Da direita para a esquerda: Cláudia Cordeiro, Walter Ramos, Gustavo Felicíssimo e Silvério Duque |
ONTEM, NA ACADEMIA
BAIANA DE LETRAS, FOI LANÇADO O LIVRO CONTOS
DE CONTAR, DO POETA ALBERTO DA CUNHA MELO, EM COMEMORAÇÃO AOS SEUS 70 ANOS.
LÁ, TIVE O IMENSO PRAZER DE DIVIDIR A MESA COM A SRA. CLÁUDIA CORDEIRO (ESPOSA
E RESPONSÁVEL PELA OBRA DO ALBERTO), O EDITOR WALTER RAMOS E COM O POETA E
AMIGO GUSTAVO FELICÍSSIMO, UM CULTUADOR DE SEU TRABALHO, POR ASSIM DIZER. O
TEXTO QUE SE SEGUE É A TRANSCRIÇÃO, NA ÍNTEGRA, DE MINHA FALA:
***
ALBERTO DA CUNHA MELO: POETA MAIOR
por Silvério Duque
Que ninguém é profeta em sua terra
– vá lá – isso é uma grande verdade, mas nem sempre quer dizer que tudo seja
desvantagem; eu, por exemplo, nunca falei na Academia de Letras de Feira de
Santana, minha terra tão amada e, às vezes, um pouco ingrata para comigo, e, de
repente, vejo-me aqui, na Academia Baiana de Letras, conhecendo uma série de
poetas e articuladores que tanto fizeram e fazem pela arte e pela literatura,
tanto de nosso Estado quanto a de nosso País, os quais, diga-se, tenho a mais
profunda admiração, aquele tipo de sentimento de amizade de que tanto filosofou
Aristóteles. E é em meio a este caloroso clima muito mais de fraternidade, do
que de gélido espírito academicista, que me proponho a falar da poesia de
Alberto da Cunha Melo.
Foi, literalmente, pelas mãos de
um amigo querido, o crítico Jessé de Almeida Primo, que os recebera do também
Bruno Tolentino, grande amigo e admirador do poeta pernambucano, que li os
primeiros esboços de Yacala, um de
seus maiores livros e uma das mais bem sucedidas narrativas de nossa
literatura, num pequeno códex
encadernado e datilografado pelo próprio autor, o que, para mim, já mostrava o
cuidado e o capricho que, em tempo, revelar-se-iam em sua poética.
Foi desta forma que conheci os
versos de Alberto, sob as circunstâncias as quais todas as grandes poesias se
nos chegam: como uma chuva repentina num domingo de pique nique. Foi assim que
a minha admiração pela obra de Alberto da Cunha Melo se fez diante de meus
olhos: como o grande milagre que toda poesia é, sem nunca mais me libertar
daquela emoção que só quem se sabe diante de algo realmente grandioso
reconhece.
Os grandes poemas, como os de
Alberto da Cunha Melo, têm essa capacidade, ou seja, a de nos arrebatar para
outro estado de consciência e de perplexidade.
Com a poesia de Alberto não
poderia ser diferente, pois, para mim, sua obra sempre sintetizou a força e a
segurança da tradição com a versatilidade e a engenhosidade empolgante das
produções mais atuais... e atuantes. Ela tanto se presta à reflexão temática,
bem como à multiplicidade técnica, e por isso se faz digna tanto dos grandes e
antigos quanto dos novos mestres. Seja orando
por seu poema ou a refletir schopenhaureanamente num antigo escritório da Mesbla, foi-me muito fácil reconhecer
que um poeta tal qual Alberto da Cunha Melo não buscaria a redenção pelo humor
ingênuo, muito menos pela liberdade irresponsável da total falta de regras,
como se convencionou entre a maioria de nossos bardos desde 1922, e sua herança
maldita. Seus poemas são como uma grande e continua elucubração sobre muitos
dos temas mais caros à humanidade, e é sempre com muita humanidade que eles se apresentam ao público leitor. Mesmo
salvaguardados por uma espeça camada de erudição, seus versos fluem sobre os
diversos conflitos éticos, morais e psicológicos de que costumam falar, sob o escopo
de uma linguagem que se dirige a todos.
