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O poeta Eurico Alves Boaventura, na flor de sua juventude (1909-1974)... |
Et
sensi, expertus sum non esse mirum
quod palato non sano poena est et
panis,
qui
sano suavis est, et oculis ægris odiosa lux,
quæ
puris amabilis.
Sto.
AGOSTINHO
No ano de 2008, o
romance Vidas secas, do alagoano de Quebrângulo, Graciliano Ramos,
completou 70 anos, merecidamente festejado como uma das maiores obras da
História da Literatura Brasileira. Graciliano encontra-se no centro de uma
tendência literária que se divide, historicamente, entre a celebração e o olhar
depreciativo – o Regionalismo; que, desde o exotismo romântico de José de
Alencar, e, não totalmente, de Visconde de Taunay, ao quase desprezo de
autores, tanto já veteranos, como João Ubaldo Ribeiro e Antônio Torres, a
contemporâneos de igual qualidade, tais quais Milton Hatoum, José Lins Passos e
Ronaldo Correa, acusando tal tendência de ser uma forte variante de “beletrismo
estético”, sofre severo bombardeio pejorativo.
O Regionalismo (e entenda-se aqui toda literatura que, desde a segunda metade
do século XIX, se direciona para o interior geográfico do Brasil, apresentando
uma série de aspectos muito próprios das comunidades afastadas dos grandes
centros urbanos, que vão desde o modo como declinam a minudências na descrição
de dados locais, à maneira como incorporam certos maneirismos lingüísticos), à
revelia de seus detratores, é responsável por muitas das melhores obras de
nossa Literatura, além de ser o pioneiro no desbravamento cultural de regiões,
até meados do século XX, desconhecidas do grande público leitor, como o Sertão
do Nordeste, os Pampas gaúchos, os canaviais próximos ao litoral nordestino, a
região cacaueira da Bahia ou a Amazônia; e isso se dá, ao mesmo tempo, pelo já
citado exotismo de alguns românticos, ou, através do realismo profundo, aliado
a uma verdadeira preocupação político-social e histórico-cultural, propostos, já
no fim do século XIX, por Franklin Távora, em seu célebre O Cabeleira.
Com a geração
neo-realista de 1930, o Regionalismo atingirá seu apogeu, através de obras de
indiscutível valor literário, como o já citado Vidas secas, além dos
antológicos Fogo morto, de José Lins do Rêgo, Gabriela, de Jorge
Amado, O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, A Bagaceira, de
José Américo de Almeida... Já o que me parece ser muito pouco comentado,
inclusive nos livros didáticos que chegam às mãos de milhões de alunos de todo
o País, com respeito ao Regionalismo, é a grande participação que a Poesia
assume nesse contexto; até porque, a linguagem poética, extremamente diversa e
subjetiva – abrindo-se a infinitas possibilidades de interpretação, e,
inclusive, a péssimas interpretações –, por mais que muitos a queiram anti-lírica
e objetiva, não se limitaria totalmente a quaisquer paradigmas, por mais
que os autores se dedicassem à tamanha proeza. Cabe dizer aqui, no entanto,
que, alguns, tais como João Cabral de Melo Neto, Ascenso Ferreira, Alberto da
Cunha Melo, tornaram-se famosos por trazer, à poesia, as mesmas propriedades
presentes nos romances ditos regionais. E o tão desconhecido do grande público,
quanto notável em suas aptidões de poeta, o baiano, de Feira de Santana, Eurico Alves Boaventura, que, neste ano,
completa seu primeiro centenário, e de quem recolho um dos melhores exemplos de
uma poesia no mais autêntico e perfeito sentido do termo Regionalismo:
Há uma douçura nos longes de um azul discreto.
A manhã desce pela serra,
uma doce, suave manhã adolescente.
Há um gosto de mulher nua pelo ar úmido de luz.
E as longas estradas esquecem-se de si mesmas,
numa indolência vaga, indefinida.
Mugidos de reses nos currais perto da vida adormecida.
