deixar a Terra por sua condição física. E, por saber quem são os que permanecem por aqui, ou seja, os indignos e os dispensáveis, isola-se num apartamento onde vive com bonecos animatrônicos. Sebastian é um homem jovem no corpo de um velho, e uma mente de criança refugiada nas responsabilidades de um adulto que não tem outra maneira de dar significado à sua vida do que viver isolado em um mundo fantasioso que ele mesmo criou... ele é a pura personificação daqueles que vivem a vida digital mais do que a vida propriamente dita.  

E do conflito entre como os replicantes se enxergam e como os humanos os veem, cabe uma das análises mais poéticas do filme: a visão. Não ao acaso, a cena de abertura nos mostra o olho contemplativo de Deckard, observando a decadente sociedade em que vive. É assim que somos convidados também a ver, pela primeira vez, tal sociedade. É também através do olhar que o teste Voight-Kampff consegue descobrir quem é ou não replicante, num discurso de subtexto que carrega um enorme peso, uma vez que os olhos são a janela da alma. Logo, não seria ao acaso que Roy Batti (personagem de Rutger Hauer, e líder dos “replicantes” rebeldes), antes de matar o Dr. Eldon Tyrell (vivido por Joe Turkell), fura seus olhos. O encontro entre criador e criatura nos entrega a cena mais emblemática do filme, pois ao eliminar a visão de Tyrell, Roy está tirando o que o diferencia dos demais humanos ainda na Terra. O criador, então, morre como apenas mais um sem ver as maravilhas que sua criatura viu e lhe conta, como Deus mostrando a Moisés a Terra Prometida sem que esse possa pisar os pés: “Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. É hora de morrer”, diz Roy.

Ah, antes que eu me esqueça: o amor entre Deckard e Rachel (personagem da perfeitíssima Sean Young) é de longe um mero amenizador de toda angústia existencial do filme, pelo contrário: ele é um homem que viveu sua vida e suas memórias e, em algum momento de sua vida, ele se perdeu em todo esse significado; ela: alguém que vive uma vida e memórias inventadas querendo tirar um significado e uma vivência mesmo de algo que não é necessariamente seu, mas é tudo que ela tem. Não é à toa que eles vão viver longe do mundo caótico da cidade, onde podem aproveitar o pouco tempo de vida que lhes restam ao lado da única coisa que parece não ter sido criada pelo homem: a natureza. Deckard e Rachel vão viver a qualidade do tempo que lhes restam e não a quantidade deste...
...

  Não sei se Blade Runner 2049 é tão bom quanto o seu antecessor, nem quis saber de nenhuma crítica até esta semana onde eu o assistirei, porém, sua existência me fez revisitar uma das maiores obras cinematográficas da história, pois sem ele não existiriam filmes como Matrix, Ex-Machina, e muitos outros; e o quanto que ele tem a nos mostrar e a nos ensinar do mundo em que vivemos e que cada vez mais se encaminha para a Los Angeles de 2019 por ele apresentada... e, acreditem, isso não é nada bom...




  

sexta-feira, 19 de maio de 2017

WLADIMIR SALDANHA E A AUSÊNCIA COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO...

 

Autor: Wladimir Saldanha
Gênero: Poesia
Nº de páginas: 216
Formato: 15 x 19 cm


A AUSÊNCIA COMO VONTADE
E REPRESENTAÇÃO

ou AS MUITAS PATERNIDADES PRESENTES
NO LIVRONATAL DE HERODES
DE WLADIMIR SALDANHA


Parece claramente que a coisa mais importante no céu e sobre a terra é obedecer por muito tempo e numa mesma direção: com o passar dos dias, surge daí alguma coisa pela qual nos vale a pena viver sobre esta terra como, por exemplo, a virtude, a arte, a música, a dança, a razão, o espírito, alguma coisa que transfigura, alguma coisa de refinado, de louco ou de divino
NIETZSCHE

aos amigos e poetas Bernardo Souto
 Sérgio de Souza










Não se pode dizer que a vida de professor, mesmo a de um professor de Ensino Médio, não é uma caixinha de surpresas e que, muitas vezes, uma simples digressão possa levar este poeta menor que aqui escreve a uma reflexão mais aprofundada – à medida de minhas possibilidades, é claro – sobre os assuntos mais inusitados e, por vezes, importantíssimos à nossa cultura, bem como à Literatura, à Religião e, até certo ponto, à política. 

Digo isso porque, certa vez, alguns alunos meus perguntaram-me sobre o que eu pensava a respeito de Karl Marx e sua famosa frase: “A religião é o ópio do povo” – Die Religion Sie ist das OpiumdesVolkes", no original –, mas, antes de quaisquer deliberações (como em qualquer discussão  séria), fez-se necessário entender a pergunta em seu contexto, e não solta, como uma pedra arremessada na lagoa do conhecimento. 

Disse-lhes que a frase está na Crítica da filosofia do direito de Hegel, obra escrita em 1843, e publicada em 1844, no jornal Deutsch-Französischen Jahrbücher, que Marx editava com Arnold Roge. Em seu contexto imediato, lê-se: “É este o fundamento da crítica religiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o Homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu pointd'honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião”.

E continua: “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo [grifo meu]. A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola. A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, atue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo e, assim, em volta do seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não circula em torno de si mesmo. Consequentemente, a tarefa da história, depois que o outro mundo da verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade deste mundo. A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política”. 

