sexta-feira, 30 de maio de 2014

DUAS TRADUÇÕES DE BAUDELAIRE...


Retrato de Baudelaire de Émile Deroy (1844), Galeria Paler, França.



DUAS TRADUÇÕES DE BAUDELAIRE...


por Silvério Duque
















LE COUCHER DU SOLEIL ROMANTIQUE...

Que le soleil est beau quand tout frais il se lève,
Comme une explosion nous lançant son bonjour!
— Bienheureux celui-là qui peut avec amour
Saluer son coucher plus glorieux qu'un rêve!

Je me souviens!... J'ai vu tout, fleur, source, sillon,
Se pâmer sous son oeil comme un coeur qui palpite...
— Courons vers l'horizon, il est tard, courons vite,
Pour attraper au moins un oblique rayon!

Mais je poursuis en vain le Dieu qui se retire;
L'irrésistible Nuit établit son empire,
Noire, humide, funeste et pleine de frissons;

Une odeur de tombeau dans les ténèbres nage,
Et mon pied peureux froisse, au bord du marécage,
Des crapauds imprévus et de froids limaçons.

***




PARA UM POR-DO-SOL ROMÂNTICO...

Belo é o sol quando ao céu – risonho – se levanta
numa explosão que nos impele ao seu bom-dia!
Feliz quem pode de ébrio amor e com alegria
saudar-lhe o ocaso cuja glória nos encanta.

Se bem me lembro, tudo eu vi murchar: a fonte,
a flor, o sulco e um coração que não palpita.
– Corramos todos ao esplendor que nos evita
para abraçar o que sobrou deste horizonte.

Mas eu persigo em vão a um Deus que se retira...
A irresistível Noite ao seu império inspira
inundando de sombras as celestes rotas.

Um odor de tumbas entre as trevas já se espalha
e em meio aos charcos meu medroso pé estraçalha
inesperadas rãs e muitas lesmas mortas.

***










Les phares

Rubens, fleuve d'oubli, jardin de la paresse,
Oreiller de chair fraîche où l'on ne peut aimer,
Mais où la vie afflue et s'agite sans cesse,
Comme l'air dans le ciel et la mer dans la mer ;

Léonard de Vinci, miroir profond et sombre,
Où des anges charmants, avec un doux souris
Tout chargé de mystère, apparaissent à l'ombre
Des glaciers et des pins qui ferment leur pays,

Rembrandt, triste hôpital tout rempli de murmures,
Et d'un grand crucifix décoré seulement,
Où la prière en pleurs s'exhale des ordures,
Et d'un rayon d'hiver traversé brusquement ;

Michel-Ange, lieu vague où l'on voit des Hercules
Se mêler à des Christs, et se lever tout droits
Des fantômes puissants qui dans les crépuscules
Déchirent leur suaire en étirant leurs doigts ;

Colères de boxeur, impudences de faune,
Toi qui sus ramasser la beauté des goujats,
Grand coeur gonflé d'orgueil, homme débile et jaune,
Puget, mélancolique empereur des forçats,

Watteau, ce carnaval où bien des coeurs illustres,
Comme des papillons, errent en flamboyant,
Décors frais et légers éclairés par des lustres
Qui versent la folie à ce bal tournoyant ;

Goya, cauchemar plein de choses inconnues,
De foetus qu'on fait cuire au milieu des sabbats,
De vieilles au miroir et d'enfants toutes nues,
Pour tenter les démons ajustant bien leurs bas ;

Delacroix, lac de sang hanté des mauvais anges,
Ombragé par un bois de sapins toujours vert,
Où, sous un ciel chagrin, des fanfares étranges
Passent, comme un soupir étouffé de Weber ;

Ces malédictions, ces blasphèmes, ces plaintes,
Ces extases, ces cris, ces pleurs, ces Te Deum,
Sont un écho redit par mille labyrinthes ;
C'est pour les coeurs mortels un divin opium !

C'est un cri répété par mille sentinelles,
Un ordre renvoyé par mille porte-voix ;
C'est un phare allumé sur mille citadelles,
Un appel de chasseurs perdus dans les grands bois !

Car c'est vraiment, Seigneur, le meilleur témoignage
Que nous puissions donner de notre dignité
Que cet ardent sanglot qui roule d'âge en âge
Et vient mourir au bord de votre éternité !


***




OS FARÓIS

                                   
Rubens, rio de esquecidos, jardim da preguiça,
leito de carne doce onde é impossível amar;
mas onde a vida flui e, em harmonia, se atiça,
como o ar no céu e o mar dentro do mesmo mar.