Os meus pulmões cansados de civilização,
agora gritam como cabritos ágeis e vadios,
bebendo o ar puro da manhã de sol,
quando vem este perfume de rosa-amélia dos quintais abertos.
Nem anúncios de jornais, nem estrídulos de carros,
nem o drama angustioso de mocinhas para o trabalho,
nem o tédio bom das boemias doiradas, nem o rumor,
da vida encantadora da cidade, nada, nada...
A vila é um compêndio natural de moral e probidade
que vive da ignorância de viver, que é a felicidade afinal.
Manhã pura.
Salpicada de orvalho, atarantada, suja,
passa na douce manhã vilarenga, numa auréola de mosquitos,
a doidinha trazendo no chapéu braçadas de malua veludosa,
para lavar a louça das casas abastadas da vila.
Olho as estradas. Penso nas lindas mulheres que adormecem ainda,
lá pelas cidades grandes, depois das reuniões veladas.
Um juiz, para a vila pacata, não deve
nunca ter pensamentos assim. Comprometê-los-ão tais pensamentos.
* * *
Os caminhos perdem-se na boca escancarada do céu,
deitado sobre o horizonte lá longe...
E, na manhã doce como amora madura,
a pequena vilazinha, sem ninguém, descuidada, ressoa.
I
Meu primeiro contato com
a poesia de Eurico Alves Boaventura
não aconteceu de uma forma, diga-se, comum... diria melhor, deu-se de uma
maneira inusitada, repleta de grande perplexidade, como, comumente, se
dão as grandes descobertas.
A pouco mais de 30 km de
distância de Feira de Santana, para quem segue rumo ao norte da Bahia pela
rodovia BR 324, encontra-se, aos pés de um intrépido quão majestoso inselberg,
tão grande e magnífico quanto a Serra de São José das Itapororocas que enchia
de esplendor e susto o jovem Eurico, a sobrepor-se sobre
aquele pedaço de agreste nordestino, encontra-se o município de Tanquinho, onde
morei por quase dez anos e, por lá, vivi alguns dos melhores e mais instrutivos
anos de minha infância e pré-adolescência, num ambiente muito semelhante ao
qual nascera o poeta feirense. Lá, numa praça imediata aos portões da cidade e
um pouco atípica para os “padrões interioranos", que o tempo e descaso,
até então, não consumiram de toda, se é possível ler, em letras garrafais, as
seguintes palavras:
VÊ-SE QUE,
EM TODA PARTE,
POR ONDE SE
OUVIU UM ABOIO VESPERTINO,
PARA O
REPASTO RUDE DE UMA TROPA,
QUE SE
ACENDEU A TREMPE,
CAIU A
SEMENTE DE UMA CIDADE
OU VILA
SERTANEJA.
e, onde, um pouco
abaixo, também, se lê:
Eurico Alves Boaventura
Li, àquele tempo, estas
palavras, pouco delas entendi, e nada, absolutamente nada, sabia de seu autor,
além do nome que, à parede da praça, ali, se escrevia. Em minha mente e coração
de criança, todavia, uma forte curiosidade se me fazia inquieta: como, mesmo sem
entender direito uma frase ou seu propósito, poderia saber existir, dentro
dela, beleza e intento? É-me praticamente impossível descrever este
estranhamento, mesmo se passado tanto tempo: primeiro, pela minha ignorância de
menino; segundo, pelo encanto que, dela, emanava. Por menos que eu fizesse
idéia do significado de algumas de suas palavras, e menos ainda de seu
propósito, era óbvio que o seu autor falava de coisas de meu convívio, pois
àquela época, eu podia precisar de um dicionário (o “Pai dos Sábios”) para
descobrir o que queriam dizer trempe e repasto, mas vila e
sertaneja eu sabia, e as vivia muito bem; o que eu não poderia saber era
como dizeres, aparentemente, tão simples e, até então, despropositados,
traziam-me uma inquietude comum apenas àqueles que se põem diante do Mistério e
da Graça; e, por mais inútil que me fosse abordar as mais velhas e distintas
pessoas daquele lugar, na busca de uma explicação para aquelas palavras ou,
pelo menos, o porquê de elas, ali, se encontrarem, sabia que nelas se
encerravam coisas importantes, história e estórias diversas, muitos e muitos
sentidos...
