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A SOLIDÃO COMO OFÍCIO
ou A HISTÓRIA
DECALCADA POR HENRIQUE WAGNER
Car c’est vraiment, Seigneur, le meilleur témoignage
que nous pussions donner de
notre dignité
que cet ardent sanglot qui
roule d’âge em âge
et vient mourir au bord de
votre eternité!
CHARLES
BAUDELAIRE
Não há força poética
maior do que aquela provocada pelo espanto.
Não qualquer espanto; não tomo aqui o termo em seu sentido mais simplório, como
um susto qualquer, mas o princípio mesmo do pensamento poético e filosófico; a
poesia em seu sentido mais primordial, resultado de um poder de observação que
só um poeta – e, diga-se sempre, um grande poeta – pode nos oferecer em toda a
sua magnitude. A história decalcada,
novo livro do poeta e crítico baiano, Henrique Wagner, que a Editora Mondrongo
lançara ontem na cidade de Salvador, é um bom exemplo desta força poética a que
me refiro.
Pertencente à coleção Horizontes, onde títulos como Minha Bahia, de Patrice de Moraes, A
Morte da Amada & outros Poemas Rasgados, da poetisa Nívia Maria Vasconcellos
e A dimensão necessária, de autoria
de João Filho, também fazem parte – todos ilustrados com as belíssimas capas de
Gabriel Ferreira – A história decalcada
apresenta-se com uma poesia demasiadamente madura, sofisticada, deixando bem
claro, às novas gerações de poetas e leitores, infelizmente pouco afeitos tanto
à limpidez formal do texto quanto uso exemplar de sua linguagem, que A história decalcada não acrescenta mais
à poesia contemporânea do que aquilo que ela pode nos apresentar de melhor. E
digo mais: o mais novo livro de Henrique Wagner é, a princípio, um grande gesto
de cortesia com seu público, pois agrada tanto ao leitor menos preparado ao
mais exigente amante da boa poesia.
Qualquer
um que conheça muito bem os cenários onde se desenrolam os mais diversos e, na
grande maioria das vezes, controversos enredos de nossa atual literatura
baiana, sabe muito bem o papel que Henrique Wagner ocupa em tudo isso – tanto
como poeta quanto crítico literário. Posso dizer aqui, com conhecimento de
causa, que Henrique é alguém que, vendo todos nadando a favor da maré, escolheu
trilhar o caminho inverso, ou como melhor expressou o poeta e editor Gustavo
Felicíssimo: “contra a falta de valores de nosso tempo, eleva-se sobre tudo
isso um raro escritor, aliado a um crítico atento e capaz de discorrer (com
autoridade) sobre os mais diversos assuntos e com uma visão de arte que não
deixa espaço para a falta de talento”, muito menos ao oportunismo de uma
intelectualidade burra e venal a ocupar as “cadeiras” literárias da Bahia. E,
por fazer com que inúmeras carapuças se encaixem muito bem, é que Henrique
Wagner tem colecionado admiradores e detratores ao longo de sua caminhada
literária. Todavia, não há como se esperar menos do que isso para alguém que
escreve versos como os contidos em A
história decalcada. Uma grande obra é, acima de tudo, uma personificação do
verdadeiro caráter de quem a escreve... do contrário, leiam estes versos:
É quando mais sentimos,
quando falta luz à noite
e venta lá fora a ponto
de fazer cantar as
janelas,
é quando mais tememos,
que sentimos a presença
de Deus.
É quando mais trememos
ante o horror da vida
humana
e a escuridão do medo da
noite,
e a solidão de quem tem
um amor,
é quando mais
precisamos,
que sentimos a presença
de Deus.
É quando mais sofremos
e hesitamos diante de
tanta dor
no mundo, por entre os
homens,
e por todos os lados e
dobradiças da porta,
é quando, enfim,
desesperadamente choramos
que sentimos a presença
de Deus.
Como a de um demônio.
Um
fundamento muito importante existente em A
história decalcada é a presença de certa junção entre passado e
modernidade, e em cujo brilho poético se alia tanto o rigor formal quanto a
emoção desenfreada. Não é de se estranhar, então, o grande emaranhado de
conflitos internos comuns aos seus poemas que, à maneira de um Baudelaire ou de
um Augusto dos Anjos, nada mais são do que metáforas à condição de ascensão e degradação as quais o homem se submete para encontrar as próprias
razões de sua existência e, dela, imitar a própria vida. Por isso mesmo, o
mundo poético apresentado em A história
decalcada é este mundo que explode à nossa frente com uma força e vigor
descomunais, mas sem que este mesmo mundo se entranhe em nós, repleto de
perpétua agonia.
