Autor: Wladimir Saldanha
Gênero: Poesia
Nº de páginas: 216
Formato: 15 x 19 cm
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A AUSÊNCIA COMO VONTADE
E REPRESENTAÇÃO
ou AS MUITAS PATERNIDADES PRESENTES
NO LIVRONATAL DE
HERODES
DE WLADIMIR SALDANHA
Parece claramente que a
coisa mais importante no céu e sobre a terra é obedecer por muito tempo e numa
mesma direção: com o passar dos dias, surge daí alguma coisa pela qual nos vale
a pena viver sobre esta terra como, por exemplo, a virtude, a arte, a música, a
dança, a razão, o espírito, alguma coisa que transfigura, alguma coisa de
refinado, de louco ou de divino
NIETZSCHE
aos amigos e poetas Bernardo Souto
& Sérgio de Souza
Não se pode dizer que a
vida de professor, mesmo a de um professor de Ensino Médio, não é uma caixinha
de surpresas e que, muitas vezes, uma simples digressão possa levar este poeta
menor que aqui escreve a uma reflexão mais aprofundada – à medida de minhas
possibilidades, é claro – sobre os assuntos mais inusitados e, por vezes,
importantíssimos à nossa cultura, bem como à Literatura, à Religião e, até
certo ponto, à política.
Digo isso porque, certa
vez, alguns alunos meus perguntaram-me sobre o que eu pensava a respeito de
Karl Marx e sua famosa frase: “A religião é o ópio do povo” – Die Religion Sie ist das OpiumdesVolkes",
no original –, mas, antes de quaisquer deliberações (como em qualquer discussão séria),
fez-se necessário entender a pergunta em seu contexto, e não solta, como uma
pedra arremessada na lagoa do conhecimento.
Disse-lhes que a frase
está na Crítica da filosofia do
direito de Hegel, obra escrita em 1843, e publicada
em 1844, no jornal Deutsch-Französischen Jahrbücher,
que Marx editava com Arnold Roge. Em seu contexto imediato, lê-se: “É este
o fundamento da crítica religiosa: o homem faz a religião, a religião não
faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do
homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o Homem não é
um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o
Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião,
uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido.
A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua
lógica em forma popular, o seu pointd'honneur espiritualista,
o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base
geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da
essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por
conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta
contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião”.
E continua: “A
miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da
miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o
suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de
situações sem alma. A religião é
o ópio do povo [grifo meu]. A abolição da religião enquanto
felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua
felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua
condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A
crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de
lágrimas, do qual a religião é a auréola. A crítica arrancou as flores
imaginárias dos grilhões, não para que o homem os suporte sem fantasias ou
consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote. A crítica da
religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, atue e configure a sua
realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a
fim de que ele gire em torno de si mesmo e, assim, em volta do seu verdadeiro
sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele
não circula em torno de si mesmo. Consequentemente, a tarefa da história,
depois que o outro mundo da verdade se desvaneceu, é estabelecer
a verdade deste mundo. A tarefa imediata da filosofia, que
está a serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humana nas
suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma
sagrada. A crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra,
a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia
em crítica da política”.
Depois disso tudo, falei
aos meus alunos que, todavia, os pressupostos de Marx – que não são totalmente
dele, mas catados aqui e ali no pensamento de Kant, Hume e Comte – só podem
partirdas conjecturas de um homem fora de um contexto espiritual e metafísico –
e aí eu continuo a explicar: em outras palavras, apenas negando que o homem
possui uma parte para além do material ou que não necessita de tal
caracterização, o pensamento de Marx teria alguma lógica. Mas o homem é grande
demais, em sua racionalidade, para não conceber algo mesmo fora dela, ou
meramente materialista, para negarem qualquer coisa fora da matéria, que vai
desde a imaginação aos pressupostos morais, como quer Marx, e seus mestres
diretos como Comte, ou seus prosélitos mais hodiernos, como Foucault e Derrida.
Neste sentido, não é o pensamento religioso, mas o ateísmo que é, meramente, um
“problema de consciência” e uma “miséria da razão”, muito mais que,
necessariamente, uma formulação racional; é um aspecto trágico da essência
humana – e, nesse sentido, sua maior tragédia –, fruto colhido diretamente da
amargura, da culpa, da impossibilidade de aceitação e do desespero; sintomas
muito comuns desta estranha doença do espírito que consiste em negar aquilo que
nos completa, que nos livra de todos os abismos, de toda dor e das
impossibilidades que o vazio nos traz. De Robert Burton, passando por
Kierkegaard, e, culminando, em Constantin Noica e René Girard, essa enfermidade,
e todo desespero por ele causado, é um prenúncio da morte em vida; uma mentira
romantizada que faz com que os homens vivam, realmente, do ilusório, ou seja,
do desejo por aquilo que deseja seu semelhante; e ainda pior: de desejar, no
impossível, o inalcançável.
Dessa forma, valeram-se,
ao longo de séculos, todo tipo de ideia a buscar, como princípio, a negação do
fato de que o homem é a mais excelsa das criaturas, o mais nobre de todos os
seres. Negação que não me causa nenhum espanto, pois a substituição do Criador
por outro deus menor e enganoso (e nisso o pensamento de Marx, e sua semente,
têm se dedicado ao longo de mais de um século), a se valer das graças deste
mesmo Criador desprezado, é o ponto de partida de todo paganismo e de toda
ideologia ateísta; até porque, a visão grandiosa do homem não é fruto do
Humanismo, ou do Iluminismo, muito menos ainda do Comunismo e mesmo de qualquer
outra ideologia de nosso mundinho politicamente correto; se, realmente, existe
algo de bom no Socialismo, por exemplo, é porque foi furtado do pensamento cristão.