(Nunca mais li esta
frase e nem sei se, realmente, a transcrevi integralmente, pois há anos não vou
àquela cidadezinha e, como tantas coisas que por lá vi, vivi e deixei, ela
mora, quase que de favor, em minha modesta e já cansada memória.)
Anos mais tarde,
solitário sobre uma das mesas da Universidade onde estudei e me formei, eis um
pequeno livro cinza, de capa simplória e mal diagramada, onde lera: POESIA
e, um pouco acima, em diminutos caracteres azuis, eurico
alves, impresso pela Fundação das Artes e
Empresa Gráfica da Bahia e trazia a organização dos textos, a pesquisa, a
seleção dos poemas e as notas por Maria Eugênia Boaventura, que, mais tarde
viria a saber, era uma das filhas do poeta, a qual, através de um árduo e
admirável trabalho de pesquisa, “garimpara”uma grande quantidade de periódicos,
manuscritos e correspondências, num “processo bastante pessoal”, como ela mesma
afirma na nota à edição, organizou esta obra, levando sempre em conta o
planejamento do próprio pai, que, por uma esquisitice ou outra, nunca publicou,
em vida, um único livro de poemas, o que não impediu que tamanha tarefa não
tivesse suas compensações, pois, particularmente, não conheço outro trabalho
sobre Eurico Alves Boaventura que
apresente melhor seleção, nem maior representatividade para seus poemas, e é
exatamente ele, e só ele, que me guia à composição destas páginas... Ah, Santo
Agostinho, o livro estava lá; tomei-o e li.
Epifanias à parte, não
precisei mais do que uma leitura de seus poemas para saber que, naquele
livrinho, encontrava-se os versos de um dos melhores poetas dos tantos que li e
uma das minhas mais inventivas influências. Foi de imediato que reconheci e
admirei a beleza de vocábulos simples e de locuções que me eram tão
costumeiras, e de rever, numa tão agradável poesia, uma infância, uma vivência
e uma realidade que eu, também, experimentara, embora o poeta tenha morrido
quatro anos antes de eu nascer, e, quase um século, separasse o nosso tempo de
travessuras; uma realidade composta de uma cidade grande, tumultuada e
espantosa que, a não podendo entender ou suportar, abandona-a para mergulhar
num mundo interiorano, sentimental, melancólico, repleto de estórias,
tradições, lendas, vaqueiros devidamente ornados, pequenas praças, caatingas,
velhos e novos solares ora pomposos ou abandonados, bons e antigos hábitos,
tranqüilas capelas, igrejas suntuosa, fé verdadeira e inominável, pessoas
alegres ou envoltas em sua solidão e saudades, um perturbado desejo de
desvendar o desconhecido... Assim, li, e me revi, na poesia deste feirense:
duas vidas, outro tempo, e, de certa forma, o mesmo mundo.