Depois disso tudo, falei aos meus alunos que, todavia, os pressupostos de Marx – que não são totalmente dele, mas catados aqui e ali no pensamento de Kant, Hume e Comte – só podem partirdas conjecturas de um homem fora de um contexto espiritual e metafísico – e aí eu continuo a explicar: em outras palavras, apenas negando que o homem possui uma parte para além do material ou que não necessita de tal caracterização, o pensamento de Marx teria alguma lógica. Mas o homem é grande demais, em sua racionalidade, para não conceber algo mesmo fora dela, ou meramente materialista, para negarem qualquer coisa fora da matéria, que vai desde a imaginação aos pressupostos morais, como quer Marx, e seus mestres diretos como Comte, ou seus prosélitos mais hodiernos, como Foucault e Derrida. Neste sentido, não é o pensamento religioso, mas o ateísmo que é, meramente, um “problema de consciência” e uma “miséria da razão”, muito mais que, necessariamente, uma formulação racional; é um aspecto trágico da essência humana – e, nesse sentido, sua maior tragédia –, fruto colhido diretamente da amargura, da culpa, da impossibilidade de aceitação e do desespero; sintomas muito comuns desta estranha doença do espírito que consiste em negar aquilo que nos completa, que nos livra de todos os abismos, de toda dor e das impossibilidades que o vazio nos traz. De Robert Burton, passando por Kierkegaard, e, culminando, em Constantin Noica e René Girard, essa enfermidade, e todo desespero por ele causado, é um prenúncio da morte em vida; uma mentira romantizada que faz com que os homens vivam, realmente, do ilusório, ou seja, do desejo por aquilo que deseja seu semelhante; e ainda pior: de desejar, no impossível, o inalcançável.

Dessa forma, valeram-se, ao longo de séculos, todo tipo de ideia a buscar, como princípio, a negação do fato de que o homem é a mais excelsa das criaturas, o mais nobre de todos os seres. Negação que não me causa nenhum espanto, pois a substituição do Criador por outro deus menor e enganoso (e nisso o pensamento de Marx, e sua semente, têm se dedicado ao longo de mais de um século), a se valer das graças deste mesmo Criador desprezado, é o ponto de partida de todo paganismo e de toda ideologia ateísta; até porque, a visão grandiosa do homem não é fruto do Humanismo, ou do Iluminismo, muito menos ainda do Comunismo e mesmo de qualquer outra ideologia de nosso mundinho politicamente correto; se, realmente, existe algo de bom no Socialismo, por exemplo, é porque foi furtado do pensamento cristão. Sobre Marx, por exemplo, e seu legado, Eric Voegelin, em seu História das Ideias Políticas – com a ajuda da tradução de meu amigo Elpídio Fonseca –, avisa-nos sobre este apocalipse humano, ao afirmar que: “na raiz da ideia marxista, encontramos a doença espiritual, a revolta gnóstica”. Por mais que não se diga muito a seu respeito, semelhante doença nos mostra o que já observamos no caso de Comte e suas características, que, a seu turno, pertencem ao padrão mais amplo da “doença cientificista e anti-religiosa”. Para Voegelin, a alma de Marx está demoniacamente fechada à realidade transcendental, não conseguindo se desprender das dificuldades, retornando à liberdade do espírito e o ativismo gnóstico, graças à sua impotência espiritual, é a única saída que lhe resta. Advém daí, como afirmará Voegelin, a combinação característica de “impotência espiritual com  o desejo mundano de poder”, acarretando “in a grandiose mysticism of Paracletic existence”. Eric Voegelin, então, sentencia: “and again we see the conflict with reason, almost literally in the same form as in Comte, in the dictatorial prohibition of metaphysical questions concerning the matrix of the universe, questions that might disturb the magic creation of a new world behind the prison walls of revolt”. Marx, à maneira de Comte, não permite uma discussão racional de seus princípios – ou se é marxista, ou se se põe em silêncio.

O que sobra disso tudo é a mera correlação entre impotência espiritual e antirracionalíssimo, ou, melhor dizendo, não se pode negar Deus e conservar a razão. Ora, se não há uma metafísica como Comte e Marx queriam que pensássemos, então, na há coisa nenhuma, porque tudo que nos rodeia é metafísica antes de ser qualquer coisa. E se há um Socialismo, um Antropocentrismo, ou coisa parecida, em sua verdade e plenitude, estes só podem advir do fato de o homem aceitar-se como uma criação do Divino, a mais poderosa obra de Deus, a maravilha entre as maravilhas da Criação. E mesmo que sejamos pó, resquício de estrelas ou coisa semelhante, como querem alguns, ainda assim somos “pó levantado” (como dissera Pe. Antônio Vieira) da ansiedade de si mesmo e do desejo de retornar ao seu Princípio; negar tal coisa é transformar-se num autômato, em uma máquina ou um mero gorila morto no Congo a quem idiotas sem esperança choram como se fossem por seus entes mais queridos; é não dar sentido nenhum a sua vida; negar isso é negar a verdadeira natureza humana, e, pela melancolia e pelo desespero, condenar-se, ainda vivo, a um inferno de incertezas através de um falso humo universalis, que não possui outra função senão destruir o Criador pelo desmantelamento de sua obra maior.

E completei: Marx fala de um mundo invertido no campo do pensamento religioso e de sua miséria, mas que ele mesmo, na negação de algo que ele não consegue, nem quer entender, vê-o invertido. Aliás, não é a primeira vez que isso acontece no pensamento marxista; o próprio conceito de Mehrwert, por exemplo, é errôneo em si mesmo se se partir da ideia de que só o trabalhador produz riqueza, enquanto que o capitalista só o explora. Sem a empresa, não existe riqueza. A dependência só funciona de forma mútua. O empresário, como disse Ferreira Gullar, é “um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas... É um criador, um indivíduo que faz coisas novas”. A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só explora é radical, sectária, primária, assim como a visão de que o homem só precisa do mundo objetivo e material é negar a abrangência da própria natureza humana. A partir dessa miopia, sustenta Ferreira Gullar, tudo o mais deu errado para o campo socialista.

E, assim, encerrei a dita resposta...

Não sei se foi satisfatória para os meus alunos do Ensino Médio, ou se apenas acabei passando, no mínimo, por prolixo, contudo, só pra ser sintético – e também provocativo (como cabe a uma boa discussão filosófica), deixei-os com a frase do jornalista americano Edmund Wilson: “o Marxismo é o ópio dos intelectuais”.




