sexta-feira, 17 de junho de 2011

SONETO DAS PROCISSÕES...


A procissão de Santo Isidro de Goya (1820-23), Óleo sobre tela e painel, 140X438 cm, Museo del Prado, Madrid.









ao poeta e amigo, João Carlos Teixeira Gomes











Diante de mim se estendem mãos piedosas,
que um anjo fez brotar entre os instantes,
em que se avistam as coisas luminosas
e cujos olhos meus ( tão vacilantes )

esquivam-se da luz e dos agravos
e negam-se à beleza, antes cativa,
sob este céu de arroubos constelados,
onde o meu ser se aloja às coisas vivas

agitando-se no ar qual velhas flamas;
como fantasmas que, no arder, se esquivam
das sombras que lhes roubam as vivas chamas,

louvando a noite como a um deus risonho –
feito a tola esperança dos que se amam –
surgido do vazio como de um sonho.













"QUE DEUS GUARDE MEU PAI"... CONSIDERAÇÕES DE JESSÉ DE ALMEIDA PRIMO SOBRE UM DE MEUS POEMAS...




São Jerônimo de Antônio Peredas (1643), Óleo sobre tela, 105X84 cm, Museo del Prado, Madrid.













INDESEJADA DAS GENTES III:



OS BENS DE SANGUE, HEREDITARIEDADE E OUTROS ATAVISMOS:



UMA ELEGIA EM BUSCA DO TÚMULO


DE MEU PAI, AMARÍLIO DE SOUZA DUQUE





(Improviso)



– Quando soube de ti,


já eras morto;


nem nunca tive em mim palavra tua


que não me fora dada


de outra boca;


vives em mim como os santos


sobre as abóbadas de ouro


nestes antigos templos,


onde o amor é demais para tão


simples lembrança


mas reconheço em mim a trajetória secular,


a herança de honra e sangue, traçada muito antes desta ausência


mesmo sem nunca ter te visitado


os ossos,


ou


o teu rosto


nos retratos.









Este é o segundo poema do volume Ciranda de sombras, de Silvério Duque, ao qual faço um comentário e que também trata da morte e, de certa forma, de uma perda. Digo “de certa forma”, uma vez que, no primeiro caso, a perda é de entes queridos, com os quais houve uma intensa convivência e que foram todos, graças a um sentimento de vingança, mortos num curto espaço de tempo: um marido e todos os filhos. No presente caso, há algo como uma perda, mas de uma perda daquilo que nunca se teve e nem por isso perde sua importância.





É, por outra, uma forte presença de alguém que nunca foi visto. Para ser mais preciso, é a forte presença da história desse alguém, da sua memória(...nunca tive em mim palavra tua/ que não me fora dada/ de outra boca;), e de como essa memória se faz presente não apenas pelo esforço mental, mas se confunde com a personalidade mesma do filho que nunca conheceu o pai de quem herdou tal personalidade(mas reconheço em mim a trajetória secular,/ a herança de honra e sangue, traçada muito antes desta ausência/ mesmo sem nunca ter te visitado/ os ossos).





Lendo esse poema lembrei-me do primeiro verso de “Integração da noite” de Antônio Carlos de Brito e que estampa seu volume Palavra cerzida de 1967: “Meu neto prolonga meu filho”, e principalmente de um diálogo marcante entre o carrasco nazista, Maximilian Aue, com um judeu idoso: “Mon nom est Nahum ben Ibrahim, de Magaramkend dans la goubernatoria de Derbent. Pour les Russes, j'ai pris le nom de Chamiliev, en honneur du grand Chamil avec qui mon père s'est battu. Et toi, quel est ton nom? ”“Je m'appelle Maximilien. Je viens d'Allemagne.” – “Et qui était ton père ?” Je souris: “En quoi est-ce que mon père t'intéresse, vieillard ? ” – “Comment veux-tu que je sache à qui je m'adresse si je ne connais pas ton père?”





É uma passagem do memorável Les bienveillantes (As benevolentes) do escritor norte-americano Jonathan Littel. O velho judeu, seguindo a tradição do seu povo, apresenta-se por meio do seu passado, da sua história, mais ainda, da própria História simbolizada pelo seu pai e pelos seus feitos. Quanto ao jovem carrasco, diz apenas o primeiro nome, sem o sobrenome, seguido do local não propriamente de origem, mas a morada atual, Alemanha, quando na verdade nasceu na França. Diante de tão breve e pobre apresentação o velho pergunta como é possível conhecer o interlocutor sem antes lhe conhecer o pai.





Sem pai, sem substância. Eis o que deixam claro o diálogo e o poema de Silvério Duque.





O primeiro verso tem a qualidade de uma boa luta. Se realmente há a intenção de derrotar o adversário, que um golpe muito forte seja dado no primeiro instante para que não haja chance de reagir. Foi assim que David matou Golias, sobrepôs-se ao então rei Saul e garantiu seu futuro reinado.





Seguindo essa regra à risca, de primeira nos deparamos com “– Quando soube de ti,/ já eras morto”. Reparem que na verdade se trata de um único verso decassílabo que, para efeito de ênfase, foi reduzido a dois hemistíquios, e tanto a cesura como a quebra ocorrem exatamente no pronome, como se a partir desse ponto a morte tivesse se manifestado e desse modo mostrado quem foi por ela atingido. A mesma regra, a da quebra a partir da cesura, se aplica aos quarto e quinto versos(que não me fora dada/ de outra boca).