II
A poesia de Eurico Alves Boaventura é um rico
registro de um passado que teima existir, seja na memória de quem o viveu, ou
em distantes localidades do interior nordestino; ela nos serve de amostra para
a sua maneira irreverente e espontânea de ver, captar e criar, sem medo ou
disfarces, um eu que “parecia sofrer sorrindo”, como no dizer de seu
amigo, e parceiro, Carlos Chiacchio, e, bem longe da poesie purê
de um Mallarmé, e de outros tantos despojos vanguardistas, sua produção
impressiona por construir uma poesia onde as palavras se desprendem, muitas
vezes, do raciocínio e a música das sílabas não ecoa mais que seus significados
habituais. São versos que se compõem ao léu da inspiração e a favor das
idiossincrasias, do regionalismo e da tradição ibérica. Isso, aliás, leva-me a
comentar uma característica controversa de Eurico Alves que é a sua facilidade em assimilar influências,
o que, em seu caso, vão da confessável leitura de Émile Verhaeren à perceptível
influência de Walt Whitman, da admiração por Manuel Bandeira à correspondência
com Jorge de Lima. Tal particularidade, comum a todo iniciante e, de certa
forma, útil a um poeta de grande porte, como é o caso de Eurico,
constitui-se, infelizmente, em seus Poemas Metálicos, como um
grande defeito. Os poemas que compõem esta primeira fase de sua obra poética
nada mais são que exemplos bem elaborados de um artista à procura de caminhos
próprios, exercícios verborrágicos de uma obra tão jovem e incerta quanto o seu
autor, àquela época, e, por isso mesmo, não passam de tropeços comuns na longa
caminhada rumo ao amadurecimento que não se lhe tardaria chegar, mas não seria
nos anos de 1926 a 1932.
À medida que se volta a
quantas direções lhe é possível, Eurico Alves
pouco se afastará das fronteiras do simplesmente imitável. Acometido pelos
modismos de sua época e das influências mais comuns e imediatistas, não iria
muito além do “lugar-comum” e do “meramente esperado”, e, embora não fosse um
defeito único do poeta Eurico Alves,
em muitíssimo pouco foi além do que outros, acometidos pelos mesmos “erros de
tendência”, como Fernando Pessoa ou Jorge de Lima, alcançaram. Não fosse o
grande aparato verbal, aliado a uma perspicácia elegante e expressiva, que, em
muito, servem para minimizar os excessos descritivos e gongóricos que, muitas
vezes, verdade seja dita, são conseqüências da busca por uma linguagem moderna,
a qual o bardo feirense, como a grande maioria de seus contemporâneos,
entrega-se apaixonadamente. Seus primeiros poemas não passariam de meros
exercícios inglórios do mais puro artificialismo.
Mas, é exatamente nesta
paixão, nesta entrega sem recato, nesta peculiar romantização de temas do
Modernismo, algo imperdoável para muitos leitores, críticos e colegas de ofício
coetâneos seus, que advém o que de melhor existe nestes poemas de iniciante,
onde a chama de um talento indomável começa a fazer-se viva. Isso, aliás, não
demoraria muito, pois, já em seus Poemas, produzido entre os anos de
1928 a 1937, sua obra tomaria a proporção e a qualidade dignas de um talento
antes provável, agora, inquestionável. Ao escrever:
Vai pelo campo a fora
abrindo pautas intermináveis
para o poema da fartura que a chuva
escreverá.
por exemplo – o grifo
é meu –, Eurico Alves vai muito
além da criação de uma série de jogos verbais, ou de uma contínua
sucessão de imagens ao gosto da época, que se apagarão
quando o poema, no silêncio, precipitar-se. Através de versos como estes, o
“poeta baiano” relembra-nos que, de todas as artes, como bem acentuou César
Leal, em Os cavaleiros de Júpiter, ao referir-se à lírica de Carlos Pena
Filho, a Poesia “é a que mais profundamente deixa raízes na alma”, que serão
mais profundas se o poeta as erige com o adubo da tradição.
É uma pena que, no
primeiro ato de sua obra poética, momentos como os transcritos acima não sejam
constantes. Todavia, no capítulo que se segue, acontece exatamente o contrário,
como, por exemplo, quando escreve, já em 1934, genialidades deste tipo:
Alteia teu braço, serenamente,
orgulhosamente
e deixa que o sol coroe de música a tua taça.
Bebe alegre, depois, o licor do teu
sofrimento...
Mas, faze como todas as cigarras:
duvida da tortura e do padecimento,
pensa que não tens sangue e nem és feito de
carne,
e canta como o sol os teus versos de ouro e luz.
Sob a alegria divina dos teus risos doirados,
que sob esta música, a dor se diviniza...