Daí eu penso que uma poesia assim
só pode ser uma poesia conservadora, mas – permitam-me um imediato
esclarecimento – não aquele conservadorismo preso à mimese paupérrima ou à
total minimização de ideias e temas outrora grandiosamente trabalhados. A
poesia de Alberto da Cunha Melo é um dos exemplos mais novos e mais perfeitos
de valorização daquela que é a peça mais importante de toda poesia: a Palavra.
E, antes que alguém aqui considere
minha declaração uma “pérola” da obviedade, é sempre bom lembrar que, nos
últimos quarenta anos da história de nossa poesia, a desvalorização de seu
elemento principal foi algo sumariamente propagandeado e seguido com o mais feroz
afinco, da mesma maneira que, mesmo criticando os antigos poetas, os quais viam
nas artes plásticas um modelo de elaboração a ser seguido pelos donatários da
literatura, cobriram-se da mesma desculpa da maioria dos supostos pintores
abstratos ao se utilizarem do falacioso argumento da não necessidade da
figuração para esconder sua total falta de habilidade tanto de técnica quanto
de talento propriamente dito.
A palavra, na poesia de Alberto da
Cunha Melo, entretanto, volta a ganhar aquela profundidade de significados que,
desde Cabral e Drummond, e com a exceção de Bruno Tolentino, não se ouvia ecoar
a algum tempo na maioria de nossos poetas que, com a desculpa de um sintetismo
necessário ao mundo veloz e desafiador em que vivemos, precisava falar rapidamente
ao tempo que imprimia em seu leitor uma gana de impressões indeléveis em sua
mente tão ocupada, todavia, o resultado que se via era um emaranhado de
vocábulos dispersos em versos soltos e descompassados que mais confundiam e
enojavam que ensinavam ou traziam alguma impressão no mínimo agradável. Mas
Alberto da Cunha Melo da vazão a essa ideia e a faz funcionar, não porque é um
moderno melhor intencionado e sim porque é um técnico, ao mesmo tempo que se
mostra um sensível observador do mundo e das inúmeras oposições as quais esse
mundo se presta e, à sua maneira, evidentemente, um conservador.
Conservadorismo que amalgama uma série de elementos primordiais que, trazida do
passado, tem o papel de alicerçar novas e diversas maneiras de se compreender o
mundo a se abrir novíssimo e gigante a cada época, a cada novo dia para
qualquer poeta. É aquele conservadorismo que estava tanto em Pessoa quanto em
Bandeira, em T.S. Eliot e Carlos Drummond, Auden e João Cabral de Melo Neto...
mas jamais se encontrou em Mário ou Oswald de Andrade, muito menos nos irmãos
Campos ou naqueles 26 poetas de um hoje
que nunca aconteceu, como queria a Heloísa Buarque de Holanda.
E digo mais: Alberto da Cunha Melo
é um poeta formal (e repito isso com o
mesmo tom de quem revela uma verdade incontestável, pois foi assim mesmo que me
alardeou o Bruno Tolentino, aqui mesmo, em Salvador, entre uma mariscada e uma
boa conversa, há alguns anos). Mas como isso se elabora dentro de qualquer
poeta é a grande questão... Infelizmente, a grande maioria dos leitores, mesmo
os mais preparados, entende forma
como uma elaboração simplória de versos, quando, na verdade é o resultado da
elaboração interior de cada poema.