A força do primeiro verso se prolonga nos seguintes(vives em mim como os santos/ sobre as abóbadas de ouro/ nestes antigos templos,) e culminam no “onde o amor é demais para tão/ simples lembrança”. Ou seja, outro grande golpe e mais outros até o nocaute certeiro “mesmo sem nunca ter te visitado/ os ossos,/ ou/ o teu rosto/ nos retratos.” Mais uma vez uma quebra de um decassílabo, porém em fragmentos menores, como se desenhasse o olhar a percorrer demorada e atentamente cada ponto. Para cada verso, com exceção do antepenúltimo, uma palavra de valor substantivo e sempre referente à figura do pai, a saber, os seus “ossos”, o seu “rosto”, o qual pode ser visto nos seus “retratos”.





Esse decassílabo reduzido a quatro versos conclui ritmicamente o decassílabo que o antecede(mesmo sem nunca ter te visitado). Desse modo, e com o reforço das rimas assonantes (retratos/visitado), podemos dizer que o poema, na verdade, fecha com um belo dístico – camuflado em cinco versos –, como ocorre ou nos sonetos ingleses ou ao final das falas das personagens num drama:





mesmo sem nunca ter te visitado


os ossos, ou o teu rosto nos retratos



















Fonte: http://jesseprimo.blogspot.com/2011/04/indesejada-das-gentes-iiios-bens-de.html









UMA PARTIDA DE XADREZ...






Les joueurs d'échecs de Honoré Daumier (1863), Musée du Petit-Palais, Paris.







Um grande mestre e amigo chileno, Jaime P. Stone, manda-me dois poemas: um seu e outro de autoria de seu irmão, Juan di Dios, homenageando, cada um, os maiores mestre do xadrez, por eles considerados. Julguei esta partida interessante e publico-a aqui para o deleite e julgamento de quem quiser... a tentativa de “tradução” é minha.











EL ENROQUE DE CAPABLANCA


(por Juan de Dios)




Se ha sembrado el campo


de cuadrículas lozanas


tersas, pulidas y de longas llanuras


se ha velado el silencio


de las vísperas eternas


se encoge la Graupera


un 19 de Noviembre


de un mil y su triángulo de ochos


caballo en riestre


con hidalga montura


acechan el Castillo del Príncipe


mientras se queman


las torres de papel


San Pelayo ofrenda su milagro.



Jaque al arlequín


peones colgantes


epístola del arzobispo


astucia del canciller


y por el sueño cuadriculado


le veneran los prohombres


los jurados y el esposo de la reina


la hojarasca del tablero


se tiñe de victorias envejecidas


los alfiles parpadean


pero ya es tarde


está amaneciendo


y en La Habana


se ufana el cañaveral.



Enroque en Buenos Aires


por la sonrisa de Arlequín.





O ROQUE DE CAPABLANCA


(Trad. Silvério Duque)




Lavrado o campo


de exuberante beleza


com suas terras limpas de polidas planícies


onde, destas vésperas eternas


se guardou o silêncio


nasce Graupera


num 19 de novembro


de um mil e três triangulos de oito


cavalos apostos


nas mais nobres posturas


contra o castelo do Príncipe


quando as torres de papel


em chamas se consomem –


é San Pelayo oferecendo seu milagre.



Xeque do Arlequim


piões colgantes


carta do arcebispo


ou astúcia do chanceler...


é pelos sonhos


que se veneram os grande homens


vêem-se jurados e o esposo da rainha


nas folhas do tabuleiro


pelas vitórias envelhecidas


sinalizam os bispos


mas é tarde demais


amanhece


em Havana


sobre um canavial que se alegra.



Um roque em Buenos Aires


para a alegria do Arlequim.





EL REY DEL AJEDREZ


(por Jaime Peralta Stone)




Ha nacido el favorito de Kaissa


Que sobre un tablero, costurado


De fronteras y sueños, impresiona a sus rivales.


Nova Orleans su cuna, orgullosa y fecunda,


Con su prodigio, reta al mundo ufana.


Joven diáfano como un diamante,


Iluminado de ideas y combinaciones.


Con su caballo arisco y el otro indómito,


Son lozanos a sus opuestos.


Alfil oblicuo y penetrante,


Apóstol de fantasías.


En los extremos, torres blindadas,


Que vaticinan el movimiento antagónico.


Infantes de gambito, por Morphy saben luchar.


Su dama astuta, la mejor casa encontrara,


Y en ese campo de previsiones, se tiñe la victoria,


Ocho lances antes del mate anunciar.





O REI DO XADREZ


(Trad. Silvério Duque)




Ele nasceu o favorito de Kaissa


sobre um tabuleiro, alinhavado


de caminhos e de sonhos, levando medo aos seus rivais.


Nova Orleans é seu berço orgulhoso e fecundo,


desafiando, com seu talento, o mundo presunçoso.


Jovem diáfano como um diamante


iluminado de idéias e de estratégias.


Com um cavalo arisco e outro indômito –


tão belos em seus opostos.


E o bispo oblíquo e penetrante,


apóstolo de fantasias.


Nos extremos, duas torres imponentes,


que predizem confusos movimentos;


soldados que, por Morphy, lutarão.


Sua dama sagaz a melhor casa encontra,


e, neste campo de previsões, tem-se a vitória:


oito lances... e o inesperado xeque-mate.













UMA ENTREVISTA COM KARLENO BOCARRO POR HILTON VALERIANO...


O escritor Karleno Bocarro... grande conhecedor dos meios e das influências que lhe despertaram e aprimoraram um imenso e necessário talento...