A poesia de Eurico Alves Boaventura tornar-se-á
grande, exatamente, com a eliminação de uma linguagem poética de caráter
modernista ou, pelo menos, àquela que se remete aos maneirismos do Modernismo
paulista de 1922; e, quando esta retorna a uma simplicidade e a um
coloquialismo que alude diretamente às reminiscências de seu autor, todas
ligadas ao cotidiano ensimesmado das pessoas da roça, prova, na prática, a
afirmação de T.S. Eliot de que, “a criação artística é sempre um complexo
retorno às velhas formas, influenciada por novos estímulos originados de fora
do campo das artes”. Isto se dá porque, num sentido mais amplo, e, ao mesmo
tempo primevo, a arte nunca deixou de “ser um serviço”; assim sendo, não
constitui um elemento isolado e que a si mesmo alimenta; ela se liga à vida de
seu autor e ao mundo que o rodeia, e, por que não, que, também, existe dentro
dele; e, como já disse, Eurico, em sua poesia, é prova
disto, pois, seguindo este raciocínio, veste-se de uma autenticidade que
dificilmente encontra similaridade (os melhores exemplos de uma autenticidade
assim, que eu me lembre, estão em Ariano Suassuna, em seu monumental Romance
d’A Pedra do Reino, na poesia de Ascenso Ferreira, que desfrutava, entre
tantas coisas, da admiração do poeta feirense, ou, ainda, em Marcos Pérsico e
seu Era uma vez no Sertão, para termos um exemplo mais local e
contemporâneo), revelando elementos estruturais que desencadeiam uma vigorosa
consciência artística e uma verdadeira identificação com o mundo e a vida
sertaneja, sem afogar-se no naturalismo insípido, ou num regionalismo
panfletário, nem recorrer a um romantismo nostálgico que, na contramão do
Modernismo, levaria sua obra a um pieguismo insuportável.
O que se verá, então,
principalmente a partir dos anos 30, principalmente em poemas como A canção
da cidade amanhecente, Canção para a capela de Nossa Senhora dos
Remédios, Cantiga simples, Elegia do solar abandonado, Poema
leve da rua Barão de Cotegipe, é a captação da essência espiritual de um
povo simples – mais do que isso... de uma cidade inteira que, mesmo impregnada
por tantos sonhos de grandeza, teimara (e, até hoje, teima), por atavismo, a
agarrar-se a uma tradição interiorana sem nenhuma angústia ou culpa profunda.
Revelar a essência misteriosa das coisas e não imitá-las simplesmente é,
segundo Aristóteles, a grande função da arte. Eurico, a
partir dos poemas acima citados, como ninguém, aprendeu tal lição, pois
conviveu tanto com um Sertão de vaqueiros quanto de caminhões e buscou, tanto
na vida cotidiana, quanto através de seu eu-lírico, preservar este mundo
de aboios, roupas de couro e tropas de gados.
No dizer de Agripino
Grieco, Eurico Alves seria uma
espécie de “filigranista lírico”, um sentimental à antiga... E é exatamente
quando a docilidade e o lirismo profundo se lhe apoderam que a sua poesia ganha
a mais bela e abrangente dimensão. Convenhamos que a metáfora do
“filigranista”, principalmente quando associada à idéia de “lírico à moda
antiga”, é simplista, de muito mau gosto e de pouca inteligência, entretanto,
Agripino acerta ao afirmar que os mais belos poemas de Eurico
Alves são exatamente aqueles em que põe, no papel, “com
toda docilidade, aquilo que o coração lhe vai ditando”. Nosso poeta centenário
é um grande conhecedor do mundo onde nasceu e cresceu, presenteando-o com
tantas lembranças e inspirações, quanto a uma poética que se remete da mais
meiga e sutil lembrança de menino a mais pura tradição ibérica, que encontram,
em Cantigas de bem dizer e Baladas antigas, sua melhor expressão.