I

Toda essa conversa, entretanto, deve gerar, no mínimo, outra pergunta: o que tudo isso tem a ver com a análise de um livro de poesia, como enunciado no título acima? Simples, é justamente para mostrar que, apesar de os pressupostos filosóficos de Marx serem tão rasos e fáceis de desmascarar, não podemos negar que justamente por isso aí está o seu sucesso, por assim dizer: na escala de valores que Aristóteles via na literatura – mas, como a vida imita a arte, às vezes, podemos estendê-la à política e, nesse caso, é mais fácil nos compadecermos, e até nos reconhecermos, de um personagem, digamos, “patético”, do que alguém realmente profundo ou em algo, digamos, mais sofisticado. É só levarmos em questão o quanto que a maioria das pessoas se tem colocado já alguns séculos, numa posição cada vez mais medíocre, em relação a si mesmas, a ponto de chegarmos ao final do século XIX com uma “massa”, como diria Ortega y Gasset – que acreditava que, na existência de uma vocação, não para uma carreira profissional, mas para um rumo que se imprime à existência, devemos atentar e atender a um chamado íntimo, mas só àquelas pessoas que o saberiam ouvir –, pois a maioria das pessoas encontrava-se em um total estado de “miséria” que se fariam surdas a quaisquer chamados individuais, deixando a cabo de poucos (ou de um Estado acolhedor) a resolução de todos os seus problemas. Isso sim é miséria, mas não aquela miséria a qual estamos acostumados a ver e ouvir na TV, ou nos discursos políticos e que muitos acham que alimenta o “Bolsa Família”; uma miséria filosófica e cultural que tanto Ortega y Gasset, bem como Eric Voegelin, chamam a atenção; uma miséria cultural e filosófica que Marx diz ter achado em outras paragens do conhecimento humano, mas que nos últimos 150 anos tem sido alimentada pelo seu pensamento antirreligioso. Entretanto, ao contrário do que se tem visto nos últimos anos, principalmente nos primeiros anos do século XIX, onde as misérias, sejam elas de que tipo for, deixaram de ser um problema para se tornarem uma via-de-regra, alguns escritores têm se negado a abraçar tal “revolta gnóstica”, trazendo para o vazio intelectivo que nos tem cercado cada vez mais aquilo que a “doença espiritual”, citada por Voegelin, nos tem tirado: um Sentido. É o caso de João Filho e seu Auto da Romaria; Lorena Miranda Cutlack, com O corpo nulo, ambos lançados pela Mondrongo.  E é o caso de Wladimir Saldanha, em seu livro Natal de Herodes, a nos mostrar, como queria St. Agostinho, que há, em nós, algo mais profundo do que nós mesmos.

Ao contrário do que muitos podem pensar, Wladimir Saldanha, em seu novo livro de poemas, não está nos trazendo um “mais do mesmo”; quando lidamos com os temas Bíblicos, o único limite são os limites do próprio autor. Os símbolos contidos nas narrativas bíblicas sempre se farão novos, porquanto tratam da própria essência de nossa cultura e literatura. O pastor protestante Northrop Frye, em seu The Great Code, já nos mostrou que, praticamente, todos os enredos da literatura ocidental provêm de raízes bíblicas, lidar com esses temas é tão redundante como nos é redundante respirar, comer ou amar. Da observação de Northrop Frye, pode-se concluir, como nos admoesta o filósofo Olavo de Carvalho, que a literatura ocidental como um todo é, sem sombra de dúvidas, parte essencial do processo que Eric Voegelin chamou "descompactação dos símbolos", pelo qual os velhos símbolos se apresentam em versões cada vez mais diferenciadas, renovando possibilidades de intelecção que a passagem do tempo vai tornando cada vez mais opacas. Isso quer dizer que não é mesma coisa que ler a narrativa bíblica com uma consciência literária desenvolvida e lê-la tão somente com o suporte teológico-dogmático, e um poeta como Wladimir Saldanha, que não tem a menor pretensão de ser menos que um grande poeta, não pode abrir mão de qualquer fonte, referência ou inspiração e não está aqui para meros dogmatismos; Wladimir não se acanha diante das referências religiosas, dessa sempre renovada "descompactação dos símbolos", muito menos das referências clássicas, ou se mostra envergonhado em tomar para si mesmo os sons e os ritmos das cantigas populares, das lendas que se renovam dentro dessas canções, parlendas e cirandas. E, nessa ciranda linguística de seu Natal de Herodes, não se faz de rogado em se utilizar nem da linguagem simples e musical das cantigas de roda, muito menos da substantival e precisa anti-lírica à João Cabral de Melo Neto. A fusão de tantos e tão diversos elementos, pelo contrário, dão à poesia de Wladimir uma dimensão que não pode ser percorrida por um leitor desatento, muito menos despreparado. Duvido muito que isso se apresente para o autor de Natal de Herodes como um problema ou uma angústia que precise ser aliviada; mais do que um compromisso com seus leitores, Wladimir deixa bem claro que, primeiramente, seu comprometimento é com a poesia e as muitas possibilidades que a linguagem e a forma poética podem oferecer... e eu o louvo por isso. Um poeta que não propõe um desafio, no mínimo, intelectivo aos seus leitores não me parece compromissado com nada que diga respeito realmente à literatura, apenas, porém, ao fato de ser reconhecido como alguém que faz literatura, e disso, se o Inferno não está cheio, o cenário literário da Bahia e do Brasil está a transbordar.