Numa entrevista, ao meu amigo e poeta Hilton Valeriano, para o Blogger: http://www.poesiadiversidade.blogspot.com, Karleno Márcio Bocarro nos dá um exemplo de porque é um de nossos melhores intelectuais e romancistas de nossa atual literatura. Na busca incansável de seu personagem, como aquele Salieri, do Filme do Milos Forman, incapaz de aceitar sua mediocridade, por um lugar na História – lugar este que não lhe pertence –, o livro As almas que se quebram no chão, de Karleno Bocarro, possui todas as qualidades de uma grande obra; dentre elas, a que eu mais gosto: a capacidade de nos desafiar, de nos instigar a buscar outras histórias, informações, leituras... e de onde, muitas vezes, buscamos a nós mesmo. Tudo isso com a grandeza sutil dos maiores mestres. Ignorar uma obra como esta, ou as futuras grandes obras que virão da pena de Karleno Bocarro, é ignorar o que a nova Ficção Brasileira tem de melhor. Além do mais, seu autor é um grande conhecedor dos meios e das influências que lhe despertaram e aprimoraram um talento tão grande. Principalmente em uma época de tantos escritores de faxada, completam,nte ignorantes do mínimo de História da Literatura, ver alguém imbuído de tanto talento quanto de sabedoria para maturar este atlento é-nos sempre um motivo de alegria e de esperança. Não ler este que é um dos mais bem escritos e enigmáticos romances de nossa Literatura, como os próximos que seu autor prepara para nos brindar, para mim, é assinar um atestado de ignorância. Não obstante, convido a todos para um passeio pelo Blogger de Hilton Valeriano; sem dúvidas um dos espaços mais bem elaborados e preocupado com a qualidade de tudo que nele é publicado... é o tipo de lugar, infelizmente, muito pouco freqüentado pela grande maioria dos internaltas, menos àqueles que buscam sempre o melhor conteúdo.





Hilton Valeriano: Como ocorreu seu contato inicial com a literatura?



Karleno Bocarro: Ainda criança. Meu pai era um grande leitor, embora não tivéssemos muitos livros em casa. Éramos pobres; minha infância foi difícil. Uma época triste, não trago boas lembranças. Um dia ele me presenteou com Os Contos dos Irmãos Grimms, uma edição completa. Acho que isso hoje não é mais permitido, alguns contos dos Grimms traumatizam a criança. Além de ofender certa crítica literária de vertente feminista, segundo a qual os contos dos Grimms perpetuam uma dominação machista, a sujeição e a passividade femininas. Ou de teor marxista: a injustiça social e a opressão de classe é resolvida por meios mágicos, o que escamotea a realidade da luta de classes. Ou que a intenção dos irmãos Grimms era educar as crianças, mas para a sociedade burguesa, para a ideologia da concorrência desenfreada típica do capitalismo. Engraçado era que meu pai era marxista, mas ele não enxergava tão longe. Para ele, o livro era bom e merecia a minha atenção. Mas eu até posso entender algumas dessas ressalvas, aquelas de que alguns contos são em demasia “adultos”. Originalmente esses contos se destinavam realmente ao público adulto; a intenção dos Grimms era preservar a tradição camponesa oral alemã. Há contos de confrontação com a morte, de estranhos duendes (Rumpelstilskin), ansiosos por almas ingênuas, pactos demoníacos, pais que dão os filhos em troca de prosperidade, bruxas, dragões… Eu adorava esses contos, os mais pesados. Mas lia-os de dia. À noite tinha medo, muito medo; todos os bichos perversos presentes nos contos importunavam-me o sono. Contudo, acho que valeu a pena tanto pavor na infância. Os Grimms são a primeira, e permanente, influência na minha literatura. Por exemplo, no meu romance – bem como nos outros –, As Almas que se Quebram no Chão, a presença do demonismo, de obsessões, do horror, é fundamental. Como escreve James Joyce: “Terror é o sentimento que arrasta a mente à presença de tudo que seja grave e constante nos sofrimentos humanos e o unifica com a causa secreta”.




Hilton Valeriano: Quais são suas influências literárias e quais autores contemporâneos você destacaria?



Karleno Bocarro: Além dos grandes, aqueles que sempre estamos relendo, Homero, Shakespeare, Cervantes, e de um livro imprescendível a qualquer escritor que se preze, falo das Sagradas Escrituras, destaco as modernas literaturas russa e norte-americana. Mas porque elas não rejeitam o sobrenatural, o mítico, a abertura à transcedência, o mistério que é a realidade. É óbvio que aqui generalizo, há escritores americanos, tais como John Steinbeck, Sinclair Lewis, que se preocupam em entender a psicologia e o comportamento humanos num contexto social. Isso não me interessa! A visão de mundo que me instiga é aquela da tragédia, da epopéia… O homem em meio a forças gigantescas; Deus e o demônio lutando por sua alma, e ele instigado a cada segundo a tomar um partido. Infelizmente o romance moderno, em especial, o europeu, e somos influenciados por ele, rompe com esta visão de mundo. O seu interesse é o mundo secularizado; o romance se aproxima perigosamente do jornalismo, pois o que anseia é retratar os aspectos sociais, cotidianos, da vida moderna. Ora, alinho-me ao grande Dostoiévski e sua visão de Shakespeare. Para ele, o “realismo” de W. Shakespeare não se limitava a uma imitação empobrecedora da vida cotidiana; o bardo inglês era para ele um profeta enviado por Deus “para nos proclamar o mistério do homem e da alma humana”. Estou justamente com os dois, com esta percepção. Autores contemporâneos… Cito os vivos: Philip Roth, Mario Vargas Llosa, Thomas Pynchon, J. M. Coetzee… Mas nenhum me dá tanto prazer, e remói a alma – suas palavras são profundas, sombrias, traiçoeiras –, quanto Cormac McCarthy. Ele é o meu contemporâneo favorito.




Hilton Valeriano: Comente sobre a temática de seu romance As almas que se quebram no chão.