Eurico conhecia bem a poesia popular medieval, a longa
marcha que essa percorreu até chegar às terras tupiniquins, e sua contribuição
para a nossa poesia popular, que ele conhecera tão bem, já convertida à alma
brasileira nas feiras do interior, através dos romances de cordel e dos desafios
entre violeiros; também as sentia como poucos. Mas era um apaixonado pela
lírica moderna e sua ousadia. O resultado para um caso de amor tão peculiar,
que envolvia duas paixões tão fortes e tão aparentemente insanas, é uma fusão
que se faria imprescindível para a boa qualidade de sua obra.
Não se resguardando da
atitude de um poeta maior, Eurico Alves
Boaventura, à maneira de um Manuel Bandeira – sua melhor referência e maior
admiração –, pensou, elaborou e produziu uma poesia, como poucas, singular e,
em diversos momentos, grandiosa – o mínimo que se espera de quem se almeja como
tal – onde se mostrou capaz de abranger, com maestria e perspicácia, as mais
diversas direções históricas e estilísticas, de refletir, constantemente, algo
de transcendental em relação ao mundo onde se encontra e de onde surgiu não
importando se de forma objetiva ou onírica, de poder falar de coisas simples,
ou complexas, sem mascarar-lhes a essência, nem lhe desnudar os artifícios, de
se rebelar contra padrões e instrumentos de estilos tomados pelo desgaste, mas
de sua poesia não ter, em si mesma, um fim, ou nenhum outro propósito que não
ela mesma, de sua obra não pertencer a uma determinada época, mas sim a todas,
como bem resumiu Bem Jonson, ao referir-se ao legado literário de seu amigo e
William Shakespeare. É o próprio Eurico Alves,
aliás, que nos dá uma boa síntese deste enlace literário ao afirmar que não
existem passados maiores nem melhores do que outros, pois todos são brilhantes
a partir do momento em que “construíram seu tempo, projetaram um presente e
deixaram margem para o futuro”.
Todavia, nem o próprio Eurico poderia negar que nada o aproximou mais de um poeta
maior do que a negação dos vanguardismos de sua época que ele, de livre e
espontânea vontade, fizera – por mais que tenha tido um flerte temático
e estilístico com o progresso urbano deslumbrantemente futurista –, tornando-se
um rebelde às avessas, cobrindo-se do véu da tradição e do regionalismo
idiossincrático, o qual se somou a novos elementos, tanto no estilo de época
quanto aos trazidos, ou surgidos, de sua personalidade, e, crendo quase que
exclusivamente no poder das palavras e de suas expressões, elaborou uma poesia
tão sensorial, e, em sua maioria, sinestésica, quanto espiritual; tanto
objetiva quanto subjetiva; tão hodierna quão tradicional, simples em sua
apresentação e complexa e reflexiva com relação ao seu conteúdo. Não é à toa
que, por mais que não tenha publicado, em vida, um único livro de poesias, nem
freqüentado tantos periódicos quanto queria ou podia, tenha uma obra bem mais
agradável, profunda e sensível se comparada à produção de seus outros colegas,
membros e colaboradores da revista Arco & Flexa.
Por mais que tal atitude
não seja bem vista pela grande maioria de nossos críticos, quase toda amante
dos movimentos de vanguarda, e que, de certa forma, o prosaísmo de seus versos
espante um bom número de leitores desavisados e mal costumados, por
conseqüência, principalmente, da falta de intimidade com certas “expressões locais”,
a grandeza da poesia de Eurico Alves
Boaventura só acontece com o abandono da linguagem futuristicamente
verhaereniana para uma poética onde imperam o regionalismo das idílicas vilas
sertanejas e a tradição poética, porque toda vanguarda, como nos adverte César
Leal, novamente, em Os cavaleiros de Júpiter, só pode se dar como uma
ação realmente espiritual no campo da poesia, como de quaisquer formas de arte,
após sofrer os efeitos do tempo, depois de apagados todos os encantos mais
imediatos, passados os choques teóricos e polemistas; quando longe estiverem
todas as hordas de “revolucionários” movidos pela “frustração” e pelo
“ressentimento” e, principalmente, quando os carentes de atenção e desprovidos
de talento forem postos de lado ou mergulharem no esquecimento que lhes é
merecido. Aí sim teremos aquilo que é realmente verdadeiro e digno de expressão
e confiança, cabendo, então, ao poeta, abraçar o que deste modismo lhe é útil
ou optar por ficar com as velhas e seguras doutrinas. No caso de Eurico Alves Boaventura, ao abandonar
artesanatos como:
Ralam o ar, rodopiando
em roucos ronrons rudos,
as
ruivas, rúbidas rodas raivosas, rápidas, ao fogaréu ...