St. Agostinho nos chamava a atenção para um vazio existencial presente em todos nós, ao afirmar que o coração inquieto dos homens somente em Deus encontrará repouso. Não é à toa que Wladimir Saldanha permeia seu livro com esta ideia: a orfandade e o abandono. Tema muito recorrente, que aparece e reaparece tantas e tantas vezes neste livro, que acaba por ser o leitmotiv que conduz autor e leitor aos muitos caminhos para onde estes poemas apontam; a ausência de um pai, muitas vezes uma ausência de sentido e a quase ausência de muitos sentimentos, vêm e vão em tantos momentos que mais parecem querer que nos guiemos para algum lugar ou ideia específica, mas não sem antes fazer com que tenhamos essa experiência íntima, esta que Octavio Paz nos lembra   em seu El arco y la lira, que sentimos la orfandade antes de tener consciencia de nuestra filiación, e que mesmo um ateu como Heidegger sabia que experimentamos tais coisas antes mesmo de termos a convicção de quem somos. O fato de sermos cristãos não nos afasta de tais experiências, pelo contrário, sabemos de nossa incompletude, de como nossos erros nos afastam de Deus, porém, não dançamos em meio ao vazio como uma bailarina louca; o coração de todo cristão sabe o que lhe falta e onde encontrar, e, para que servem as palavras, a presença e o sentido da vinda do Cristo a não ser para aqueles que estão cansados, humilhados, destruídos, desesperados...?! O próprio poeta descreve em seu poema Os Mutilados: “recém-chegados, recém-saídos, egressos de si mesmos, só queriam Informação...” Este saber de nós mesmos, esta viagem que fazemos dentro de nossa alma para seguirmos um caminho diferente do antes traçado, é fruto de um saber para além de toda razão, e que só é possível quando a vida nos mostrar a sua força viva, a sua renova, sua possibilidade advinda da incerteza, como um novo ser que nasce; como outrora um Deus entre nós nascera. Mas, até que isso, de fato, aconteça – e se acontecer, visto que o Céu não é para todos – não podemos captar ninguém, nem nós mesmos, no mais completo íntimo, muito menos ter a noção plena da essência última presente em nós, e, menos ainda, como queria Viktor Frankl, capacitar a nós mesmos ou alguém a realizar as suas potencialidades. O que nos resta é nos jogar na miséria gnóstica da qual o marxismo se alimenta e propaga... Mas Wladimir Saldanha e sua poesia não estão aqui para isso. Veja o seu O Oratório Vazio:


Por que guardá-lo vazio?
Por que fazer caso dele
para guardá-lo vazio,
os santos fora, com frio?

Há vazios que guardamos,
cheios que são de sentido.
Vazios em cerejeira
e portinhola de vidro

são desses, mas se abrem
se lá formos conferi-los,
e a sua cruz cimeira,
deitamo-la intranquilos.

Quadratura das beiras,
dobradiças do ter sido:
o oratório da bisa,
à guisa de quê, vazio?

Gratidão por umas freiras;
por outras, um prurido
que sangras e dá-me coceiras,
como estilhaços de vidro;

incandescente, o silício
é vidro quente e a madeira
da cerejeira incendeia!
Ateu? Só ateio Francisco:

Que eu leve luz, onde treva;
compreender, que compreendido...
Jamais fogo, o que me leva
é essa fé de consumido!

Cheio é só de oração
meu oratório vazio...
Da oração de São Francisco,
de Santo Antônio, seu filho;

e as de Verlaine, e Bandeira,
no oratório em cerejeira
e portinhola de vidro.
Com seus vazios de sombra,

com tudo que tem de espólio
e das faltas que entesoura,
eis que guardo um oratório
pois há algo nesta ausência

 – que confiro vez por outra
ao abrir a portinhola –,
sim, há algo nessa ausência
que, não direita, consola,

mas sem nome se acrisola.
Ora aceito essa exação
de moderno e de antiquário:
nem desfazer-me nem tão-

pouco fazê-lo em pedaços.  


que não podia se completar de forma melhor, do que com este sonetilho intitulado O Morgadio:


Não reclamo a nostalgia
do metro e meio do céu
do voo de minha pombinha,
a pombinha de papel,

que em tantos rodopia,
pois não a exclamo eu...
– explico: a tal pombinha,
dobradura de papel,

a mesma do barquinho,
que, se aberta, era chapéu,
mas, cortada – aviãozinho...

O caxangá não se abriu?
Cortou-se o mar, e o céu
 – metro e meio! – é morgadio?

O que falta é que é mais meu.


A dor da orfandade é uma dor terrível, sem dúvida, nada obstante, poucos se dão conta que tal dor também é semelhante à dor que Deus deve sentir quando abandonado por seus filhos, sofrendo por causa da rejeição e da desobediência por parte daquilo que ele criou com tanto afinco.  A orfandade é a própria alegoria do homem sem Deus: sozinho, abandonado, desconfortado em seu próprio mundo, sem razão de existir em um mundo onde o mais ínfimo propósito não existe e onde tudo que ele, mero resultado de um acaso molecular ou coisa semelhante, pode experimentar de mais concreto é, sem fazer rodeios, sentir-se um órfão. Há muitas orfandades: pais mortos, que nos abandonam, nos esquecem; filhos se esquecendo de seus pais, ou rejeitando-os, largando-os à própria sorte, produzindo igual sentimento; assim somos nós sem Deus: filhos sem pai que, não sabendo como lidar com tamanha dor, inventam seus próprios pais, criam para si figuras para substitui-los e assim aplacar seus sofrimentos. Marx diz ser a religião e Deus uma invenção humana, para aplacar um vazio; todavia, como já disse anteriormente, Marx só distorce os fatos, pois não consegue viver fora de sua “revolta gnóstica”; por isso, ao fechar os nossos olhos à realidade e abandonar a certeza de um Deus vivo, não resistimos à dor dessa orfandade e elegemos outros deuses, porque é certo que um homem sem Deus não disponha doutra alternativa a não ser imitá-lo de alguma forma, por isso, o mundo puro e natural, a história e a ciência, tornaram-se deuses por muitos eleitos sem outro propósito que não seja o de substituir um deus deposto; entretanto, o mundo puro e natural, a história e a ciência, por mais maravilhosos que possam ser, acabam por esgotar a realidade; o mundo sem Deus é, do contrário que pensam muitos, transformar-se não em um resultado direto da razão, mas num  produto de fantasia, projeção humana, elaboração simbólica, tudo sem substância ou profundidade ontológica; ah, pobre Marx... E é de sua própria orfandade, por exemplo, que o Dr. Victor Frankenstein, do romance de Mary Shelley, tira a ideia fixa de “fabricar vida”, como um recurso inteligente, mas desesperado, de alguém que reconhece o vazio ontológico de uma existência sem fé, e enxerga um mundo pobre e desesperado que nasce de tal vazio.