Karleno Bocarro: Há uma frase de Goethe que muito aprecio: ele afirma que se temos um destino, a percepção de que estamos a cumprir um, então, nosso dever é viver esse destino. Bem, os personagens de meu romance, ao contrário, tendem a fugir das próprias responsabilidades. A escolha é pela diversão, mas de maneira inconsequente. Ignoram que um modo de sair-se bem nos estudos (eles são estudantes na época da queda do muro de Berlim) , ou na vida de um modo geral, é tomar cuidado com as experiências extremas, as convivências supérfluas, os lugares obscuros. Um parêntesis: talvez eu seja supersticioso, mas para mim um quarto, uma casa, um prédio abandonado, pode ser sim um lugar ruim. Uma influência de minhas primeiras leituras, a dos Grimms? É bem provável. Então, são pessoas de vidas desperdiçadas, e embora passem por crises interiores constantes, recusam a experiência da conversão. Conversão aqui entendida com a postura apropriada de seriedade para com as coisas da vida. E seguem adiante, mas para espalhar erros por onde passam. Essa é a temática do livro. Mas essas pessoas, como personagens, podem ser, e são, fascinantes. Talvez pela razão de que assim é o homem, assim somos nós. Somente alguns poucos, por uma graça inexplicável, conseguem fazer algo de si: criar algo duradouro e amar desinteressadamente. E como pano de fundo de seus dramas coloquei o evento mais significativo de nosso tempo, a queda do Muro de Berlim; um tempo que se estende à unificação da Alemanha. Além de Berlim, os personagens transitam por Leipzig, Moscou; há viagens a Praga, na República Tcheca, alguns acabam em Amsterdam, buscam a Romênia, outros retornam para o Brasil, continuam no Nordeste… Enfim, o livro tem um aspecto épico que muito me agrada. Esforcei-me para fazer um bom trabalho, espero ter conseguido.




Hilton Valeriano: Você prepara um novo romance denominado “O Advento”. Comente sobre sua temática.



Karleno Bocarro: Comecei O Advento antes de ter As Almas que se Quebram no Chão publicado. Mas é que não consigo passar muito tempo sem escrever. Assusta-me a vida sem a literatura! Se n’As Almas… os personagens são estetas, n’O Advento dou um passo adiante, a discussão é ética. Explico: no meu curso de filosofia em Berlim ocupei-me bastante com Nietzsche e Kierkegaard. Fiz um seminário sobre o Entweder/Oder (o título em alemão de sua obra-prima: Ou… Ou…), onde Kierkegaard discute as fases da existência, a estética e a ética, a partir de uma questão aristotélica: Como devemos viver? O “esteta” é aquele que assume conscientemente uma vida descompromissada, recusando os deveres e as responsabilidades que para o “ético” são fundamentais. No meu livro, essa discussão gira em torna da paternidade. Aderbal Semei, o personagem principal, um escritor de um livro só, a recusa como um incômodo aos seus projetos pessoais. Uma posição que entra em choque com o que a namorada espera; ela quer ter filhos. Partindo de uma ideia completar, colhida em Dom Quixote – o episódio do Curioso Impertinente – e n’O Eterno Marido, de Dostoivéski, Semei passa, numa mistura de sentimentos confusos – tara, recusa às reinvidicações da amada, simples deboche –, a desejar que a namorada se apaixone por um amigo em comum. Os aspectos sombrios, os quais, como eu disse, prezo bastante, giram em torno da ideia de maldição. É comum, entre os personagens d’O Advento, desejar o pior ao outro… Semei é um personagem bíblico! No Segundo Livro de Samuel, lemos que ele encontra Davi, o qual se encontra em fuga de Saul, e passa a amaldiçoá-lo; segue uma trajetória considerável atrás de Davi lançando-lhe as mais terríveis imprecações. O meu Semei é algo parecido, embora ele sofra mais… A maldição nele parece ser uma punição de Deus, a pior coisa que possa acontecer a um homem. Se ele a merece, e como vai lidar com isso, o livro revela, ou deixa em aberto ao leitor.




Hilton Valeriano: Em uma de suas entrevistas você diz: “Sem a ajuda de fontes importantes do conhecimento – a fé, a tradição, a revelação, a experiência de santos e místicos – corremos o risco de cairmos o tempo todo, como se tateássemos no escuro, próximo ao abismo da morte.” Qual o papel da literatura em um tempo onde as grandes tradições são renegadas por estéticas experimentais e pela perspectiva niilista que parece assolar toda forma de pensamento?



Karleno Bocarro: Não acho que as estéticas experimentais são um problema… William Faulkner, por exemplo, usa muito bem , em sua literatura, técnicas modernas de narrativa. O experimentalismo se torna um problema quando o norte é a novidade pela novidade. O que, no caso, não é norte. É bússola sem rumo, leva o barco para o abismo. O problema dos artistas hoje é que eles acham que a arte começa com o Dadaísmo. No Brasil, com a Semana de Arte de 22. E tudo o que há antes é, para usar uma frase de Plutarco, “areais estéreis, infestados de bestas selvagens”. Então, o artista gira os olhos para inovações, embriagando-se de superficialidades. Meu Deus, como eu posso escrever prosa e poesia decentes sem o conhecimento dos clássicos? Posso, mas encho mais ainda de porcarias um mundo já saturado de asnice. O nihilismo é consequência desse empobrecimento da cultura. Concluindo, eu diria que a realidade das coisas, o próprio sentido da existência, não podem ser compreedidos ao menos que estejamos prontos para mergulhar no vasto universo da tradição, a qual, no nosso caso, significa o legado judaico-cristão e greco-romano.