Negras
fauces monstros de fornalhas, abocanhando as sombras,
num
doido torvelinho desordenadamente bruto,
de
permeio às turbinas, aos êmbolos, às válvulas e a loucura
de
mil garras de fogo — as alavancas víboras —
no
vai-e-vem, vem-e-volta,
subindo,
descendo, afogando-se na fofa negrura do óleo chiando ...
Tatala,
lá fora, ao dorso polido das chaminés,
a
crespa asa rascante e do grande morcego chagado
a
noite.
Correm
escuros arrepios no alto céu de ferrugem,
mordendo
a usina ...
Mas,
a um canto, possante, brutal, estouvadamente,
entre
o delírio de carótidas veias e artérias de aço,
bates,
rebates, fremes, latejas, precípite,
em
cólera chispando,
rudo,
rouco, raivoso, rasgando a noite,
—
dínamo da fábrica — meu desvairado coração pulsando!
para a elaboração de
grandes esculturas como esta:
Estou tão longe da terra
e tão perto do céu,
quando venho de subir esta serra tão alta ...
quando venho de subir esta serra tão alta ...
Serra
de São José das ltapororocas,
afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificado no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens
tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.
afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificado no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens
tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.
Os
bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.
Manuel
Bandeira, a súbida da serra é um plágio da vida.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro
Bebo leite aromático do candeial em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
e na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro
Bebo leite aromático do candeial em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
e na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.
Aqui
come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.
Que
poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.
Feira
de Santana! Alegria!
Alegria
nas estradas, que são convites para a vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina das vaquejadas, que levam para a vida
e arrastam também para a morte!
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina das vaquejadas, que levam para a vida
e arrastam também para a morte!
Alegria
de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!
Que
lindo poema cor de mel esta alvorada!
A
manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.
Manuel
Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana
e venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados das noites eternas
e venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados das noites eternas
venha
ver como o céu aqui é céu de verdade
e o tabaréu como até se parece com Nosso Senhor.
e o tabaréu como até se parece com Nosso Senhor.
percebemos quanto é
categórica a afirmação de que não se pode ser autor de uma poesia, que se diga inovadora,
sem Homero ou Virgílio, sem Dante ou Camões, sem Shakespeare ou Bocage, sem
Wordsworth ou Castro Alves, ou, até mesmo, sem Baudelaire
ou Manuel Bandeira. Sendo assim, o Jorge Matheus de Lima, só por motivo de
exemplo, de Poemas Negros, descobriu o Jorge de Lima de A túnica
inconsútil, e o Eurico Alves
Boaventura – que admirava a poesia do bardo alagoano, mesmo sem ser, como ele,
um dominador, por inteiro, de todos os mecanismos de expressão poética (pois
Jorge de Lima é, também, um exemplo de poeta maior) –, descobriu o Eurico Alves de Poemas sentimentais,
após abandonar o Eurico do já citado Poemas metálicos.
Do contrário, tanto um como o outro, não iriam além do vanguardismo panfletário
e magoado, e acabariam por se condenarem a um degredo intelectual típico de
quem não foi além daquilo que lhe fora incumbido fazer, mas, novamente citando
César Leal, em seu imarcescível Os cavaleiros de Júpiter, “resta-nos
saber que, historicamente, só os verdadeiros poetas fracassam nos movimentos de
vanguarda, ao criar aquilo que não haviam intentado” e é daí que nos surge, em
sua totalidade, a grande poesia de Manuel Bandeira, de Jorge de Lima e, claro,
de Eurico Alves.