Sobre Marx, por exemplo, e seu legado, Eric Voegelin, em seu História das Ideias Políticas – com a ajuda da tradução de meu amigo Elpídio
Fonseca –, avisa-nos sobre este apocalipse humano, ao afirmar que: “na
raiz da ideia marxista, encontramos a doença espiritual, a revolta gnóstica”. Por
mais que não se diga muito a seu respeito, semelhante doença nos mostra o que
já observamos no caso de Comte e suas características, que, a seu turno,
pertencem ao padrão mais amplo da “doença cientificista e anti-religiosa”.
Para Voegelin, a alma de Marx está demoniacamente fechada à realidade
transcendental, não conseguindo se desprender das dificuldades, retornando à
liberdade do espírito e o ativismo gnóstico, graças à sua impotência
espiritual, é a única saída que lhe resta. Advém daí, como afirmará Voegelin, a
combinação característica de “impotência espiritual com o desejo mundano
de poder”, acarretando “in a
grandiose mysticism of Paracletic existence”. Eric
Voegelin, então, sentencia: “and again we
see the conflict with reason, almost literally in the same form as in Comte, in
the dictatorial prohibition of metaphysical questions concerning the matrix of
the universe, questions that might disturb the magic creation of a new world
behind the prison walls of revolt”. Marx, à maneira de Comte, não permite uma
discussão racional de seus princípios – ou se é marxista, ou se se põe em
silêncio.
O que sobra disso tudo é
a mera correlação entre impotência espiritual e antirracionalíssimo, ou, melhor
dizendo, não se pode negar Deus e conservar a razão. Ora, se não há uma
metafísica como Comte e Marx queriam que pensássemos, então, na há coisa
nenhuma, porque tudo que nos rodeia é metafísica antes de ser qualquer coisa. E
se há um Socialismo, um Antropocentrismo, ou coisa parecida, em sua verdade e
plenitude, estes só podem advir do fato de o homem aceitar-se como uma criação
do Divino, a mais poderosa obra de Deus, a maravilha entre as maravilhas da
Criação. E mesmo que sejamos pó, resquício de estrelas ou coisa semelhante,
como querem alguns, ainda assim somos “pó levantado” (como dissera Pe. Antônio
Vieira) da ansiedade de si mesmo e do desejo de retornar ao seu Princípio; negar
tal coisa é transformar-se num autômato, em uma máquina ou um mero gorila morto
no Congo a quem idiotas sem esperança choram como se fossem por seus entes mais
queridos; é não dar sentido nenhum a sua vida; negar isso é negar a verdadeira
natureza humana, e, pela melancolia e pelo desespero, condenar-se, ainda vivo,
a um inferno de incertezas através de um falso humo universalis, que não possui outra função senão destruir o
Criador pelo desmantelamento de sua obra maior.
E completei: Marx fala
de um mundo invertido no campo do pensamento religioso e de sua
miséria, mas que ele mesmo, na negação de algo que ele não consegue, nem quer
entender, vê-o invertido. Aliás, não é a primeira vez que isso acontece no
pensamento marxista; o próprio conceito de Mehrwert,
por exemplo, é errôneo em si mesmo se se partir da ideia de que só o
trabalhador produz riqueza, enquanto que o capitalista só o explora. Sem a
empresa, não existe riqueza. A dependência só funciona de forma mútua. O
empresário, como disse Ferreira Gullar, é “um intelectual que, em vez de
escrever poesias, monta empresas... É um criador, um indivíduo que faz coisas
novas”. A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só explora é
radical, sectária, primária, assim como a visão de que o homem só precisa do
mundo objetivo e material é negar a abrangência da própria natureza humana. A
partir dessa miopia, sustenta Ferreira Gullar, tudo o mais deu errado para o
campo socialista.
E, assim, encerrei a
dita resposta...
Não sei se foi
satisfatória para os meus alunos do Ensino Médio, ou se apenas acabei passando,
no mínimo, por prolixo, contudo, só pra ser sintético – e também provocativo
(como cabe a uma boa discussão filosófica), deixei-os com
a frase do jornalista americano Edmund Wilson: “o Marxismo é o ópio dos
intelectuais”.
I
Toda essa conversa,
entretanto, deve gerar, no mínimo, outra pergunta: o que tudo isso tem a ver
com a análise de um livro de poesia, como enunciado no título acima? Simples, é
justamente para mostrar que, apesar de os pressupostos filosóficos de Marx serem
tão rasos e fáceis de desmascarar, não podemos negar que justamente por isso aí
está o seu sucesso, por assim dizer: na escala de valores que Aristóteles via
na literatura – mas, como a vida imita a arte, às vezes, podemos estendê-la à
política e, nesse caso, é mais fácil nos compadecermos, e até nos
reconhecermos, de um personagem, digamos, “patético”, do que alguém realmente
profundo ou em algo, digamos, mais sofisticado. É só levarmos em questão o
quanto que a maioria das pessoas se tem colocado já alguns séculos, numa
posição cada vez mais medíocre, em relação a si mesmas, a ponto de chegarmos ao
final do século XIX com uma “massa”, como diria Ortega y Gasset – que
acreditava que, na existência de uma vocação, não para uma carreira
profissional, mas para um rumo que se imprime à existência, devemos atentar e
atender a um chamado íntimo, mas só àquelas pessoas que o saberiam ouvir –,
pois a maioria das pessoas encontrava-se em um total estado de “miséria” que se
fariam surdas a quaisquer chamados individuais, deixando a cabo de poucos (ou
de um Estado acolhedor) a resolução de todos os seus problemas. Isso sim é
miséria, mas não aquela miséria a qual estamos acostumados a ver e ouvir na TV,
ou nos discursos políticos e que muitos acham que alimenta o “Bolsa Família”;
uma miséria filosófica e cultural que tanto Ortega y Gasset, bem como Eric Voegelin,
chamam a atenção; uma miséria cultural e filosófica que Marx diz ter achado em
outras paragens do conhecimento humano, mas que nos últimos 150 anos tem sido alimentada
pelo seu pensamento antirreligioso. Entretanto, ao contrário do que se tem
visto nos últimos anos, principalmente nos primeiros anos do século XIX, onde
as misérias, sejam elas de que tipo for, deixaram de ser um problema para se
tornarem uma via-de-regra, alguns
escritores têm se negado a abraçar tal “revolta gnóstica”, trazendo para o
vazio intelectivo que nos tem cercado cada vez mais aquilo que a “doença espiritual”,
citada por Voegelin, nos tem tirado: um Sentido.