Sabendo disso, Alberto da Cunha
Melo vai além do mero formalismo; ele é um criador de formas, da Retranca – por pior ou simplesmente
“dissonante” que este nome me soe aos ouvidos –, para ser mais exato, e criar uma forma é muito mais que inventar
uma medida; é a realização de um conteúdo apropriado ao ritmo, à rima e,
sobretudo, à ideia contida nos versos. E isso se dá de uma maneira muito
próxima do filosofar, até porque tanto a poesia quanto a filosofia nascem do
mesmo principio: o da perplexidade. E
se nenhuma filosofia que se preze afirma qualquer coisa sem verificação,
confirmação ou agravamento, a poesia não faz diferente, todavia, contrariamente,
não tenha um compromisso em dizer ou muito menos provar uma verdade. Embora a
poesia apresente um grau de objetividade (sim, objetividade), que pode se dar
ao luxo de não apresentar provas ou argumentos, quando muito um exercício de
estilo, e a forma em que o poema se apresenta passa a ser o seu próprio
argumento, por isso a poesia é o uso demasiado e perfeito da palavra, mas sem
se voltar diretamente a um leitor específico, e, dessa maneira, falando a todos
ao criar, agora sim, a subjetividade que lhe é essencial e sempre peculiar.
A poesia é elaborada para dizer
algo que à própria forma se apresenta, e Alberto da Cunha Melo sabe disso, sabe
que a forma é calculada para dizer algo que não se vê à primeira vista no
texto, é seu caráter mimético; essa característica é intrínseca a qualquer
texto que se diz poético, cada ritmo, rima e distribuição de um poema é a
contrafação de algo que nele se encontra e dele se apresenta. Disso se entende que toda poesia é
necessidade de transbordamento e a forma é o meio pelo qual este
transbordamento escorrerá. Uma das missões que cabe ao poeta é a de não se conter; dessa maneira, não há
dúvida de que o poeta é um possuidor daquela “sã loucura” comum tanto aos
santos como aos educadores e que conhecemos pelo singelo nome de vocação: de fazer aquilo que deve ser
feito; que se espera que seja feito, mas poucos, verdadeiramente, propõem-se a
fazê-lo.
E digo mais: muito embora senhor
de seus versos, Alberto nos faz relembrar que há uma lei que antecede o próprio
ato de criar um poema e a relação que estes poetas têm com esta lei
distingui-os muito intensamente dos meros coladores de verso. E muito me
alegrou quando, da primeira leitura da poesia de Alberto, ver que este poeta
também sabia a quem, e como falar, ao agradecer por seu notável engenho e sua inigualável arte:
Senhor, nesta manhã de outubro,
ainda com o jeito de quem ia
reiniciar longa viagem,
meu poema chegou ao fim.
Agora todo meu trabalho
é procurar uma palavra
que te agradeça humildemente
todas as outras que me deste.
Entretanto, nem mesmo isso,
posso sozinho conseguir:
Dá-me, Senhor, essa palavra,
antes que chegue o último verso.
Que ela se espalhe como as brisas
dentro das minas, de repente,
e una-se sólida na hora
em que apertar a tua mão.
Quero morrer, quero alcançá-la,
e já começo a persegui-la
como se fosse uma serpente
que fugisse com minha morte.
ainda com o jeito de quem ia
reiniciar longa viagem,
meu poema chegou ao fim.
Agora todo meu trabalho
é procurar uma palavra
que te agradeça humildemente
todas as outras que me deste.
Entretanto, nem mesmo isso,
posso sozinho conseguir:
Dá-me, Senhor, essa palavra,
antes que chegue o último verso.
Que ela se espalhe como as brisas
dentro das minas, de repente,
e una-se sólida na hora
em que apertar a tua mão.
Quero morrer, quero alcançá-la,
e já começo a persegui-la
como se fosse uma serpente
que fugisse com minha morte.
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Sentimental ou racional, erudita ou popular,
formal ou aparentemente livre (porque, no fim, não há poema livre para quem se
presta a fazer um bom poema) toda poesia é demonstração, mas é também uma
síntese de todos os nossos conflitos, principalmente os mais silenciosos... os
mais ocultos.
Para a poesia, mostrar é muito
mais que argumentar: esta lógica sempre foi mais forte no mundo dos poetas, por
isso que, em se tratando de poesia, o apego aos fatos reais importa menos que a
qualidade de como são contados, ou melhor, poetizados.