III
É uma pena que a imensa
maioria de nossos críticos, ainda, veja autores como Eurico
Alves Boaventura, Jorge de Lima, Murilo Mendes e até
mesmo Mário Quintana, Dante Milano e Bruno Tolentino, por exemplo, como
produtores de uma visão “arcaizante”, “alienada” e “pequeno-burguesa”, frutos
de uma “consciência transferida” e de uma poética que só será vista, por tal
crítica, como simplista e meramente acadêmica, pois, como já nos ensinara Esopo
há tantos e tantos séculos, é costume do tolo, que almeja aquilo que se sabe
incapaz de conseguir, desdenhar do que tanto deseja. Este tipo de reducionismo
não atinge, nem jamais atingirá a qualidade de tais escritores, embora, muitos,
acabem por amargar, como é o caso do Eurico Alves, um longo período de ostracismo injusto por conseqüência
da burrice, do despreparo, do descaso e da cegueira ideológica de muitos cujo
ofício, a reputação e a boa posição não deveriam permitir o uso tão bem
colocado de tais adjetivos; mas nada que o grande talento inerente a tais
artistas não supere com o tempo que é o melhor dos críticos, porque só ele,
como disse Santo Agostinho, é capaz de dar paz a toda dor.
Infelizmente, como já
disse, repito e reitero, a grande maioria de nossos críticos é parva,
preguiçosa e aproveitadora e, sendo ela, quase toda marxista, tais adjetivos só
não lhe cabem muito bem, como podem ter o seu valor e significados
quadruplicados. Porém, como certa feita afirmou Bruno Tolentino, “guardamos
nossas jóias e nossas cartas de amor com o mesmo deslumbramento, mas em estojos
separados; e quando os vamos abrir, no primeiro deles achamos exatamente o
mesmo valor, o mesmo brilho, realçado pela pátina do tempo; no outro,
encontramos a tinta esmaecida, o papel amarelado, em suma, a palidez desbotada
daquilo que tanto amávamos, que um dia nos resumiu e que, de repente, se tornou
quase irreconhecível, quase ilegível, doce apenas como a vaga lembrança da
emoção de um tempo que se foi como um assovio na noite”...
(Os grandes poemas são
como estas jóias, que com maior ou menor tamanho e valor, intentam-se contra a
mão do tempo; e eu gosto de pensar que, entre tantas jóias, há o pequenino
diamante da poesia de Eurico Alves
Boaventura fulgurando sobre o chão das falsas críticas, as cinzas das vanguardas
e o pó do marxismo.)
Enfim, se existe algo de
grande e sincera importância a dizer sobre Eurico Alves Boaventura, algo que possa ir muito além de qualquer
crítica que se possa fazer com respeito a sua obra, é a obvia certeza de ele
ser o maior poeta da história de Feira de Santana, um dos melhores poetas da
história literária da Bahia e um grande poeta brasileiro, mesmo sem o
eruditismo e o Formalismo de um Godofredo Filho (só para ter, novamente, um
exemplo local), sem a profunda herança de tradição clássica de um Jorge de
Lima. E, independentemente de a sua poesia não contar, até hoje, com uma edição
e uma crítica que façam justiça à grandeza que lhe é inata, certamente sua obra
reza entre as mais bem realizadas de toda a nossa Literatura... Poesia essa tão
imensa e verdadeira que é capaz de, passados tantos anos, tantas leituras (dela
e de outras tantas de quantos poetas pude ler e compreender), trazer-me, ainda,
o mesmo espanto, mistério e beleza daquelas palavras que, quando eu menino, me
encantaram
tanto.
Feira
de Santana, de 04 a 27 de junho de 2009.
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