Toda esta
mágoa, tão fácil de perceber, entretanto, parece-me pertencer única e
exclusivamente ao poeta: que dela faz o ponto de partida e culminância de todos
os seus versos. Por isso mesmo, não consigo encarar os poemas que Henrique
Wagner distribui, ao longo de seu A
história decalcada, por um viés que não seja o de um poeta a contemplar a
sua própria solidão e dela fazer um ofício que não lhe exigirá menos que uma
dedicação tão intensa que o poeta não lhe dará menos que a mais pura estranheza diante de tudo que está ao
seu redor. Em outras palavras, os versos contidos em A história decalcada não revelam menos do que uma visão da própria
poesia em seu sentido mais primordial; talvez, por isso, é que Henrique Wagner
tenha preferido começar seu livro com verso em que diz:
(...) Eu me cansei de
poemas,
eu me cansei de poetas,
eu me cansei de palavras
que apenas substituem
palavras (...)
e o epiloga da seguinte
maneira:
Eu quero o poema fácil,
difícil de ser escrito.
Que seja a minha a
tortura,
e meu silêncio o que eu
grito.
O entendimento imediato
no tempo da epifania.
E o resto a chuva branda
sobre o calor da poesia.
Que entendam o que não
sinto
em cada verso de prata,
e sintam a imprecisão
que incomoda mas não
mata.
Difícil de ser escrito
aquilo que sente a mão:
o plástico da caneta
– a carne do coração.
Lidar com a poesia é
lidar consigo mesmo, mergulhando em sua própria solidão, e, dela, extrair os
mais diversos diálogos. Como poeta, por exemplo, Henrique Wagner não abre mão
de uma boa conversa com seus escritores preferidos, seus maiores
influenciadores, seus poemas mais lidos, vivos ou mortos (como já se pode ver
logo na dedicatória do livro: Alberto da Costa e Silva, Anderson Braga Horta,
Antonio Cícero, Nelson Ascher, Paulo Bonfim, Alexei Bueno, Antônio Brasileiro; Dante
Milano, Carlos Penna Filho, Raul de Leoni, Paulo Mendes Campos, Carlos Anísio
Melhor, Orides Fontela, Lêdo Ivo e, por que não, Augusto dos Anjos, Baudelaire,
Vallejo, Gregório de Matos... ) e emulados além de outras artes, como podemos
ver neste soneto que, particularmente, é-me muito especial:
A sempre inacabada sinfonia
de Schubert vai
formando, em meus ouvidos,
aquilo que o compositor
queria:
o som de seus achados e
perdidos.
O corpo de um poema é a
poesia
que exala de axilas e
gemidos,
e aquele que suava e que
gemia,
resiste, inacabado, a
alguns olvidos.
Que efeito de beleza na
escultura
em riste, mutilada, e
que não dura
senão o apaixonado olhar
que passa
de um rosto para outro,
e continua
a mesma exibição,
cadente e nua,
a nos formar por dentro
a nossa graça.
Música, pintura,
arquitetura ou, simplesmente, poesia... todas são maneiras de nos revelar para
além do simplório, do meramente comum, da pequenez que, de facto, é a nossa vida; a busca desenfreada pela Beleza é a
caminhada incessante do homem por sua própria revelação desde suas formas mais
grotesca às realizações mais sublimes
criadas pelo próprio homem. É sabendo disso e poetizando sobre essas coisas que
Henrique Wagner nos oferece um livro de poemas como o apresentado em A história decalcada, porque é nas suas
linhas essenciais que conhecemos a realidade em seu modo mais primário, senão,
por que razão fazer arte ou escrever um poema...?!
Estou certo de que A história decalcada nada mais é do que
um tratado sobre tudo isso, sobre este reencontro do homem consigo mesmo que só
pode ser feito mediante o auxilio da poesia, por exemplo. A poesia é um ofício
de sozinhos; e os versos de A história
decalcada são uma exaltação a tudo que se corta, que se vai, que se
espalha, que se esquece para depois relembrar
e tornar a esquecer; do cotidiano, do lugar
comum, do dia a dia, da leitura vulgar e das grandes leituras, dos pequenos e grandes temas; de poetas vivos e mortos, mas sempre admirados – pois ninguém influencia
verdadeiramente mais um poeta do que outro
poeta... e, depois, de como tirar beleza
de tudo isso, seja através da simplicidade do verso livre, ou da limpidez da
forma fixa, e, principalmente, do domínio do soneto.
A história decalcada é um livro de quem conhece e reconhece o real
valor de um verso, a verdadeira importância da poesia e de todo a papel que ele
desempenha em nossa vida; e, como a aquele grito
que, de era em era, teima em correr, como nos alertou o autor de As Flores do Mal, o autor de A história decalcada segue em não querer
ser menos e fazer com que cada palavra que escreva não se faça sem propósito...
E é por isso que poetas como Henrique Wagner são tão necessários.
Salvador/Candeias, 06 de maio de 2014.
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