Fonte: http://poesiadiversidade.blogspot.com/2011/06/entrevista-com-o-romancista-karleno.html







quarta-feira, 8 de junho de 2011

MOACIR EDUÃO: UMA ALMA ANSIOSA DE SI MESMA...


O poeta Moacir Eduão: uma alma ansiosa de si mesma...


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Quando conheci o poeta Moacir Eduão, tínhamos, àquela época, muitas coisas em comum: uma magreza esquálida, calvície e uma condição financeira que, sem nenhum apelo hiperbólico, beirava a miséria.







As coisas em comum paravam por aí: Moacir lançava seu segundo livro; eu, ainda, aspirava ao primeiro; sentindo, naquele macérrimo calouro de Licenciatura em Letras com Inglês, oriundo de um dos mais belos e sofridos sertões deste imenso Nordeste, a alma ansiosa de si mesma, como deve ser a alma de um poeta; entretanto, o tempo sempre prova à alma o valor da paciência. Estava, ali, diante de mim, um poeta que acabara de conhecer, um poeta que, como todo novo poeta, apresentava-se ao mundo, querendo do mundo o seu consentimento. Do que sei do conhecimento do mundo, Moacir Eduão, ainda magro e calvo, mas muito mais poeta e muito mais ansioso da sua própria alma, faz com que me venha à cabeça uma pergunta a qual me fazia àquela época de aspiração e pobreza: por que precisamos de poetas?...







Ora, sempre defendi a idéia de que, mais de que muitas coisas, precisamos e precisaremos sempre de poetas, como, em geral, de muita, muita arte (alguém é capaz de imaginar o mundo sem arte?) e se me refiro aqui, necessariamente, à poesia, com propriedade e intimidade, não é pelo fato de tê-la como ofício dos mais importantes em minha vida, até porque deixaria a música – primeira e mais constante paixão de minha existência – tomada do mais profundo e legítimo ciúme; é pelo fato óbvio de que a poesia, ao longo dos séculos de civilização ocidental, deixou de ser (e para muitos nunca foi) a mais popular das manifestações artísticas; logo ela, que sempre gozou de uma matéria-prima muito mais acessível que a pedra, a tinta ou o barro: a palavra.







Precisamos de poetas. No entanto, como necessitar de alguém tão distante, de alguém aparentemente tão alheio ao mundo exterior a ele mesmo e tão presente dentro de um mundo que este alguém nele se cria, um mundo dele e todo dele, um mundo que se desvenda em quem o cria e se apresenta cada vez mais inóspito, à medida que mais e mais se o explora?







Numa época em que a palavra “social” tomou rumos que nunca pensamos alcançaria e por isso mesmo tornou-se vaga, banalizada como todo “lugar-comum”, sem identidade alguma, por que precisaríamos de alguém tão, arrrgh!, “individual”? Contudo, quem disse que a poesia é social? Se os poetas parnasianos, longe do estéreo turbilhão da rua, tornaram-se matéria-bruta para a poesia e alvo para os ideais libertários – poeticamente libertários, se é que isto realmente existe – defendidos pelos modernistas de São Paulo, os da chamada “fase radical”, é preciso constatar que, dos poemas pílulas de Oswald de Andrade, os quais nos servem muito mais de exemplo de mau gosto de incapacidade versânica, e, principalmente, racional, do que de poesia, aos belíssimos e conscientemente incomodativos poemas oriundos do sentimental engajamento com o mundo pelo mago itabirano, nada disso conseguiu dar, à poesia, o caráter de intimidade popular com o qual gozam a música, a dança e até mesmo a pintura e a arquitetura; muito pelo contrário, alargaram-se, graças a essas “técnicas” de popularização do verso, as beiradas do abismo que dividia o povo do poema, as quais, aliás, já eram largas. E, como havia de ser, um pernambucano áspero, com matemático rigor, mostrou-nos que a poesia é, dentre as artes, a mais elitista e, em sua melhor forma, erudita. E o poeta é, dentre os artistas, o mais vaidoso, e, em sua melhor forma, magérrimo.







As razões pelas quais necessitaríamos de poetas são, em sua essência, a verdadeira substância da poesia, porque a história de nosso mundo, contada pela arte, é a história contínua e ininterrupta de quem somos e dos homens e mulheres que toda a humanidade, individualmente, deseja se tornar – num mundo em que as pessoas fingem-se solidárias, como se a solidariedade ou qualquer outra virtude não fossem também únicas em cada pessoa. Ouvir uma afirmação como essa é perturbador, não obstante a filosofia popular já professar: “a verdade dói” –, ora, a história que a arte nos conta é a história de quem buscou em si próprio as respostas para todas as coisas; a história da arte é a história do individualismo. O poeta é um individualista.







Precisamos de um individualismo – não de um particularismo –, pois é somente garantindo a formação mesma do indivíduo, o ser humano pleno e consciente de si e de suas muitas capacidades, que garantiremos a inteireza da sociedade humana e toda a arte e, conseqüentemente, toda poesia é resultado de um individualismo, ou, para aqueles que se incomodam com o termo, como definiu Jorge de Lima: de uma “alma que vive perdida na ansiedade de si mesma”.







Com efeito, o poeta é também um vaidoso; há vaidade maior em expor ao mundo aquilo que você faz, por exemplo, por catarse, querendo que as pessoas adquiram se trabalho e, mais ainda, regojizem-se com ele?! À vista disso, Moacir Eduão está no melhor de seu individualismo, em seu infante desespaços, e, com efeito, no melhor de sua poesia (não nos esquecendo, é claro, de dizer que também é seu momento da mais augusta vaidade). Pouco mais de dez anos se passaram, desde que conheci Moacir, e, olhando para o presente, vejo que só a magrelice é a mesma. Quanto ao poeta, a receita dos que vencem já se lhe apresenta em vida e em verso.