Essa fixação, diga-se, pela orfandade é, por exemplo, uma característica muito marcante da era Vitoriana, bem como de todo o século que nos deu Marx, Nietzsche, entre outros, que fizeram do niilismo não uma verdade, mas uma fuga para as coisas reais.Vejam, por exemplo, como a orfandade é exacerbada pela literatura de Dickens, que era cheia de protagonistas órfãos. A destituição, miséria e doença que vieram com a urbanização desenfreada, com o cientificismo profético e a Revolução Industrial, provocam essa orfandade como a que se vê em Oliver Twist. Passou-se pouco mais de uma centena de anos após Dickens e o niilismo é uma via-de-regra cada vez maior; o sucesso da série 13 Reasons Why, da Netflix, vem nos mostrar muito bem isso. Falta de aviso não foi, já que Camus, amais de meio século, em seu O mito de Sísifo, já nos avisara sobre isso, ao afirmar que “matar-se é, de certo modo, como no melodrama, confessar; confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se tem como compreendê-la”, mas como compreender a vida se ela não nos dá algo para compreendê-la, para dizermos a nós mesmos que ela é especial, que há algo maior nela, e para além dela. Marx, ao afirmar que a religião é o ópio do povo, criou uma rede de destruição de sentido responsável pelo muito que de pior veio acontecer ao mundo nesses últimos pouco mais de cem anos; sua devastadora onda antirreligiosa deixou e deixa muitos no abandono total, uma vez que o ateísmo também nos deixa órfãos e essa orfandade nos faz criar monstros, sejam imaginários ou fictícios, como no Frankenstein, de Mary Shelley, ou aqueles que surgem todos os dias na nossa rua, de nosso vizinho, ou em nós mesmos.

         É claro que Wladimir Saldanha em seu Natal de Herodes nos relembra e mostra outro caminho, não transformando a orfandade numa doença incurável, muito menos num vazio de sentido que nos conduza à negação ou à morte autoinflingida. Nas muitas referências que faz ao pai ausente, por exemplo, e mesmo nas muitas faces que lhe empresta, Wladimir transforma essa ausência em uma averiguação que é mais que uma busca por outro; é na busca de si mesmo em todas as personificações que a figura paterna vem recebendo ao longo deste livro; todas se fundem nessa investigação minuciosa. O poeta não procura em outro pai ou família, não se compadece demasiado de si mesmo, muito menos perde tempo sentido pena de si; é necessário que a orfandade não seja sentida como algo que o assombrará por toda a sua vida, muito menos sentir-se órfão de um fantasma, mas sentir-se mais vivo e certo de um sentido justamente por sentir análoga ausência. A ausência não pode ser razão de morte, mas uma razão para alcançar o que de mais vivo podemos alcançar; algo que transfigura, que em nossa busca nos reconheçamos. Acredito que, na tentativa de reconhecer e entender a sua orfandade, o poeta não venha a se sentir só em seu abandono, desaconchegado em seu próprio mundo, sem razão ou propósito, mas que venha reconhecer a verdade, o chão onde pisa e o porquê da própria existência. Vejam, por exemplo, os sonetos que compõem o poema A linha Pulada:


 Não morre o pai ausente nalgum pai de alguém.
Não ganho num velório algum choroso irmão.
Ainda que o queira, eu não me dou de órfão.
É que mesmo avejão o pai ausente é nem.

No filho de alguém, nem eu morro também.
Não ganho no velório o pai de alguém então.
Pareço até mais vivo, órfão de avejão,
e o pai de filho ausente nem um nome tem.

A morte não se dá com alguma ausência extrema.
Não direi a do morto, a de um corpo presente,
mas duma que nem foi, mas vai: eis o problema!

As salas de velório, embora em sua ausência
frequente-as quando vou, o pai, tal no poema,
foi ele que pulou do Livro de Presença.


E completa:


Foi ele que pulou do Livro de Presença?
Nem isso digo mais com uma igual vontade.
Sou dom Quixote à morte e a minha necedade
eu já conheço; e deixo aqui as burlas da ausência.

Chamai o cura e o notário, a assistência.
Não cuido mais de pai andante cavaleiro.
Volvendo agora ao siso, porém, nenhum dinheiro
lego a Sancho leitor, por sua paciência

de me seguir até os lindes da loucura,
eu que lhe prometera ilha (em outro livro);
mas me chamai, chamai notário e cura,

para me escarmentar, legar o bom juízo,
que vá restituir ao pai feito figura
o pai sem disparate – e morro Alonso ungido. 



Ainda tentando entender e transfigurar esse sentimento, em seu Natal de Herodes, Wladimir Saldanha não se encabula em abusar das mais diversas formas e ritmos poéticos para fazer valer suas ideias e referências diversas, são sonetos, sonetilhos, quadras, versos livres, versos brancos, poemas carregados de prosaísmo ou de lirismo; também não se faz de rogado em conversar com linguagens artísticas diferentes, como as artes plásticas e até a música, para as muitas composições de seu pai ausente, como podemos perceber em poemas como Retrato do pai ausente em técnica mista:


 Cavei-o em auto relevo
para fazê-lo carimbo:
assim a xilogravura
tirou-o primeiro do limbo;

foi como cavar em cavacos
o dia, que ele me dera,
para avultar os seus traços
de anoitecer tinta negra.

Fiz alguns pais de sucesso
com a minha matriz;
mas, artesão, o meu preço
não pagava um só que fiz.

Quando, após umas provas,
só se mostra opalino,
sonhei-me artista co’as novas
feições de quase menino

e aproveitei as mais clara
para fazer uma encáustica:
cera quente de espátula
que garantisse umas caras

duráveis, como de antigas
urnas que há, funerárias;
lá onde a cera aglutina
pais de nobrezas várias.

