terça-feira, 10 de outubro de 2017

"BLADE RUNNER" REVISITADO...



 “Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser.
Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. É hora de morrer”




BLADE RUNNER REVISITADO



"Hora de morrer", disse o androide,
um dourado ser ariano,
sentindo o tempo digital
de sua vida se acabando;

tempo de pétala, de pústula,
de pressa frívola, de dúvida,

destes fáceis jogos verbais,
coroas de lama e de louro
sobre os cabelos dos mortais;

hora de o ser voltar aos seus
eflúvios cósmicos de Deus.

ALBERTO DA CUNHA MELO




Vocês já foram assistir a Blade Runner 2049? Por esses muitos empecilhos de nossa vida moderna, eu ainda não fui, mas aproveitei o mote do novo filme, e o beneplácito da HBO Plus, e novamente assisti ao filme original... E, olhem, poucas vezes vi um filme ficar tão atual, tão melhor, tão delicioso com o passar dos anos, como é o caso de Blade Runner: o caçador de Androides.

Digo isso a vocês porque, apesar de o filme ser de 1982, e seu diretor, Ridley Scott, nos apresentar uma Los Angeles, de 2019, com carros voadores, viagens interplanetárias e robôs escravos, ele não erra na maneira como essa sociedade é retratada, e, principalmente, como ela se reflete na sociedade que temos hoje. Se não possuímos carros voadores, não viajamos no espaço, nem temos robôs ao nosso comando, os computadores mostrados no filme não são nem “o cheiro” dos que temos hoje, não há celulares, nem internet, mas cabines telefônicas onde se pode fazer vídeo chamada – pelo menos isso (rsrs) –, Ridley Scott, ao meu ver, não erra na decadência a qual essa suposta sociedade, de um distante 2019, está inserida e em completa consonância com a que temos hoje.

Blade Runner: o caçador de Androides, nos apresenta uma alegoria de uma sociedade que em tudo se perdeu por querer demais de si mesma. Uma sociedade que constrói humanos – ou “replicantes”, como eles gostam de chamá-los –, mas ao se assemelharem a Deus eles não dão às suas criações o direito ao livre arbítrio, ou a uma promessa de vida eterna, pelo contrário, esses  “replicantes” servem de escravos em colônias extraterrestres, e são programados para terem míseros quatro anos de vida total, não podendo formar lembranças sólidas, entendimentos, ou empatias suficientes para que se humanizem e assim se assemelhem aos seus criadores. Esses “replicantes” não podem viver entre nós, aqui na Terra, em nossa “antiga” sociedade, que nada mais é do que uma metáfora do que um dia foi um mundo prospero e que agora agoniza em seu sonho de grandeza, pois todas as pessoas que realmente podem construir algo de relevante no mundo partiram para colônias distantes, em meio às estrelas; o que sobrou foi um resto, que não serviu para um mundo futuro de esperança e novidade.

Quando seis desses “replicantes” se revoltam e voltam para a Terra, somos apresentados ao personagem principal da trama: Deckard, vivido por um jovem e visceral Harrison Ford. Cabe a Deckard, um Blade Runner (caçador de replicantes), encontrá-los e dar um destino final a eles. Nesse meio tempo, ele narra sua vida igualmente vazia e perdida de sentido em meio a uma cidade que não se apresenta menos desprovida de qualquer significado: Los Angeles é suja, úmida e habitada pela escória ou por humanos imprestáveis e não qualificados em todos os sentidos. Poucas vezes um filme foi tão sensorial quanto Blade Runner, quase dá pra sentir o fedor, o cheiro de suor e comida preparada na rua, o frio da chuva e a quentura-úmida dos pequenos hotéis e guetos de uma cidade em total decadência, que em tudo perdeu sua identidade e sua razão de ser.

Ao mesmo tempo, muito se pode compreender de uma sociedade que equipara os conceitos de “assassinato” e “aposentadoria”. E é justamente aí que eu considero Blade Runner tão atual, pois ele representa uma sociedade que começou negando valores e conceitos, os inverteu e depois os amenizou para enfim destruí-los. Não seria esse o grande mal de nossa sociedade, a amenização e a relativização de tudo? Quando um pedagogo pede a um professor não dar nota baixa a um aluno com a caneta vermelha, como se uma zero de verde fosse menos zero, não é uma negação da realidade através de uma disfarçada amenização? Quando aceitamos um fato de que um embrião não pode ser chamado ou aceito como ser vivo até determinado tempo de vida, não é isso que fazemos? Quando aceitamos que crianças toquem em um homem nu por simples “conceito artístico e estético” o que estamos fazendo senão negar, depois inverter e por fim amenizar, para destruir e, daí, acreditar que ‘bem’ e ‘mal’ são conceitos construídos e não algo verdadeiro, concreto e latente em toda criatura viva? Daí a máxima de que tudo é normal, ou não tão grave quanto aparenta? Não seria essa a personificação de um mundo sem Deus onde tudo se permite, se aceita ou se ameniza?