Da mesma forma, o olhar que lanço ao presente me conduz a outro questionamento: precisamos de Moacir Eduão?










Não podemos pensar em nada que não parta de algum ponto; o universo pode estar em movimento, mas não o percebemos em sua totalidade, a não ser a partir de um ponto pelo qual o começamos perceber. Quando, por exemplo, Stº. Agostinha definiu as essência da angústia religiosa e existencialista do homem, em seu Confissões, ele buscou em si mesmo a nostalgia de Deus que habita no coração do homem e percebeu, também, a partir de si próprio, o espírito que, diante do Divino, grita perante o ser cujo Espírito está encravado em sua carne; daí, a famosa frase síntese do livro: “Feciste nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te”; diante disso, o ponto de partida para que o indivíduo, finalmente, si auto-conheça, para, daí em diante, passar a conhecer tudo o que o circunda, não o contrário (qual a maneira do escrutínio tolo de muitos insanos procurou, em vão demonstrar), está no próprio homem, e este antropocentrismo é muito mais religioso que materialista.







Em um livro intitulado de desespaços este bardo baiano nos traz um modelo, em versos, do homem que toma como ponto de partida sua própria existência para então abarcar, em si mesmo, o mundo à sua volta, porque nenhuma impressão, por menor que seja, parte de um ponto que não seja a de quem a percebe.







Eduão tem um mundo quase infinito a cada passo da jornada de meditações que ele mesmo tece ao longo da pintura em movimento que é seu desespaços, para alcançar este autoconhecimento a que o poeta está fadado, e, ao mesmo tempo, a concretude deste mundo o qual o tempo urde com a inconstância e a efemeridade comuns do mundo. Porquanto, como afirmara Platão, o tempo é, da eternidade, uma ilustração a se movimentar; e eis que mais uma palheta-de-tempo será posta em ação... comecemos a jornada; acompanhemos o poeta:










ir.


cansado



de horizontes,






contemplando o partir.




com propriedade,



seguir






ignorando as estrelas,


por saber das coisas estáticas –



e de todas as coisas



que nos modificam










Sem sombra de dúvidas, o grande tema da história da humanidade é a Viagem. Das primeiras narrativas, às mais novas e instigantes produções do mundo contemporâneo, o homem está sempre a partir... – há sempre uma nova e inacabada jornada, um novo porto e outros mares para onde a navegação é necessária. Na mais antiga obra literária do mundo, o povo de Uruk, na Mesopotâmia, pediu aos deuses, providências contra o tirânico Gilgamesh, seu rei, mais tarde deificado. Após muitas aventuras Gilgamesh chorou ao ver seu fiel amigo, Enkidu, perecer. Isso levou Gilgamesh à solitária e desesperada busca da Eternidade; seu ancestral Utnapistin, único homem a quem tinha sido concedida a Eternidade, disse a Gilgamesh que fosse ao mundo subterrâneo para, lá, recuperar uma planta mágica (mais tarde, em uma outra mitologia, um jovem e apaixonado músico também desceria ao submundo, encantando demônios e maldições, para recuperar a amada seqüestrada, numa viagem por demais insólita que somente o amor seria capaz de proporcionar), mas logo após ter encontrado a planta mágica, essa acabou sendo devorada por uma serpente, antes que Gilgamesh retornasse à superfície. Antes, Utnapistin contara a Gilgamesh que se tornara imortal depois que os deuses haviam mandado um dilúvio para aniquilar todas as pessoas do mundo; seguindo os conselhos do deus Enki, Utnapistin construiu um barco para salvar-se e à sua família, numa história que, em muito, assemelha-se ao Noé bíblico. No Induísmo, o primeiro Avatar de Vishnu, Matsya, o avatar-peixe, salvou o primeiro homem, Mano – como Gilgamesh e Noé – do Grande Dilúvio. O primeiro homem de Razão salvar-se-ia das sereias amarrando-se ao barco no qual estava condenado a morrer navegando a mando do irado Posêidon, o mesmo Posêidon que garantiria, com o assassinato de Lacoonte, a vitória do povo que, em nome da ganância e do capricho, arremeçaram-se ao mar, aos milhares, para, como nos narrou Homero, acima de tudo, vingarem suas atribulações e seus sofrimentos por causa de Helena. Mas, se homens morreram no mar por ódio a uma mulher, outro atravessaria o Inferno e o Purgatório por amor a uma mulher a qual, no Céu, libertá-lo-ia do pecado e da culpa, assentando-o eternamente em trono de nume, fazendo dele o cantor de sua glória e do seu amor, em versos, se eu me lembro bem, que são bem assim: “Senhora!... Esperança minha permanente... que não temeste por me dar saúde, teus vestígios deixar no Inferno horrente... De tantas coisas quantas eu ver pude, ao teu grande valor a alta bondade a graça referir devo e virtude”.







A fantasia também vive do real, pois quando homens reais enfrentam o mar, a procela e o furor e em nome de um ideal que não lhes pertenciam, porém o abraçavam com vigor e medo, um bardo português de também reais aventuras soube, em fantasia, dar-lhes o consolo e o prêmio merecido; é só nos recordarmos dos versos: “Enfim, que o Sumo de Deus, que por segundas causas obra do Mundo, tudo manda... E tornando a cantar-te das profundas obras da Mão Divina venerada: debaixo deste círculo onde as mundanas almas divinas gozam, que não anda outro corre, tão leve e tão ligeiro...” Mais tarde, um outro português de alma múltipla parafraseou o lema dos antigos navegantes, adaptando-o para estes viajantes de si mesmos, que são os poetas: “Viver não é necessário, o que é necessário é criar”. E criar é, com certeza, a mais bela viagem e a mais instigante aventura.