Mas eis que minha encáustica
logo ficou craquelada:
faltoudâmar, ou nobreza
da dama que é minha espátula?

Ora assim como um restauro,
pintei a óleo seus veios:
ocraquelê dos receios
compôs, fiel, um mosaico

sobre que apliquei verniz
(mais por não se soltasse
do que para dar matiz
de brilho na tal face)

e logo que foi seco
o ausente em técnica mista,
pus a vender o meu treco,
mas, ai! Eu não era artista.

Por isso aqui o penduro,
a ver se agrado um olho:
xilogravura, restauro
de si, encáustica e óleo,

eu dou até de presente,
se nunca mais tive paz;
levai o meu pai ausente,
pois já tentei aguarrás.


ou neste Em Nova Iorque por Tom Jobim, com direito a clave de sol, segno e coda:



Dizias, como tuas blagues,
admirando as alturas
dos prédios de Nova Iorque,
ser essa uma tal cidade

“pra se contemplar de maca...”
Incrível o teu cadáver,
sem pasmo de arquitetura,
adivinhava uma placa

ali, da morte futura.
No céu do sertão, já eu,
surpreso da mesma morte,

não pude achar-te a estrela
que manda o lugar-comum...
Eram muitas; eu, nenhum.




Há céu? Ofusca.
Estrela, escava
alguma música,
qualquer palavra

que traga sono
aquém não dorme.
Inútil, longe,
teu corpo enorme...

Chegam de fusca:
por que tão triste
sem ser parente

 – sem ser parente?
Estrela, insiste!
Há céu? Te busca!





A blague,
o céu:
cidade
e eu;

a nova,
a morte:
a cova
iorque.

Sertão
ardendo;
à noite,

o frio...
Tremendo
o rio.



 
O poeta Wladimir Saldanha


II

A ausência de um pai é, para Wladimir, a sua profissão de fé e o sentido mesmo que emprega em todo esse livro. Gregory Wolfe, citado por Dionisius Amendola, em seu canal no YouTube, diz-nos que a fé deve permanecer fiel à experiência e ser muito mais que uma cegueira sentimentalista; deve reconhecer e ser permeada pelo sentido trágico da vida, um sentido que se impõe sobre todo niilismo, todo relativismo, toda politicagem barata de nossos dias, pois todos nós enfrentaremos, mais cedo ou mais tarde, a nossa própria escuridão. O mundo em que vivemos faz de tudo para que não façamos tal reflexão; estamos sempre distraídos com algo; com a vida alheia nas redes sociais, com o Netflix ao celular, com os joguinhos de computador, com lutas e revoluções que não são nossas e nem se quer a entendemos em sua complexidade e sentido – quando essas os têm –, tudo para nos impedir de encontrarmos a nós mesmos, de nos deparamos com nosso próprio vazio diante do mundo, diante de quem somos. Quantas vezes esquecemos dessas “distrações” para olhar para dentro de nós? Não há nada em nosso mundo, cada vez mais empenhando em fugir da realidade, que nos impulsione para dentro de quem somos. Mas a poesia deve se debruçar sobre tais questionamentos, ela deve nos lembrar dos muitos abismos que carregamos, como faz Wladimir Saldanha, em seu Natal de Herodes, que se arremessa, e juntos também nos arremessamos, para o abismo da ausência paterna. O que é isso senão um mergulho no desamparo? Mas não o desamparo de um pai, de um filho órfão, mas àquele desamparo a que toda criatura sobre a terra se recolhe e está destinada, e cuja consolação está naquele repouso que St. Agostinho apontou com tamanho acerto? A consciência desse desamparo, torna-nos humildes diante dos mistérios da divindade, que nos faz fortes e perseverantes diante da aparente falta de sentido de nosso mundo que não se olha, que nos encaminha à liberdade diante das ideologias que envenenam nosso mundo.

Hans Von Balthasar, em seu ensaio Tragédia e fé cristã, chama-nos a atenção para o que ele nomeia de sentido trágico da existência, lembrando-nos que as boas coisas que pertencem a este mundo não se sustentam por si mesmas, como já bem sabiam os artistas do Barroco, estando fadadas ao desaparecimento, isso nos conduz à contradição e à alienação, fazendo com que carreguemos uma maldição ou uma culpa hereditária. Não podemos, por mais que lutemos, nos livrar de tais condições ou tradições, mas suportá-la quando nos encontramos diante do abismo. Mas me parece que o pensamento materialista encontrou um meio de enganar essa contradição – na verdade se enganado e enganando a nós mesmos – nos fazendo acreditar que a essência humana não possui uma razão ou uma realização, como queria Karl Marx, ao dizer que a abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real; a inversão de Marx nos leva ao mesmo abismo que a vida como conhecemos, cercada pelo sentido trágico da vida, também nos conduz, sem, é claro, nos mostrar que há uma salvação para além desse abismo. O que Marx faz com tal inversão é pôr as lâminas de barbear nas mãos de Hannah Baker, ou uma Charlotte cada vez mais impossível na frente do jovem Werther. Se não dermos ouvidos ao nosso desejo de transcendência, se não aprendermos a olhar para o vazio nosso de cada dia, se diante do espelho não negarmos quem somos, nos distraindo todo momento para esquecer de nós mesmos, talvez possamos compreender o sentido de todo sacrifício, e não sejamos destruídos pela lembrança fantasmagórica de nossos próprios medos e incertezas, mas dá a elas uma nova forma e valor, como faz Wladimir com a figura de seu pai; essa ausência gera no poeta uma vontade, um impulso de morte e realização que não se apazigua enquanto não se transcende, ganhando uma ou várias representações que se encadeiam ao longo de seu livro. Do contrário, seremos como Jonas a fugir do que não pode ser enganado; porque a fuga de Deus jamais deixará de ser uma fuga de quem realmente somos. Ou encaramos, ou e aceitamos; do contrário, nem quentes nem frios, o que nos resta é sermos vomitados de um âmago que não nos pertence, como Wladimir nos relembra em seu Jonas:


 Escuro é o grande peixe
por dentro. Tateio os signos
ondulando os borborigmos
quando engole mais um peixe.