É o caso de João Filho e seu Auto da
Romaria; Lorena Miranda Cutlack, com O
corpo nulo, ambos lançados pela Mondrongo.
E é o caso de Wladimir Saldanha, em seu livro Natal de Herodes, a nos mostrar, como queria St. Agostinho, que há,
em nós, algo mais profundo do que nós mesmos.
Ao contrário do que
muitos podem pensar, Wladimir Saldanha, em seu novo livro de poemas, não está
nos trazendo um “mais do mesmo”; quando lidamos com os temas Bíblicos, o único
limite são os limites do próprio autor. Os símbolos contidos nas narrativas bíblicas
sempre se farão novos, porquanto tratam da própria
essência de nossa cultura e literatura. O pastor protestante Northrop Frye, em
seu The
Great Code, já nos mostrou que, praticamente, todos os enredos da
literatura ocidental provêm de raízes bíblicas, lidar com esses temas é tão
redundante como nos é redundante respirar, comer ou amar. Da observação de
Northrop Frye, pode-se concluir, como nos admoesta o filósofo Olavo de
Carvalho, que a literatura ocidental como um todo é, sem sombra de dúvidas,
parte essencial do processo que Eric Voegelin chamou "descompactação dos
símbolos", pelo qual os velhos símbolos se apresentam em versões cada vez
mais diferenciadas, renovando possibilidades de intelecção que a passagem do
tempo vai tornando cada vez mais opacas. Isso quer dizer que não é mesma coisa
que ler a narrativa bíblica com uma consciência literária desenvolvida e lê-la
tão somente com o suporte teológico-dogmático, e um poeta como Wladimir
Saldanha, que não tem a menor pretensão de ser menos que um grande poeta, não
pode abrir mão de qualquer fonte, referência ou inspiração e não está aqui para
meros dogmatismos; Wladimir não se acanha diante das referências religiosas,
dessa sempre renovada "descompactação dos símbolos", muito menos das
referências clássicas, ou se mostra envergonhado em tomar para si mesmo os sons
e os ritmos das cantigas populares, das lendas que se renovam dentro dessas
canções, parlendas e cirandas. E, nessa ciranda linguística de seu Natal de Herodes, não se faz de rogado
em se utilizar nem da linguagem simples e musical das cantigas de roda, muito
menos da substantival e precisa anti-lírica à João Cabral de Melo Neto. A fusão
de tantos e tão diversos elementos, pelo contrário, dão à poesia de Wladimir
uma dimensão que não pode ser percorrida por um leitor desatento, muito menos
despreparado. Duvido muito que isso se apresente para o autor de Natal de Herodes como um problema ou uma
angústia que precise ser aliviada; mais do que um compromisso com seus
leitores, Wladimir deixa bem claro que, primeiramente, seu comprometimento é
com a poesia e as muitas possibilidades que a linguagem e a forma poética podem
oferecer... e eu o louvo por isso. Um poeta que não propõe um desafio, no
mínimo, intelectivo aos seus leitores não me parece compromissado com nada que
diga respeito realmente à literatura, apenas, porém, ao fato de ser reconhecido
como alguém que faz literatura, e disso, se o Inferno não está cheio, o cenário
literário da Bahia e do Brasil está a transbordar.
St. Agostinho nos chamava
a atenção para um vazio existencial presente em todos nós, ao afirmar que o
coração inquieto dos homens somente em Deus encontrará repouso. Não é à toa que
Wladimir Saldanha permeia seu livro com esta ideia: a orfandade e o abandono.
Tema muito recorrente, que aparece e reaparece tantas e tantas vezes neste
livro, que acaba por ser o leitmotiv
que conduz autor e leitor aos muitos caminhos para onde estes poemas apontam; a
ausência de um pai, muitas vezes uma ausência de sentido e a quase ausência de
muitos sentimentos, vêm e vão em tantos momentos que mais parecem querer que
nos guiemos para algum lugar ou ideia específica, mas não sem antes fazer com
que tenhamos essa experiência íntima, esta que Octavio Paz nos lembra em seu El
arco y la lira, que sentimos la
orfandade antes de tener consciencia de nuestra filiación, e que mesmo um
ateu como Heidegger sabia que experimentamos tais coisas antes mesmo de termos
a convicção de quem somos. O fato de sermos cristãos não nos afasta de tais
experiências, pelo contrário, sabemos de nossa incompletude, de como nossos
erros nos afastam de Deus, porém, não dançamos em meio ao vazio como uma
bailarina louca; o coração de todo cristão sabe o que lhe falta e onde
encontrar, e, para que servem as palavras, a presença e o sentido da vinda do
Cristo a não ser para aqueles que estão cansados, humilhados, destruídos,
desesperados...?! O próprio poeta descreve em seu poema Os Mutilados: “recém-chegados, recém-saídos, egressos de si mesmos,
só queriam Informação...” Este saber de
nós mesmos, esta viagem que fazemos dentro de nossa alma para seguirmos um
caminho diferente do antes traçado, é fruto de um saber para além de toda
razão, e que só é possível quando a vida nos mostrar a sua força viva, a sua
renova, sua possibilidade advinda da incerteza, como um novo ser que nasce;
como outrora um Deus entre nós nascera. Mas, até que isso, de fato, aconteça –
e se acontecer, visto que o Céu não é para todos – não podemos captar ninguém,
nem nós mesmos, no mais completo íntimo, muito menos ter a noção plena da
essência última presente em nós, e, menos ainda, como queria Viktor Frankl,
capacitar a nós mesmos ou alguém a realizar as suas potencialidades. O que nos
resta é nos jogar na miséria gnóstica da qual o marxismo se alimenta e
propaga... Mas Wladimir Saldanha e sua poesia não estão aqui para isso. Veja o
seu O Oratório Vazio:
Por que guardá-lo vazio?