Moacir Eduão, fazendo justiça à sua incessante busca pela criação, abraça-se aos grandes poetas e sua inesgotável temática (pois o tema humano é, ao menos que a humanidade se esgote, inesgotável), mostrando-nos, mais uma vez, que a tradição é um dos principais pilares para o grande poeta. Despedindo-se do “lugar-comum”, das impressões mais cotidianas, da vida parada de tempo, o poeta pretende ir longe; este poeta que Moacir empresta à sua obra faz para si mesmo a necessidade de partir; é necessário esse deslocamento o qual, antes de tudo, é um deslocamento de alma; é uma atitude que começa no âmago do poeta, pois esperar é fugir dos momentos, das circunstâncias... e o poeta não pode fugir às situações, pois são elas que tornam uma verdade mais ou menos real. E o poeta parte. Baudelaire já chamava nossa atenção para o fato de, no desconhecido, encontrarmos o novo que ali se oculta; em seu olhar criterioso, o poeta fita o novo ao seu caminho. O passado não mais importa, o presente tem que ser vivido em toda a sua grandeza. Mas como, se a nostalgia o persegue, e as reminiscências também são parte da fuga?







Cabe agora, começada a jornada, decidir entre o caminho que há e a rota que se constrói a partir das situações que lhe são oferecidas; desvincular-se do que existe, do que à frente está, é indevido, porém, não se pode negar a vontade de criar, de construir um novo mundo, mesmo que num mundo de idéias; mundo, aliás, o qual Platão contemplara. Se o caminho é tortuoso, fica assim provado o seu valor – a exigência que se faz deve ser proporcional à qualidade que se pretende. Que um mundo inteiro se elabore na mente do poeta para, logo mais, ser traçado pela caneta e organizado, posteriormente, pela disciplina; que ninguém mais-nada espere, pois mais-nada é necessário; que todos constatem; que uma grande obra se faça. O olhar criterioso do poeta não deve se desviar um milímetro sequer, de seu alvo. Conhecer as coisas é participar delas; é construir (com elas) a própria certeza que temos das coisas; projeta-las... Traçar para si e para elas um desenho único... Ser criador e parte da paisagem... Conhecer é participar das coisas vivendo-se e, ao mesmo tempo, vivendo-as. Nenhum poeta que se preze dispensa a idéia de ser o senhor de seu próprio Mundo e dos pequenos “mundos” que dele se criam. A forma deve ser um meio para se dizer algo, não o seu fim, sua inteireza, sua essência... Mas, se não praticamos a forma, como saber o sabor desta verdade? Falta um soneto neste livro? Mas não lhe falta uma forma. Se o poeta, nele mesmo, se fecha; se o poeta, da mesma maneira, em si se fecha, isso não os põem fora do mundo, apenas, em tal atitude, comprova-se que ambos fazem, realmente, parte do mundo – só o inóspito é estático e por isso mesmo, somente ele seja, verdadeiramente, universal; mas não o poeta... O poeta é, como já disse, um individualista.







É sobre uma profusão individual de imagens e idéias, Moacir conduz sua obra. A inexistente sombra de uma árvore, por exemplo, é mecanismo para compreendermos como o mundo pode ser indiferente à toda e qualquer idéia que dele fazemos e como, em nossa tola sabedoria, acreditamos que as coisas, por mais insignificantes que se nos pareçam, realmente dependem de nós – elas não dependem. Será que no poema desapego, Moacir tenta nos chamar a atenção para essa idiotice criada por nosso saber? Será que ele mesmo acredita nisso? Não, ele sabe que não; ele sabe que o mundo o envolve da maneira mais tentacular possível... Mas também sabe de seu papel, ele próprio pertence, distinto, a outras imagens e, através de uma poesia contemplativa como a própria alma do poeta, Moacir devolve, ao mundo pálido que lhe envolve o rosto, esta impressão particular da grandeza do mundo, às custas, muitas vezes, da mais profunda angústia e da mais sincera tristeza, como no poema divergência:







(já contemplamos,




de mãos dadas,




um jardim florido.







hoje,




fitamos, tristonhos,




a bifurcação da estrada.)







(Este poema, por exemplo, demonstra o quanto Moacir Eduão apega-se, em seu novo trabalho, à percepção do mundo através dos sentidos e da admiração, livrando-se de uma poesia de caráter pseudofilosófico, algo que tem sido uma praga entre os calouros de nossa atual poesia, os quais tomam como base os versos de uma velha guarda que, embora pareçam, não entendem absolutamente nada; a poesia de caráter erudito é o resultado de um eruditismo intrínseco, plantado na mente do poeta por meio de anos de absoluta depuração intelectual e não garimpados à esmo em orelhas de compêndios de filosofia comentada. Em um dos últimos números da revista Hera, do qual participei com muita satisfação, pude, por exemplo, perceber o tenebroso desnível entre alguns trabalhos: poemas da mais absoluta criatividade disputam lugar com versos que mais poderiam ser comparados a um show de horrores versânicos, onde o lema maior é a produção da mais original anomalia poética, verdadeiros Monstros de Frankstein lingüísticos cuja única virtude que possuem é a de não possuírem o menor grau de coerência neles próprios. Nunca conheci nenhum grande poeta advindo de escola poética nenhuma; já deixei bem claro que o trabalho poético é um trabalho individual e não um casamento de mediocridades; se falo com propriedade a respeito da poesia de Moacir Eduão, não é porque ele é de “minha geração” – como se somente isso fizesse dele um grande poeta –, mas pelo fato de o seu trabalho ter uma coerência e uma qualidade inerentes, mesmo quando, às vezes, tais qualidades erroneamente se mostrem – entretanto, isto é problema dele e só por ele resolvido. O que importa ao poeta é a qualidade do que é dito e não um cooperativismo de jumentos. Moacir não me parece solícito a este tipo de mau-agouro e espero, sinceramente, que tamanha idiotice não lhe sobrevenha à cabeça. Mas toda esta conversa e irrelevante, como é irrelevante aquilo que a causou...).