Nínive, o que é Nínive?
Lembrar-me, por exemplo
do Pai. Se o não tive!
Agora a víscera é Templo.

O ar que respiro é ferroso,
ar de sangue vivo. Escuro,
só enxergo o meu remorso,

e pelo cheiro sei que é rubro.
Louvo o breu, louvo esse fosso
que não omito. E Tedescubro

e me descobre num vômito.


É preciso dizer o quanto que a memória também tem uma importância imensa à composição deste livro, e à ideia de tragédia que ele, em determinados e precisos momentos, explora. E já que Wladimir impregna estas páginas de memórias, sejam suas ou de personagens históricos – pois a memória de um grande poeta também é a memória de seu tempo e da história –, preciso dizer que aqui, neste sentido, Natal de Herodes muito se assemelha ao livro Auto da Romaria de seu compadre João Filho. A poesia que se apresenta tanto em Natal de Herodes, bem como em Auto da Romaria, funciona como transfiguração demasiadamente precisa, como transporte à história e à imaginação. A história, como afirmei no artigo que escrevi sobre o livro do João, é um meio de transporte, o mundo é um transporte, a imaginação é nossa maior nave, e assim como em Auto da Romaria, no livro deWladimir tudo segue um curso muito delimitado e preciso, mas em um ritmo diferente ao livro do João Filho; se no Auto da Romaria o rio o segue, as brenhas abertas entre os morros o seguem, as procissões o seguem, a fé segue-o inabalável, em Natal de Herodes seguimos figuras bíblicas e históricas, seguimos memória e imaginação, ausência e espanto, e os leitores de ambos os livros segui-los-ão independentemente de suas crenças, até porque, como afirmei outrora, a poesia é também transporte, e, ao fim da jornada, apenas os que souberam realmente o que buscar encontrarão. Parece-me que é exatamente isso que o poeta tanto almeja: um encontro, uma resposta, um sentido que, à maneira de um Dom Casmurro, possa unir duas partes de uma vida, vivida ou inventada, real ou imaginária, fictícia ou história, dolorosa ou transcendente...

Que outro motivo o poeta teria para falar a respeito do Advento, do Natal, do nascimento de um Deus, pois como nos disse Olavo de Carvalho – lembrado pelo próprio poeta: tudo é incerto quando um Deus vai nascer? Que outro motivo a não ser atar duas pontas dessa nossa existência humana, perdidas entre o que vemos e o que está além, entre o que tocamos e o que se esconde para além do que pode ser alcançado, entre as necessidades do dia a dia e o desamparo que nos rodeia? Onde um pai pode ser Deus, ou por Deus substituído. Onde esse Herodes pode ser o Rei real e medroso de perder seu poder e certeza, como todo homem comum, ou, na figura desse Herodes, a ideologia que vem nos afastar de Deus dizendo que nossa vida não tem razão ou sentido? Que outro motivo o poeta, diante da vida, da memória e da imaginação criadora que são suas, apossa-se de vidas que não são suas, de imaginações que não lhes pertence, de vidas que não poderia viver? Que outro motivo faria o poeta, refletindo diante de tudo isso, transformar passividade em ação, ação sublime? Que outro motivo faria o poeta, em total autoafirmação, admitir que a Paixão não é passiva, que o Sacrifício não é vão e que a Dor não é para sempre? Mas, na união destas duas extremidades, o que o poeta enfim deseja senão preparar o seu pulo, como é preparado mostrado e dito neste O pai epílogo...?:


Primeiro serão os últimos,
disse-me o Pai Epílogo.

Vinde a mim estes adultos
que mal foram criancinhas;

sou eu o Leão de Judá:
não chores, ó filho prólogo,

sou da Raiz de Davi,
e fui à força arrancado.

Extirpado, eu não nasci
de novo: tornei-me da morte

qual renitente raiz
estoura bulbos no ar.

Voltei gavinha aqui
para abrir e desatar

não o Livro e os selos sete,
mas os teus, secos – e este.

Chega aqui a minha juba,
toca a aspereza das cerdas:

é a barba de teu pai
jamais feita, a gora hirsuta.

Meu carinho apocalíptico
te lanha e te absterge.

Vem-me, ó pequenino:
meu rosnado te protege.

És um prologo que vinha
Dispensável! Disse nada

como tantos, numa noite
em que vim nascer na palha –

quando o gládio de Herodes,
brilhoso e cego à metáfora,

cortou-me tantos preâmbulos!
Chorei vagido por todos.

Vê: explicar meu reinado
era Epílogo, não Prólogo...

Infância minha, ensanguentada,
embebe-te a dessangrada.

Choraste pelo teu pai,
porque te cercou de vazio?

Também o meu: pareceu-me
que o rugido era silêncio.

Tens lá longe a tua praça,
teu jardim expatriado?

Tive o meu, de oliva e árido:
savana do Getsêmani.

Teu pai chamou de pai
teu meio-irmão, feriu-te assim?

Eu só tive meio-irmãos,
e me cuspiram, ao Pai em mim,

qual novilho que cuspiste:
pudera eu ser, e Cordeiro!

Cuspiste, oariesphinx,
monte e chão, neve e braseiro.

Mas conheço a tua ânsia
não de lãs: de cerda ruda.

Por isso, minha criança,
eis Leão, eis garra e juba,

como Epílogo, ou prolepse
de João no Apocalipse.

Dou-me ao teu tato sem nexo,
que preme o ar deste dia!

Tens a fome do Deus Homem,
que alfarroba não sacia;

és do que tateiam ausência,
no silêncio... Desta vez,

com as de outro pai, mãos pensas,
cofia e textura dos tufos

enquanto meus olhos de corça
preparam – doces – o pulo. 


mas não sem antes atar-se ao Pai, o Pai Todo Poderoso, como neste A oração da orelha de Malco, porque o último milagre de Deus seja, talvez, fazer com que a sua criação volte para ele, a atar-se novamente, merecidamente, curando a mutilação que, uma vez, o ateísmo provocou:


 Colhe-me do chão, Senhor,
gruda-me a cabeça à minha cabeça,
a tumefeita cartilagem
entre a costeleta e a têmpora.