Por que fazer caso dele
para guardá-lo vazio,
os santos fora, com
frio?
Há vazios que guardamos,
cheios que são de
sentido.
Vazios em cerejeira
e portinhola de vidro
são desses, mas se abrem
se lá formos
conferi-los,
e a sua cruz cimeira,
deitamo-la intranquilos.
Quadratura das beiras,
dobradiças do ter sido:
o oratório da bisa,
à guisa de quê, vazio?
Gratidão por umas
freiras;
por outras, um prurido
que sangras e dá-me
coceiras,
como estilhaços de
vidro;
incandescente, o silício
é vidro quente e a
madeira
da cerejeira incendeia!
Ateu? Só ateio
Francisco:
“Que eu leve luz, onde treva;
compreender, que compreendido...”
Jamais fogo, o que me
leva
é essa fé de consumido!
Cheio é só de oração
meu oratório vazio...
Da oração de São
Francisco,
de Santo Antônio, seu
filho;
e as de Verlaine, e
Bandeira,
no oratório em cerejeira
e portinhola de vidro.
Com seus vazios de
sombra,
com tudo que tem de
espólio
e das faltas que
entesoura,
eis que guardo um
oratório
pois há algo nesta
ausência
– que confiro vez por outra
ao abrir a portinhola –,
sim, há algo nessa
ausência
que, não direita,
consola,
mas sem nome se
acrisola.
Ora aceito essa exação
de moderno e de
antiquário:
nem desfazer-me nem tão-
pouco fazê-lo em
pedaços.
que não podia se completar de forma melhor, do
que com este sonetilho intitulado O
Morgadio:
Não reclamo a nostalgia
do metro e meio do céu
do voo de minha
pombinha,
a pombinha de papel,
que em tantos rodopia,
pois não a exclamo eu...
– explico: a tal
pombinha,
dobradura de papel,
a mesma do barquinho,
que, se aberta, era
chapéu,
mas, cortada –
aviãozinho...
O caxangá não se abriu?
Cortou-se o mar, e o céu
– metro e meio! – é morgadio?
O que falta é que é mais
meu.
A dor da orfandade é uma
dor terrível, sem dúvida, nada obstante, poucos se dão conta que tal dor também
é semelhante à dor que Deus deve sentir quando abandonado por seus filhos,
sofrendo por causa da rejeição e da desobediência por parte daquilo que ele
criou com tanto afinco. A orfandade é a própria alegoria do homem sem
Deus: sozinho, abandonado, desconfortado em seu próprio mundo, sem razão de
existir em um mundo onde o mais ínfimo propósito não existe e onde tudo que
ele, mero resultado de um acaso molecular ou coisa semelhante, pode experimentar
de mais concreto é, sem fazer rodeios, sentir-se um órfão. Há muitas
orfandades: pais mortos, que nos abandonam, nos esquecem; filhos se esquecendo
de seus pais, ou rejeitando-os, largando-os à própria sorte, produzindo igual
sentimento; assim somos nós sem Deus: filhos sem pai que, não sabendo como
lidar com tamanha dor, inventam seus próprios pais, criam para si figuras para
substitui-los e assim aplacar seus sofrimentos. Marx diz ser a religião e Deus
uma invenção humana, para aplacar um vazio; todavia, como já disse
anteriormente, Marx só distorce os fatos, pois não consegue viver fora de sua
“revolta gnóstica”; por isso, ao fechar os nossos olhos à realidade e abandonar
a certeza de um Deus vivo, não resistimos à dor dessa orfandade e elegemos
outros deuses, porque é certo que um homem sem Deus não disponha doutra
alternativa a não ser imitá-lo de alguma forma, por isso, o mundo puro e
natural, a história e a ciência, tornaram-se deuses por muitos eleitos sem
outro propósito que não seja o de substituir um deus deposto; entretanto, o
mundo puro e natural, a história e a ciência, por mais maravilhosos que possam
ser, acabam por esgotar a realidade; o mundo sem Deus é, do contrário que pensam
muitos, transformar-se não em um resultado direto da razão, mas num
produto de fantasia, projeção humana, elaboração simbólica, tudo sem substância
ou profundidade ontológica; ah, pobre Marx... E é de sua própria orfandade, por
exemplo, que o Dr. Victor Frankenstein, do romance de Mary Shelley, tira a
ideia fixa de “fabricar vida”, como um recurso inteligente, mas desesperado, de
alguém que reconhece o vazio ontológico de uma existência sem fé, e enxerga um
mundo pobre e desesperado que nasce de tal vazio.
Essa fixação, diga-se, pela
orfandade é, por exemplo, uma característica muito marcante da era Vitoriana,
bem como de todo o século que nos deu Marx, Nietzsche, entre outros, que
fizeram do niilismo não uma verdade, mas uma fuga para as coisas reais.Vejam,
por exemplo, como a orfandade é exacerbada pela literatura de Dickens, que era
cheia de protagonistas órfãos. A destituição, miséria e doença que vieram com a
urbanização desenfreada, com o cientificismo profético e a Revolução
Industrial, provocam essa orfandade como a que se vê em Oliver Twist. Passou-se pouco mais de uma centena de anos após Dickens e o
niilismo é uma via-de-regra cada vez maior; o sucesso da série 13 Reasons Why, da Netflix, vem nos
mostrar muito bem isso. Falta de aviso não foi, já que Camus, amais de meio
século, em seu O mito de Sísifo, já
nos avisara sobre isso, ao afirmar que “matar-se é, de certo modo, como no
melodrama, confessar; confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se
tem como compreendê-la”, mas como compreender a vida se ela não nos dá algo
para compreendê-la, para dizermos a nós mesmos que ela é especial, que há algo
maior nela, e para além dela. Marx, ao afirmar que a religião é o ópio do povo,
criou uma rede de destruição de sentido responsável pelo muito que de pior veio
acontecer ao mundo nesses últimos pouco mais de cem anos; sua devastadora onda
antirreligiosa deixou e deixa muitos no abandono total, uma vez que o ateísmo
também nos deixa órfãos e essa orfandade nos faz criar monstros, sejam imaginários
ou fictícios, como no Frankenstein,
de Mary Shelley, ou aqueles que surgem todos os dias na nossa rua, de nosso
vizinho, ou em nós mesmos.