Da Vinci, este sombrio espelho quão profundo,
onde anjos amorosos sorriem docemente,
sobre os mistérios fulgurantes deste mundo
e de invernos glaciais que descem de repente.

Rembrandt, triste hospital repleto de lamentos,
comum imenso crucifixo ornado pela prece
de quem louvou a Deus em meio aos excrementos,
e onde um raio invernal furioso reaparece.

Michelangelo, vago espaço onde se fundem
os Hércules e o Cristo, e nele se retalham
grandes fantasmas que ao ocaso se confundem:
velhos sudários que a si mesmos estraçalham.

Ira de boxeador ou Sátiro impudente,
encheste de beleza a tantos desgraçados,
peito pleno de orgulho, homem fraco e demente,
Puget,soturno imperador dentre os forçados;

Watteau é um carnaval de corações ilustres,
como as falenas em seus voos mais flamejantes;
leves cenários incendiados pelos lustres
destes festejos que não duram mais que instantes.

Goya, um sonho cruel de coisas sem sentido,
defetos devorados em sabás maléficos,
e crianças nuas, ante um espelho envelhecido,
que atentam vis demônios com gestos heréticos.
                                         
Delacroix, lago onde anjos maus, limpos em sangue,
às sombras deste bosque em eterno verdejar,
escutam a estranha música de um céu exangue:
sopros de Karl Maria von Weber a ressoar.

Blasfêmias, maldições, lamentos indistintos,
extasiante Te Deum de desgraças e de ais,
são ecos percorrendo infindos labirintos,
ópios divinos para os corações mortais.

É um grito repetido a muitas sentinelas,
ordem que ecoa entre milhões de porta-vozes;
é farol a clarear antigas cidadelas
ou caçador errante entre esquecidos bosques.

Senhor, eu sei que homem nenhum jamais Vos dera
testemunho melhor da nossa dignidade
que este ardente soluço a correr de era em era
para morrer à luz de Vossa eternidade!

2 comentários:

Anônimo disse...

A leitura é fluente, Silvério, de suas traduções. Não posso cotejar os textos porque não domino o francês a esse ponto. Apenas leio. Mas li com muito prazer suas duas traduções. Bom ter mais uma opção para baudelaire em nosso idioma... E quando se trata de poeta traduzindo poeta a coisa fica bem melhor. E bom poeta traduzindo, então... Abç.
Henrique Wagner

Anônimo disse...

Olá Silvério Duque:

Parabéns. Embora leia francês com alguma facilidade (ressonâncias do que aprendi em bons cursos de ginásio e colégio), e sem conhecer este seu lado de tradutor, digo com toda a justiça que li com bastante alegria essas duas suas traduções, em nada ficando a dever às que existem entre nós desses dois poemas, especialmente de "Os Farois", u ícone da poética de Baudelaire, em que transparece a sua grande outra faceta de grande crítico de arte, principalmente da tradução (infelizmente, não bilíngue) saída há pouco tempo, do paulista Mário Laranjeira, que acabo de receber de presente, que, como você, em muitos momentos, opta pela adoção de rimas toantes. Francamente, são duas peças que o põem no patamar dos bons tradutores deste que é o meu poeta preferido do século 19, cuja permanência é incontestável na modernidade (aliás, dimensão que ele próprio antecipou, como crítico de arte, ao usar pela primeira vez a palavra "moderno", creio que na crítica de um Salão de Arte de 1845, em Paris). Agora, permita-me uma observar o que me parece um cochilo de digitação: creio que deve-se cortar o "s" da palavra "tumbas", no penúltimo verso do soneto, pois, como está, eleva a sua métrica para treze sílaba, desparecendo o alexandrino. Veja lá se estou certo. Repito: saiba que saí de ambas leituras muito agradecido da gentileza e de pensamento enriquecido, amante que sou da poesia de "Les fleurs du mal", tanto que costumo reler frequentemente a tradução de Ivan Junqueira, a bilíngue de que disponho. Em tempo: se tivesse hoje com paciência, espírito disponível e vagar, redigiria a tradução de "Hino à beleza", Baudelaire, feita pelo simbolista baiano Nathan Coutinho, publicado em A Tarde, em meados dos anos 1940, cujo recorte me foi dado, e ainda mantenho, pelo poeta Carvalho Filho, de quem tive a honra de suceder na cadeira que ocupou na Academia de Letras da Bahia, que me dizia ser esta, para ele, a melhor tradução do poema. Mais uma vez lhe dou os parabéns pelas duas traduções.
Um grande abraço.
Florisvaldo Mattos