Muitos que não assistiram ao filme podem se decepcionar com seu clima “noir” e a pouca “ação” que se espera de um filme de ficção científica, isso porque tudo, em Blade Runner, é muito sutil e impossível de se compreender sem um mergulho tanto psicológico quanto filosófico em toda a atmosfera que ele nos apresenta. Por exemplo, os “replicantes” não voltam ao nosso mundo para dominá-lo, à maneira de Pink e Cérebro (rsrs), o que eles querem é o bem mais precioso que todo ser humano tem e muitas vezes pouquíssimos o aproveita: TEMPO. Eles querem mais tempo de vida, para amar, lembrar, sentir, viver... Querem ser humanos e não máquinas, querem viver o que não mais vivemos, aproveitar o que não mais aproveitamos, e sentir como nunca sentimos antes...Não para desperdiçar as suas vidas num turbilhão de orgias insanas, mas para fazer valer cada momento e dar-lhes seu devido valor. Isso é um soco em qualquer conceito moderno de mundo que podemos viver nos dias de hoje.

E por falar no mundo nosso de cada dia, não vejo alegoria melhor para ele do que o personagem de Sebastian, uma peça chave do filme e à compreensão da sociedade decadente e suja que ele nos entrega. Sebastian é o cientista, responsável por possibilitar a construção dos Nexus 6, esses “super-replicantes” que vemos nos filme, mas impossibilitado de deixar a Terra por sua condição física. E, por saber quem são os que permanecem por aqui, ou seja, os indignos e os dispensáveis, isola-se num apartamento onde vive com bonecos animatrônicos. Sebastian é um homem jovem no corpo de um velho, e uma mente de criança refugiada nas responsabilidades de um adulto que não tem outra maneira de dar significado à sua vida do que viver isolado em um mundo fantasioso que ele mesmo criou... ele é a pura personificação daqueles que vivem a vida digital mais do que a vida propriamente dita.  

E do conflito entre como os replicantes se enxergam e como os humanos os veem, cabe uma das análises mais poéticas do filme: a visão. Não ao acaso, a cena de abertura nos mostra o olho contemplativo de Deckard, observando a decadente sociedade em que vive. É assim que somos convidados também a ver, pela primeira vez, tal sociedade. É também através do olhar que o teste Voight-Kampff consegue descobrir quem é ou não replicante, num discurso de subtexto que carrega um enorme peso, uma vez que os olhos são a janela da alma. Logo, não seria ao acaso que Roy Batti (personagem de Rutger Hauer, e líder dos “replicantes” rebeldes), antes de matar o Dr. Eldon Tyrell (vivido por Joe Turkell), fura seus olhos. O encontro entre criador e criatura nos entrega a cena mais emblemática do filme, pois ao eliminar a visão de Tyrell, Roy está tirando o que o diferencia dos demais humanos ainda na Terra. O criador, então, morre como apenas mais um sem ver as maravilhas que sua criatura viu e lhe conta, como Deus mostrando a Moisés a Terra Prometida sem que esse possa pisar os pés: “Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. É hora de morrer”, diz Roy.

Ah, antes que eu me esqueça: o amor entre Deckard e Rachel (personagem da perfeitíssima Sean Young) é de longe um mero amenizador de toda angústia existencial do filme, pelo contrário: ele é um homem que viveu sua vida e suas memórias e, em algum momento de sua vida, ele se perdeu em todo esse significado; ela: alguém que vive uma vida e memórias inventadas querendo tirar um significado e uma vivência mesmo de algo que não é necessariamente seu, mas é tudo que ela tem. Não é à toa que eles vão viver longe do mundo caótico da cidade, onde podem aproveitar o pouco tempo de vida que lhes restam ao lado da única coisa que parece não ter sido criada pelo homem: a natureza. Deckard e Rachel vão viver a qualidade do tempo que lhes restam e não a quantidade deste...
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  Não sei se Blade Runner 2049 é tão bom quanto o seu antecessor, nem quis saber de nenhuma crítica até esta semana onde eu o assistirei, porém, sua existência me fez revisitar uma das maiores obras cinematográficas da história, pois sem ele não existiriam filmes como Matrix, Ex-Machina, e muitos outros; e o quanto que ele tem a nos mostrar e a nos ensinar do mundo em que vivemos e que cada vez mais se encaminha para a Los Angeles de 2019 por ele apresentada... e, acreditem, isso não é nada bom...




  

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