É
claro que Wladimir Saldanha em seu Natal
de Herodes nos relembra e mostra outro caminho, não transformando a
orfandade numa doença incurável, muito menos num vazio de sentido que nos
conduza à negação ou à morte autoinflingida. Nas muitas referências que faz ao
pai ausente, por exemplo, e mesmo nas muitas faces que lhe empresta, Wladimir
transforma essa ausência em uma averiguação que é mais que uma busca por outro;
é na busca de si mesmo em todas as personificações que a figura paterna vem
recebendo ao longo deste livro; todas se fundem nessa investigação minuciosa. O
poeta não procura em outro pai ou família, não se compadece demasiado de si
mesmo, muito menos perde tempo sentido pena de si; é necessário que a orfandade
não seja sentida como algo que o assombrará por toda a sua vida, muito menos
sentir-se órfão de um fantasma, mas sentir-se mais vivo e certo de um sentido
justamente por sentir análoga ausência. A ausência não pode ser razão de morte,
mas uma razão para alcançar o que de mais vivo podemos alcançar; algo que
transfigura, que em nossa busca nos reconheçamos. Acredito que, na tentativa de
reconhecer e entender a sua orfandade, o poeta não venha a se sentir só em seu
abandono, desaconchegado em seu próprio mundo, sem razão ou propósito, mas que
venha reconhecer a verdade, o chão onde pisa e o porquê da própria existência.
Vejam, por exemplo, os sonetos que compõem o poema A linha Pulada:
Não morre o pai ausente nalgum pai de alguém.
Não ganho num velório
algum choroso irmão.
Ainda que o queira, eu
não me dou de órfão.
É que mesmo avejão o pai
ausente é nem.
No filho de alguém, nem
eu morro também.
Não ganho no velório o
pai de alguém então.
Pareço até mais vivo,
órfão de avejão,
e o pai de filho ausente
nem um nome tem.
A morte não se dá com
alguma ausência extrema.
Não direi a do morto, a
de um corpo presente,
mas duma que nem foi,
mas vai: eis o problema!
As salas de velório,
embora em sua ausência
frequente-as quando vou,
o pai, tal no poema,
foi ele que pulou do
Livro de Presença.
E completa:
Foi ele que pulou do
Livro de Presença?
Nem isso digo mais com
uma igual vontade.
Sou dom Quixote à morte
e a minha necedade
eu já conheço; e deixo
aqui as burlas da ausência.
Chamai o cura e o
notário, a assistência.
Não cuido mais de pai
andante cavaleiro.
Volvendo agora ao siso,
porém, nenhum dinheiro
lego a Sancho leitor,
por sua paciência
de me seguir até os
lindes da loucura,
eu que lhe prometera
ilha (em outro livro);
mas me chamai, chamai
notário e cura,
para me escarmentar,
legar o bom juízo,
que vá restituir ao pai
feito figura
o pai sem disparate – e
morro Alonso ungido.
Ainda tentando entender
e transfigurar esse sentimento, em seu Natal
de Herodes, Wladimir Saldanha não se encabula em abusar das mais diversas
formas e ritmos poéticos para fazer valer suas ideias e referências diversas,
são sonetos, sonetilhos, quadras, versos livres, versos brancos, poemas
carregados de prosaísmo ou de lirismo; também não se faz de rogado em conversar
com linguagens artísticas diferentes, como as artes plásticas e até a música,
para as muitas composições de seu pai ausente, como podemos perceber em poemas
como Retrato do pai ausente em técnica
mista:
Cavei-o em auto relevo
para fazê-lo carimbo:
assim a xilogravura
tirou-o primeiro do
limbo;
foi como cavar em
cavacos
o dia, que ele me dera,
para avultar os seus
traços
de anoitecer tinta
negra.
Fiz alguns pais de
sucesso
com a minha matriz;
mas, artesão, o meu
preço
não pagava um só que
fiz.
Quando, após umas
provas,
só se mostra opalino,
sonhei-me artista co’as
novas
feições de quase menino
e aproveitei as mais
clara
para fazer uma
encáustica:
cera quente de espátula
que garantisse umas
caras
duráveis, como de
antigas
urnas que há,
funerárias;
lá onde a cera aglutina
pais de nobrezas várias.
Mas eis que minha
encáustica
logo ficou craquelada:
faltoudâmar, ou nobreza
da dama que é minha
espátula?
Ora assim como um
restauro,
pintei a óleo seus
veios:
ocraquelê dos receios
compôs, fiel, um mosaico
sobre que apliquei
verniz
(mais por não se
soltasse
do que para dar matiz
de brilho na tal face)
e logo que foi seco
o ausente em técnica
mista,
pus a vender o meu
treco,
mas, ai! Eu não era
artista.
Por isso aqui o penduro,
a ver se agrado um olho:
xilogravura, restauro
de si, encáustica e
óleo,
eu dou até de presente,
se nunca mais tive paz;
levai o meu pai ausente,
pois já tentei aguarrás.
ou neste Em
Nova Iorque por Tom Jobim, com direito a clave de sol, segno e coda:
Dizias, como tuas
blagues,
admirando as alturas
dos prédios de Nova
Iorque,
ser essa uma tal cidade
“pra se contemplar de
maca...”