Afasta o gume do apóstolo
e gruda-me esta metade
decepada com o lóbulo,
como um último milagre 

discreto, quando Te rogue,
na confusão deste palco,
orelha, tal de Van Gogh,

eu, pobre orelha de Malco,
com o sermão sem sacerdote,
que por ouvir me desfalco.



O poeta e desenhista Felipe Stefani





III

         Não poderia terminar de falar a respeito desse livro sem abrir um parênteses a respeito dos desenhos de Felipe Stefani. Seus traços são muitos mais que meras ilustrações para amenizar o tamanho e a densidade deste livro; vejo-os como personagens a mais de toda essa narrativa – sim, eu considero os poemas de Natal Herodes como uma história que se faz, desfaz-se e recomeça muitas vezes, para contar, de diferentes formas, um drama humano que teima em não se esgotar –, personagens mais do que coadjuvantes, pois eles completam e introduzem momentos decisivos em meio a tantos versos, com seus traços rápidos e sinuosos não amenizam os dramas contidos aqui, pelo contrário, torna-os ainda mais densos e complexos se olharmos para estes desenhos que, à primeira vista, ou para os olhos leigos, nos parecem esboços, mas é justamente em suas formas assimétricas e aparentemente inconclusas (em traços que, pelo que nos parecem, têm seu início e seu fim em si mesmos), que imaginamos formas vindouras, coisas que ainda teimamos em descobrir.

Como Hilton Valeriano disse, certa vez, os desenhos de Felipe, longe de uma mera abstração sintética, manifestam a forma, isenta de toda matéria, em seu prenúncio. Sua subjetividade de artista busca o instante nascedouro, o esboço humano de concretização, o que nos leva à questão da definição de um ser em sua essência. Por isso mesmo, Wladimir não poderia ter escolhido melhor ilustrador, até porque se, em sua subjetividade, Felipe Stefani, traça e retraça a incessante busca de instante nascedouro, o que os versos de Wladimir buscam neste Natal de Herodes que não seja um sentido de nascer, saber-se alguém, dar uma razão às coisas ou a si mesmo? Bastar olharmos para os traços de Felipe para sentirmos que o ser humano como um ser destinado à realização, no uso de seus espaços, a possibilidade de algo se concretize e em sua projeção, um ser humano sempre aberto às possibilidades. Para um livro que não apresenta outro designo que não seja uma busca de si mesmo, esses desenhos, ainda citando Hilton Valeriano, não me parecem ter outra função ao Natal de Herodes que não seja apreender a ação humana em seu intento e simultaneamente mostrar toda a dimensão provisória de sua realização, toda a possibilidade ou não de concretização de seus anseios, revelando a principal característica do homem: a liberdade. A liberdade como dimensão definidora do homem, como sua essência, só pode ser percebida nos desenhos de Felipe Stefani se prestarmos atenção na relação estrutural, semântica existente entre os seus desenhos e a folha branca, que se apresenta como espaço de projeção. Seus desenhos parecem nascer, brotar da folha branca como um sentido a clamar pelo homem... Assim também é o poeta diante do mundo e da ausência paterna; na possibilidade ou não de concretização de seus anseios, de suas angústias, encontrar um sentido para isso, encontrar nesse sentido sua própria liberdade, e nesse sentido e liberdade, longe da “miséria gnóstica” promovida por Marx, por exemplo, encontrar aquilo que há de maior para além de nós mesmos.  

No decurso de todo o seu Natal de Herodes, Wladimir Saldanha se apoderou de diversas personalidades: mitológicas, religiosas, históricas, pessoais. Ele fez o que todos os grandes poetas fizeram: apropriou-se de toda a cultura possível, usou as suas vozes e a ela devolveu a sua própria voz, e, de ambas, criou uma voz única. Porém, durante todo esse processo de troca, fugiu, muitas vezes, de sua própria personalidade – que não deixa de ser sua autoafirmação, também –, fuga que se deu através da força da tradição (é só verem o tema, as referências, as digressões, as formas, a técnica), uma força que Wladimir conhece bem e dela fez bom proveito.  Mas também nos deu as suas impressões, suas angústias, planos, desejos; fez tanto da cultura quanto de suas vivências seu próprio reflexo psicológico e personificação religiosa. Tanta inquietação só poderia nascer de um embate entre o sensível e o metafísico – pois não foi assim que nasceu praticamente tudo que nos importa de verdade? –, como nos lembra o poeta Emmanuel Santiago, que prefacia este livro. O resultado deste embate não poderia ser melhor: poesia da mais alta qualidade... É o desejo de transcendência que fará da poesia de Wladimir sua própria revelação e fuga; fundindo biografia e tradição, o poeta fará deste livro um ato de redenção e de perdão, toda vez que relembra a ausência do pai, e, nessa lembrança, essa ausência é redimida ora numa construção de figura paterna, ora na aceitação dessa ausência como parte motriz de sua força criadora, ou, como Nietzsche nos diria: se não há pai, inventemo-lo. Mas, aí, o leitor perguntará: o poeta se resolve...? Essa não é a questão, pois tal busca não mais lhe pertence; agora, cada percurso, cada trama, cada intento versificado , pertence ao leitor, cabendo a ele encontrar, nos caminhos traçados pelo poeta, a sua própria estrada. A poesia não deve ter aqui, nem em algum lugar, outra função que não esta: uma fuga para aquela “miséria gnóstica” de que falei no início deste artigo; um caminho para tudo aquilo que há de superior em nós; uma estrada para o que nos falta... E se ainda não o encontramos – e por isso mesmo nosso coração permanecerá inquieto –, também não há razão para nos sentirmos sós.







Salvador/Feira de Santana, dias das mães de 2017.