Muito mais que a verdade, para a
poesia o que mais importa é aquela subjetividade que existe em tudo que é
verdadeiro em um nível mais profundo, seus valores e posições existenciais mais
básicas. Não é à toa que a transmissão de um acontecimento, feito por meio de
elementos poéticos, é muito mais forte e eficaz; quando não, mais verdadeiro:
assim acontece à Grécia pré-socrática, descrita por Homero, ou aquele Inferno de tormentosa beleza, que
atravessamos ao lado de Dante e acontecerá, também, àquele Yacala, o antológico
personagem da narrativa de Alberto da Cunha Melo, a buscar, no firmamento,
aquilo que não lhe é possível enxergar a um passo de seus olhos:
Levamos fogo, não esponjas
ao trono sujo de excremento
disputando o mesmo vazio
de um estrela no firmamento;
jarros negros e estrelas, tudo
é busca de conteúdo;
ou somos renúncia ou cobiça,
atravessando esses planaltos
feitos de cinza movediça;
mas todos estamos em casa
como os voos dentro das asas.
E se mostrar é mais importante que argumentar,
não me estranha que um leitor, por menos conhecedor que seja da história da
literatura ou dos mecanismos mais essenciais da crítica estético-literária,
passe mais tempo se deslumbrando sobre os versos de um soneto de Camões do que
se convencendo de que há algum conteúdo ou valor estético nos herdeiros do
Concretismo, por mais que mil livros ou sabichões de cátedra digam o contrário.
Todavia, não é de se condenar o
modo como o público, por mais bem intencionado que seja e tente se debruçar nos
malabarismos linguísticos de muitos de nossos poetas contemporâneos,
relaciona-se com as obras publicadas. Se o leitor, bem o mal intencionado,
estiver a ler os versos de nosso O Boca do Inferno, por exemplo, essa relação
seria bem menos problemática, pois a fruição de seu entendimento dar-se-ia,
naturalmente, melhor do que diante daquelas coisas “escritas”, ou melhor, “desenhadas”
por um Décio Pignatari; neste caso, o conhecimento ou uma suposta admiração
profunda acerca da estética da época de nosso maior sátiro não é condição de
possibilidade para a apreciação das obras, mas a fruição decorrente de uma
experiência estética que envolve pura contemplação... essa, sim, é importante.
Isso porque os códigos que envolvem, tanto a sua produção quanto sua avaliação,
são partilhados por todos os membros de uma determinada cultura, por
envolverem, advertidamente ou não, um decoro ou cânones estéticos consagrados
por uma tradição e, nesse sentido, entre os nossos poetas contemporâneos
Alberto da Cunha Melo é um dos que acumula a maior quantidade de pontos.
Pensando assim, poucos poetas de
nossa época mereceriam ser chamados de poetas, e me parece que um número bem
menor de poetas poderia se dar ao luxo de se achar, em meio a tantos engodos
que a contemporaneidade nos submete, entre os poetas maiores de nossa
atualidade, como Alberto da Cunha Melo. Porém, se há aqui quem discorde, pois
não é de achismos que uma crítica verdadeiramente honesta e eficaz se fará,
como não é julgando um poema ou seu autor pelo que estes tocam às ofensas
feitas à moral, às leis ou às religiões, como, certa vez, admoestou-nos o Bruxo
do Cosme Velho, esteja este sempre disposto a discutir-lhe o mérito puramente
literário, o pensamento criador, a construção cénica, o desenho dos caracteres,
a disposição das imagens, os jogos linguísticos e a elaboração das formas, mas,
claro, em outro momento, porque este momento aqui é um momento de festa, é o
momento do poeta que é, tanto a mim quanto a muitos de vocês aqui, ainda tão
presente, porque são os seus setenta anos, principalmente, de poesia, e,
porque, pelo menos em minhas considerações, é um “Poeta Maior”, sim, Alberto da
Cunha Melo o é... com certeza.
Um comentário:
Muito bom, uma verdadeira crítica literária. Consegue-se ir, no texto, do "material" (os poemas de Melo) para o "abstrato" (teorias literárias) com uma grande fluidez.
esperando o próximo texto...
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