Incrível o teu cadáver,
sem pasmo de
arquitetura,
adivinhava uma placa
ali, da morte futura.
No céu do sertão, já eu,
surpreso da mesma morte,
não pude achar-te a
estrela
que manda o
lugar-comum...
Eram muitas; eu, nenhum.
Há céu? Ofusca.
Estrela, escava
alguma música,
qualquer palavra
que traga sono
aquém não dorme.
Inútil, longe,
teu corpo enorme...
Chegam de fusca:
por que tão triste
sem ser parente
– sem ser parente?
Estrela, insiste!
Há céu? Te busca!
A blague,
o céu:
cidade
e eu;
a nova,
a morte:
a cova
iorque.
Sertão
ardendo;
à noite,
o frio...
Tremendo
o rio.
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O poeta Wladimir Saldanha |
II
A ausência de um pai é,
para Wladimir, a sua profissão de fé e o sentido mesmo que emprega em todo esse
livro. Gregory Wolfe, citado por Dionisius Amendola, em seu canal no YouTube,
diz-nos que a fé deve permanecer fiel à experiência e ser muito mais que uma
cegueira sentimentalista; deve reconhecer e ser permeada pelo sentido trágico da vida, um sentido que
se impõe sobre todo niilismo, todo relativismo, toda politicagem barata de
nossos dias, pois todos nós enfrentaremos, mais cedo ou mais tarde, a nossa própria
escuridão. O mundo em que vivemos faz de tudo para que não façamos tal
reflexão; estamos sempre distraídos com algo; com a vida alheia nas redes
sociais, com o Netflix ao celular, com os joguinhos de computador, com lutas e
revoluções que não são nossas e nem se quer a entendemos em sua complexidade e
sentido – quando essas os têm –, tudo para nos impedir de encontrarmos a nós
mesmos, de nos deparamos com nosso próprio vazio diante do mundo, diante de
quem somos. Quantas vezes esquecemos dessas “distrações” para olhar para dentro
de nós? Não há nada em nosso mundo, cada vez mais empenhando em fugir da
realidade, que nos impulsione para dentro de quem somos. Mas a poesia deve se
debruçar sobre tais questionamentos, ela deve nos lembrar dos muitos abismos
que carregamos, como faz Wladimir Saldanha, em seu Natal de Herodes, que se arremessa, e juntos também nos
arremessamos, para o abismo da ausência paterna. O que é isso senão um mergulho
no desamparo? Mas não o desamparo de um pai, de um filho órfão, mas àquele
desamparo a que toda criatura sobre a terra se
recolhe e está destinada, e cuja consolação está naquele repouso que St.
Agostinho apontou com tamanho acerto? A consciência desse desamparo, torna-nos
humildes diante dos mistérios da divindade, que nos faz fortes e perseverantes
diante da aparente falta de sentido de nosso mundo que não se olha, que nos
encaminha à liberdade diante das ideologias que envenenam nosso mundo.
Hans Von Balthasar,
em seu ensaio Tragédia e fé cristã,
chama-nos a atenção para o que ele nomeia de sentido trágico da existência,
lembrando-nos que as boas coisas que pertencem a este mundo não se sustentam
por si mesmas, como já bem sabiam os artistas do Barroco, estando fadadas ao
desaparecimento, isso nos conduz à contradição e à alienação, fazendo com que
carreguemos uma maldição ou uma culpa hereditária. Não podemos, por mais que
lutemos, nos livrar de tais condições ou tradições, mas suportá-la quando nos
encontramos diante do abismo. Mas me parece que o pensamento materialista
encontrou um meio de enganar essa contradição – na verdade se enganado e
enganando a nós mesmos – nos fazendo acreditar que a essência humana não possui
uma razão ou uma realização, como queria Karl Marx, ao dizer que a abolição da
religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua
felicidade real; a inversão de Marx nos leva ao mesmo abismo que a vida
como conhecemos, cercada pelo sentido trágico da vida, também nos conduz, sem,
é claro, nos mostrar que há uma salvação para além desse abismo. O que Marx faz
com tal inversão é pôr as lâminas de barbear nas mãos de Hannah Baker, ou uma
Charlotte cada vez mais impossível na frente do jovem Werther. Se não dermos
ouvidos ao nosso desejo de transcendência, se não aprendermos a olhar para o
vazio nosso de cada dia, se diante do espelho não negarmos quem somos, nos
distraindo todo momento para esquecer de nós mesmos, talvez possamos
compreender o sentido de todo sacrifício, e não sejamos destruídos pela
lembrança fantasmagórica de nossos próprios medos e incertezas, mas dá a elas
uma nova forma e valor, como faz Wladimir com a figura de seu pai; essa
ausência gera no poeta uma vontade, um impulso de morte e realização que não se
apazigua enquanto não se transcende, ganhando uma ou várias representações que
se encadeiam ao longo de seu livro. Do contrário, seremos como Jonas a fugir do
que não pode ser enganado; porque a fuga de Deus jamais deixará de ser uma fuga
de quem realmente somos. Ou encaramos, ou e aceitamos; do contrário, nem quentes
nem frios, o que nos resta é sermos vomitados de um âmago que não nos pertence,
como Wladimir nos relembra em seu Jonas:
Escuro é o grande peixe
por dentro. Tateio os
signos
ondulando os borborigmos
quando engole mais um
peixe.
Nínive, o que é Nínive?
Lembrar-me, por exemplo
do Pai. Se o não tive!
Agora a víscera é
Templo.
O ar que respiro é
ferroso,
ar de sangue vivo.
Escuro,
só enxergo o meu
remorso,
e pelo cheiro sei que é
rubro.
Louvo o breu, louvo esse
fosso
que não omito. E
Tedescubro
e me descobre num
vômito.
