terça-feira, 1 de dezembro de 2009

LASCIA CH'IO PIANGA MIA CRUDA SORTE... ou UMA TRÍPLA RECOMENDAÇÃO A RESPEITO DOS CASTRATI


Alesssandro Moreschi (1858-1922), último dos castrati...


Imagem do filme Farinelli, Il Castrato...


Capa do CD Sacrificium, de Cecilia Bartoli (Universal, 2009).


Um dos episódios mais fascinantes e cruéis da história da música foi a existência dos castrati. A palavra, literalmente traduzida para “castrado” em português, designava os cantores que, demonstrando algum talento para o canto lírico, tinham seus testículos removidos para, desta forma, impedir as mudanças hormonais que tornam a voz mais grave. Sobre certo ponto de vista a Igreja teve grande culpa por esta prática, pois suas interdições equivocadas impediam as mulheres de cantar nas igrejas e nos coros.

O auge desta “prática artística” deu-se entre os períodos Barroco e Rococó, ou, para ser mais preciso, em fins do século XVII e primeira metade do XVIII. Aliás, foram os compositores do barroco os que mais exploraram a força e o lirismo dos castrati. George Friedrich Händel (1685-1759), por exemplo, tem áreas escritas para os heróis de suas óperas exclusivamente para castrati, e, comumente, tanto personagens masculinos quanto femininos eram interpretados por eles: Cara sposa de Xerxes e Lascia ch’io pianga de Rinaldo são boas ilustrações para o que afirmo.

Supõe-se que mais de 4000 eram castrados por ano durante todo o século XVIII. Na Itália era muito comum existir muitas barbearias, em sua maioria, napolitanas, que possuiam, à entrada, um dístico com a seguinte indicação "Qui si castrano ragazzi". Era de Nápoles, inclusive, de onde vinham a maioria dos castrati. Os meninos proviam das ruas ou de famílias pobres que viam na castração de seus filhos a única perspectiva para uma vida com dignidade. Entretanto, arrancar testículos garatia o talento, muito menos o sucesso, e, muitos, não achando emprego, voltavam à rua, à miséria e, pior ainda, à prostituição.

Para os que prosperavam, e estes eram poucos, os estudos eram sérios e exigiam dos castrati dedicação subre-humana. Há pouquíssimas gravações que mostram como era a voz de um castrati que combinava extenção, potência e versatilidade; um dessses parcos registros estão nas gravações, entre 1902 e 1904, feitas por Alesssandro Moreschi (1858-1922), considerado o último de sua especie, morto em 1922 e que, até 1913, atuou como solista do coro da Capela Cistina. Após muito analisarem a suas gravações vários especialistas chegaream a conclusão de que Moreschi se tratava de uma voz potente, porém medíocre e "destemperada," pelo fato de que ele não recebeu a educação musical que receberam os grandes castrati do século XVIII, época em que estes estavam no auge. Quando Moreschi iniciou sua carreira, o último dos famosos cantores castrados, Juan Bautista Stracciavelutti (1780-1861), mais conhecido como Vellutti, já havia falecido há anos.

O caso mais lendário entre os castrati é o de Carlo Maria Broschi, mais conhecido como Farinelli segundo registro de época sua extensão vocal abrangia do Lá2 até Ré6, como escreveu Johann Joachim Quantz (1697-1763): "Farinelli tem uma voz de soprano ligeiro, completa, rica, luminosa e bem trabalhada, com uma extensão que abrange desde o Lá debaixo do Dó central a Ré três oitavas acima do Dó médio… Sua entonação era pura, seus vibratos maravilhosos, seu controle sobre sua respiração era extraordinário e sua garganta muito ágil, porque cantou os intervalos mais amplos rapidamente e com a maior facilidade e firmeza. As passagens das obras e todo tipo de melismas não representaram dificuldades para ele. Na invenção das ornamentações livres nos adágios foi muito fértil." O poder e a doçura da voz de Farinelli se perpetuariam por várias cortes que iam desde a de Luis XV, da França, a de Felipe V, da Espanha.

Quem quiser conferir um pouco do repertório dos castrati recomendo, primeiramente, algumas gravações de Alesssandro Moreschi, que podem ser conferidas, por exemplo neste link: http://www.youtube.com/watch?v=slhhg8sI6Ds, mas os leitores deverão desculpar a precariedade de uma gravação com mais de 100 anos. Podem assistir ao filme Farinelli, Il Castrato (Bélgica/França/Itália, 1994) de Gèrard Courbiau, com Stefano Dionisi no papel principal: http://www.youtube.com/watch?v=ZNp8hYycx4c ou adquirir o novo disco, Sacrificium, da médio-soprano italiana Cecília Bartoli que, num trabalho estupendo de talento e pesquisa, revisita, em seu novo album, as principais obras escritas para os castrati: http://www.youtube.com/watch?v=WZdcp_FpfqI.

Em 1870, o Papa Leão XIII proibiria a castração para "fins artísticos" e, em 1878, baniria os castrati dos coros das igrejas... um gesto bastante humano (para não dizer o contrário) na tentativa de apagar centenas de anos de dor, frustração e humilhações.










Feira de Santana, 1 de dezembro de 2009.










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