Os versos de divergência poderiam ser muito bem entendidos em versos como: “Eu te peço perdão por te amar de repente”,”Amor, minhas penas, meu delírio”... ou até mesmo, algo do tipo: L´amour immense que je te dédic, pois ele traz um lirismo marcante e apreciativo, não carregado da ingenuidade dos românticos, mas repleto do misticismo e do emparedamento intimista dos Simbolistas; entretanto, muito mais que este exemplo lírico, todo o livro de Moacir é uma retomada de antigas imagens épicas transportadas para um outro lugar, um lugar que, ao invés de heróico ou dramático, ao invés, no mar e do mar à Eternidade, este lugar é o íntimo do poeta o qual, por meio de uma lírica aliada a um drama pessoa narrado em primeira pessoa, apresenta-se na forma de um Eu incógnito e existencialista como o fez, pela primeira vez na história da poesia ocidental, Safo de Lesbos, com as metáforas de Homero; assim, e somente assim, Moacir Eduão poderia pintar a tristeza das flores sentidas por um homem que, no jardim, em soluços chorava por dentro do ângulo de visão agudo deste Eu em constante observação, como já deixei claro, e, desta maneira, Moacir segue, tecelão de emoções e espantos que é, compondo uma verdadeira análise filosófica das coisas, pois qualquer mero aprendiz de filosofia de almanaque sabe que o princípio do conhecimento dedutivo, como já nos ensinara o velho Platão, está na perplexidade. E Eduão, semelhante a uma Eurídes Fontela, utiliza-se desta perplexidade ao longo de todo o seu novo livro, com um sintetismo próprio de quem reduz, à forma de aforismos, um imenso discurso sensorial, para logo depois de lido abrir-se, de novo, em palavra e sentimento, e ele o faz mesmo quando a única resposta que, da realidade, ele recebe é o silêncio; mesmo quando a única resposta que ele encontra dentro de si é a vontade de voltar... Mas ele não volta.







A transcendência de todo este acontecido encontrar-se-á na contemplação do Infinito de frente ao Porto... O mundo se abraça em um único gesto de sua natureza, porém não se fecha, antes abre-se à aventura, à jornada sem rumo ou destino certo, ao esquecimento das desilusões que ficaram para trás, à oportunidade, à morte no mar ou noutra realidade, juntando-se tudo isso aos espantos trazidos pelo poeta, o mundo torna-se mais evidente do que nunca parecera e o seu abraço faz-se muito mais apertado. Todos os grandes poetas do mundo começara suas grandes jornadas poéticas pelo porto; do porto todas as naus partiram para que as grandes aventuras se fizessem vivas e as grandes alegrias se criassem ou que todas as imensas tristezas tomassem posse de seu espaço... mas, e antes?! Onde estava a aventura antes da aventura, a jornada antes dela, a dor e a alegria antes do porto para o incógnito? Graças a Deus, Moacir Eduão nos ofertou estas respostas em um dos poemas mais lindos já escritos, o qual não poderia ter outra função que não fosse a de encerrar esta viagem que recomeçará para além do porto (e para além de nós):







retrato de um Porto triste




onde o pôr-do-sol se veste:







o olhar ébrio




arranca o silêncio das águas







se enriquece nos espantos que trago







como uma fotografia nula,




negativa,




uma imagem não-revelável







na indiscrição de tantos fitos,




tantas desonrosas perfeições




fazem lembrar do retrato triste




que no Porto sempre existe,




de fato.










O resultado final obtido por Eduão na compilação de seu quarto e melhor trabalho são as respostas àquelas perguntas iniciais: Sim, precisamos da poesia, de uma poesia que sempre será uma manifestação plena de transcendência, que é uma sublimação do espírito do homem em seu mais alto grau de efusão e mistério, o resultado da união da inteligência com o sentimento.










A boa poesia é provocativa, não está disposta a passar a mão sobre a cabeça do leitor, antes pretende dar-lhe um soco na cara. A vida é feita de coisas boas e más, então é necessário que aprendamos com ambas. A arte nos dá a possibilidade de vivenciar muitas coisas, sem necessariamente, passarmos por elas. A arte, a poesia, ensina-nos a sermos nós mesmos, completos. Por isso, precisamos de poetas, pois sem eles é impossível vivenciar tal poesia. E sim, precisamos de Moacir Eduão, que em seu novo livro mostrou-se digno de mérito puramente literário, do pensamento criador, da construção cênica, do desenho dos caracteres, da disposição das figuras, dos jogos lingüísticos e da tradição de elementos, segundo Machado de Assis, essenciais para um grande poeta.







Eduão mostrou-nos amadurecimento. Seu desespaços não possui a insignificância artística de seus dois primeiros livros, nem o fracasso formal e dedutivo, devido à má assimilação da temática proposta, perceptível em seu terceiro livro. Mas o seu quarto trabalho é o resultado de quem está aprendendo a dominar a ansiedade para, na paciência e na disciplina, ver colhidos os frutos do capinar solitário e único do fazer poético; algo, diga-se de passagem, indispensável a todo e qualquer indivíduo que jogou uma semente no terreno basto, porém fértil, da poesia; inclusive para mim mesmo.


































Feira de Santana – Bahia, maio/junho de 2005.