É preciso dizer o quanto
que a memória também tem uma importância imensa à composição deste livro, e à
ideia de tragédia que ele, em determinados e precisos momentos, explora. E já
que Wladimir impregna estas páginas de memórias, sejam suas ou de personagens
históricos – pois a memória de um grande poeta também é a memória de seu tempo
e da história –, preciso dizer que aqui, neste sentido, Natal de Herodes muito se assemelha ao livro Auto da Romaria de seu compadre João Filho. A poesia que se
apresenta tanto em Natal de Herodes,
bem como em Auto da Romaria, funciona
como transfiguração demasiadamente precisa, como transporte à história e à
imaginação. A história, como afirmei no artigo que escrevi sobre o livro do
João, é um meio de transporte, o mundo é um transporte, a imaginação é nossa
maior nave, e assim como em Auto da
Romaria, no livro deWladimir tudo segue um curso muito delimitado e preciso,
mas em um ritmo diferente ao livro do João Filho; se no Auto da Romaria o rio o segue, as brenhas abertas entre os morros o
seguem, as procissões o seguem, a fé segue-o inabalável, em Natal de Herodes seguimos figuras
bíblicas e históricas, seguimos memória e imaginação, ausência e espanto, e os
leitores de ambos os livros segui-los-ão independentemente de suas crenças, até
porque, como afirmei outrora, a poesia é também transporte, e, ao fim da
jornada, apenas os que souberam realmente o que buscar encontrarão. Parece-me
que é exatamente isso que o poeta tanto almeja: um encontro, uma resposta, um
sentido que, à maneira de um Dom Casmurro, possa unir duas partes de uma vida,
vivida ou inventada, real ou imaginária, fictícia ou história, dolorosa ou
transcendente...
Que outro motivo o poeta
teria para falar a respeito do Advento, do Natal, do nascimento de um Deus,
pois como nos disse Olavo de Carvalho – lembrado pelo próprio poeta: tudo é
incerto quando um Deus vai nascer? Que outro motivo a não ser atar duas pontas
dessa nossa existência humana, perdidas entre o que vemos e o que está além,
entre o que tocamos e o que se esconde para além do que pode ser alcançado,
entre as necessidades do dia a dia e o desamparo que nos rodeia? Onde um pai
pode ser Deus, ou por Deus substituído. Onde esse Herodes pode ser o Rei real e
medroso de perder seu poder e certeza, como todo homem comum, ou, na figura
desse Herodes, a ideologia que vem nos afastar de Deus dizendo que nossa vida
não tem razão ou sentido? Que outro motivo o poeta, diante da vida, da memória
e da imaginação criadora que são suas, apossa-se de vidas que não são suas, de
imaginações que não lhes pertence, de vidas que não poderia viver? Que outro
motivo faria o poeta, refletindo diante de tudo isso, transformar passividade
em ação, ação sublime? Que outro motivo faria o poeta, em total autoafirmação,
admitir que a Paixão não é passiva, que o Sacrifício não é vão e que a Dor não
é para sempre? Mas, na união destas duas extremidades, o que o poeta enfim
deseja senão preparar o seu pulo,
como é preparado mostrado e dito neste O
pai epílogo...?:
Primeiro serão os últimos,
disse-me o Pai Epílogo.
Vinde a mim estes adultos
que mal foram criancinhas;
sou eu o Leão de Judá:
não chores, ó filho prólogo,
sou da Raiz de Davi,
e fui à força arrancado.
Extirpado, eu não nasci
de novo: tornei-me da morte
qual renitente raiz
estoura bulbos no ar.
Voltei gavinha aqui
para abrir e desatar
não o Livro e os selos sete,
mas os teus, secos – e este.
Chega aqui a minha juba,
toca a aspereza das cerdas:
é a barba de teu pai
jamais feita, a gora hirsuta.
Meu carinho apocalíptico
te lanha e te absterge.
Vem-me, ó pequenino:
meu rosnado te protege.
És um prologo que vinha
Dispensável! Disse nada
como tantos, numa noite
em que vim nascer na palha –
quando o gládio de Herodes,
brilhoso e cego à metáfora,
cortou-me tantos preâmbulos!
Chorei vagido por todos.
Vê: explicar meu reinado
era Epílogo, não Prólogo...
Infância minha, ensanguentada,
embebe-te a dessangrada.
Choraste pelo teu pai,
porque te cercou de vazio?
Também o meu: pareceu-me
que o rugido era silêncio.
Tens lá longe a tua praça,
teu jardim expatriado?
Tive o meu, de oliva e árido:
savana do Getsêmani.
Teu pai chamou de pai
teu meio-irmão, feriu-te assim?
Eu só tive meio-irmãos,
e me cuspiram, ao Pai em mim,
qual novilho que cuspiste:
pudera eu ser, e Cordeiro!
Cuspiste, oariesphinx,
monte e chão, neve e braseiro.
Mas conheço a tua ânsia
não de lãs: de cerda ruda.
Por isso, minha criança,
eis Leão, eis garra e juba,
como Epílogo, ou prolepse
de João no Apocalipse.
Dou-me ao teu tato sem nexo,
que preme o ar deste dia!
Tens a fome do Deus Homem,
que alfarroba não sacia;
és do que tateiam ausência,
no silêncio... Desta vez,
com as de outro pai, mãos pensas,
cofia e textura dos tufos
enquanto meus olhos de corça
preparam – doces – o pulo.
mas não sem antes atar-se ao Pai, o Pai Todo
Poderoso, como neste A oração da orelha
de Malco, porque o último milagre de Deus seja, talvez, fazer com que a sua
criação volte para ele, a atar-se novamente, merecidamente, curando a mutilação
que, uma vez, o ateísmo provocou:
Colhe-me do chão, Senhor,
gruda-me a cabeça à
minha cabeça,
a tumefeita cartilagem
entre a costeleta e a
têmpora.
Afasta o gume do
apóstolo
e gruda-me esta metade
decepada com o lóbulo,
como um último
milagre
discreto, quando Te
rogue,
na confusão deste palco,
orelha, tal de Van Gogh,
eu, pobre orelha de
Malco,
com o sermão sem
sacerdote,
que por ouvir me
desfalco.
O poeta e desenhista Felipe Stefani
III
Não
poderia terminar de falar a respeito desse livro sem abrir um parênteses a
respeito dos desenhos de Felipe Stefani. Seus traços são muitos mais que meras
ilustrações para amenizar o tamanho e a densidade deste livro; vejo-os como
personagens a mais de toda essa narrativa – sim, eu considero os poemas de Natal Herodes como uma história que se
faz, desfaz-se e recomeça muitas vezes, para contar, de diferentes formas, um
drama humano que teima em não se esgotar –, personagens mais do que
coadjuvantes, pois eles completam e introduzem momentos decisivos em meio a
tantos versos, com seus traços rápidos e sinuosos não amenizam os dramas
contidos aqui, pelo contrário, torna-os ainda mais densos e complexos se
olharmos para estes desenhos que, à primeira vista, ou para os olhos leigos,
nos parecem esboços, mas é justamente em suas formas assimétricas e
aparentemente inconclusas (em traços que, pelo que nos parecem, têm seu início
e seu fim em si mesmos), que imaginamos formas vindouras, coisas que ainda
teimamos em descobrir.
Como Hilton Valeriano
disse, certa vez, os desenhos de Felipe, longe de uma mera abstração sintética,
manifestam a forma, isenta de toda matéria, em seu prenúncio. Sua subjetividade
de artista busca o instante nascedouro, o esboço humano de concretização, o que
nos leva à questão da definição de um ser em sua essência. Por isso mesmo,
Wladimir não poderia ter escolhido melhor ilustrador, até porque se, em sua
subjetividade, Felipe Stefani, traça e retraça a incessante busca de instante
nascedouro, o que os versos de Wladimir buscam neste Natal de Herodes que não seja um sentido de nascer, saber-se
alguém, dar uma razão às coisas ou a si mesmo? Bastar olharmos para os traços
de Felipe para sentirmos que o ser humano como um ser destinado à realização,
no uso de seus espaços, a possibilidade de algo se concretize e em sua
projeção, um ser humano sempre aberto às possibilidades. Para um livro que não
apresenta outro designo que não seja uma busca de si mesmo, esses desenhos,
ainda citando Hilton Valeriano, não me parecem ter outra função ao Natal de Herodes que não seja apreender
a ação humana em seu intento e simultaneamente mostrar toda a dimensão
provisória de sua realização, toda a possibilidade ou não de concretização de
seus anseios, revelando a principal característica do homem: a liberdade. A
liberdade como dimensão definidora do homem, como sua essência, só pode ser
percebida nos desenhos de Felipe Stefani se prestarmos atenção na relação
estrutural, semântica existente entre os seus desenhos e a folha branca, que se
apresenta como espaço de projeção. Seus desenhos parecem nascer, brotar da
folha branca como um sentido a clamar pelo homem... Assim também é o poeta
diante do mundo e da ausência paterna; na possibilidade ou não de concretização
de seus anseios, de suas angústias, encontrar um sentido para isso, encontrar
nesse sentido sua própria liberdade, e nesse sentido e liberdade, longe da
“miséria gnóstica” promovida por Marx, por exemplo, encontrar aquilo que há de
maior para além de nós mesmos.
No decurso de todo o seu
Natal de Herodes, Wladimir Saldanha
se apoderou de diversas personalidades: mitológicas, religiosas, históricas,
pessoais. Ele fez o que todos os grandes poetas fizeram: apropriou-se de toda a
cultura possível, usou as suas vozes e a ela devolveu a sua própria voz, e, de ambas,
criou uma voz única. Porém, durante todo esse processo de troca, fugiu, muitas
vezes, de sua própria personalidade – que não deixa de ser sua autoafirmação,
também –, fuga que se deu através da força da tradição (é só verem o tema, as
referências, as digressões, as formas, a técnica), uma força que Wladimir
conhece bem e dela fez bom proveito. Mas
também nos deu as suas impressões, suas angústias, planos, desejos; fez tanto
da cultura quanto de suas vivências seu próprio reflexo psicológico e personificação
religiosa. Tanta inquietação só poderia nascer de um embate entre o sensível e
o metafísico – pois não foi assim que nasceu praticamente tudo que nos importa
de verdade? –, como nos lembra o poeta Emmanuel Santiago, que prefacia este
livro. O resultado deste embate não poderia ser melhor: poesia da mais alta
qualidade... É o desejo de transcendência que fará da poesia de Wladimir sua
própria revelação e fuga; fundindo biografia e tradição, o poeta fará deste
livro um ato de redenção e de perdão, toda vez que relembra a ausência do pai,
e, nessa lembrança, essa ausência é redimida ora numa construção de figura
paterna, ora na aceitação dessa ausência como parte motriz de sua força
criadora, ou, como Nietzsche nos diria: se não há pai, inventemo-lo. Mas, aí, o
leitor perguntará: o poeta se resolve...? Essa não é a questão, pois tal busca
não mais lhe pertence; agora, cada percurso, cada trama, cada intento
versificado , pertence ao leitor, cabendo a ele encontrar, nos caminhos
traçados pelo poeta, a sua própria estrada. A poesia não deve ter aqui, nem em
algum lugar, outra função que não esta: uma fuga para aquela “miséria gnóstica”
de que falei no início deste artigo; um caminho para tudo aquilo que há de
superior em nós; uma estrada para o que nos falta... E se ainda não o
encontramos – e por isso mesmo nosso coração permanecerá inquieto –, também não
há razão para nos sentirmos sós.
Salvador/Feira
de Santana, dias das mães de 2017.