sexta-feira, 3 de agosto de 2012

DOIS CAMINHOS E UM REENCONTRO: A "POESIE PURE" DE GUSTAVO FELICÍSSIMO...




O livro traz a fotografia é de Jamison Pedra. Sobre Procura e Outros Poemas o poeta Ângelo Monteiro, de Pernambuco, disse o seguinte: "Gustavo Felicíssimo se tornou um verdadeiro continuador da Retranca, esta forma estrófica que, inventada por Alberto da Cunha Melo, constituiu a matéria prima de, pelo menos, duas de suas obras fundamentais — Meditação sob os lajedos e Yacala — e que ganhou no autor de Procura e Outros Poemas um componente lúdico e graciosamente aleatório que veio dar ao seu livro uma nota pessoal à fórmula albertiana". Procura e outros poemas também traz textos de Claudia Cordeiro e Silvério Duque...








Sin lástima y sin ira el tiempo mella 
las heroicas espadas. Pobre y triste 
a tu patria nostálgica volviste, 
oh capitán, para morir en ella 
y con ella...
JORGE LUÍS BORGES





Gustavo Felicíssimo é um articulador. E possui um trabalho de divulgação das novas gerações da poesia baiana e brasileira de altíssima qualidade; reiterando estes ofícios ao publicar textos de vários poetas que nos aparecem tão grandes e reveladores quanto nos dá o seu olhar de quem admira a poesia pelo que ela pode nos oferecer de melhor e mais elementar. Não obstante, é do poeta que quero falar. E, mais especificamente, dos versos que compõem seu mais novo livro: Procura e outros poemas.

Estes textos agregam – como haveria de ser num trabalho como este – uma grande diversidade temática e rigor formal, todavia, destacam-se, principalmente, pela seriedade dos temas, pela busca de uma poesia pura e por estabelecer um diálogo com quase todas as tendências poéticas, sem se perder, evidentemente, dos alicerces mais fundamentais de nossa literatura.

Se todo livro é fruto de dois caminhos, a saber: o da coragem e o da vaidade excessiva de seu autor, em tudo este livro de Gustavo Felicíssimo é desafiador; um livro de quem não teme desfraldar suas influências (como se vê na primeira parte deste livro, na Elegia para Alberto da Cunha Melo e em todos os versos de Sereníssimo, principalmente), de mergulhar no lirismo responsável, (o que se evidencia na segunda parte, mais necessariamente no poema que intitula este livro), ou no autobiografismo consciente (presente nos poemas dedicados à Flora).

Todavia, este livro chama a atenção, conseqüentemente, pela propriedade com que seu autor se utiliza da forma, e, nisso, acaba por resumir e reencontrar todos os outros atos de coragem em que este livro empreende.

Primeiro porque a forma sempre pareceu, aos olhos ineptos, como um grande problema para quem nutria alguma pretensão poética, por mais que o uso da forma dia menos dia tornar-se-á condição natural do fazer poético e fruto direto do amadurecimento de qualquer autor – se isso não acontece, é porque, como a qualquer fruto que se nos mostra cheio de promessas, pode, de repente, “pecar”... E alguns poemas pecam bastante.

Segundo, porque Gustavo não se contenta com as formas fixas mais típicas, como a do Soneto, por exemplo – o que já seria desafio por demais; arvora-se, entretanto, no cultivo de uma forma fixa mais nova, a Retranca, encontrando soluções bem inventivas para algo não menos inventiva como é a forma fixa criada por Alberto da Cunha Melo,  e é aí que o poeta tanto homenageia como nos mostra suas influências mais diretas, e é a do poeta pernambucano, obviamente, que pode ser mais percebida, desde a epígrafe deste livro, passando por temas de semelhante envergadura, e desaguando na escolha da forma a que tudo isso parece se amalgamar, e, por mais que muitos vejam tal atitude como um problema, Gustavo Felicíssimo faz de tal gesto uma incrível personificação dos processos mais comuns existentes do fazer poético, pois não é de teorias ou críticas que se influenciarão, verdadeiramente, um futuro poeta: é outro poeta que o faz; e a receptividade da influência de Alberto da Cunha Melo na obra de Gustavo Felicíssimo revela-se bastante sincera, direta, e, valendo-se da voz do poeta pernambucano, Felicíssimo acaba por encontrar a sua própria voz, como podemos ver em Elegia para Alberto da Cunha Melo:

...sentimos sede porque a realidade é crua
e terríveis os seus desdobramentos,
tão terríveis quanto a razão que contraria a fé,
a vida envolvida em mistérios
e essa vertigem que me oferece este poema.
Ah, como é triste a condição humana!
Como é triste o horizonte que nos margeia.
Contudo, não será capaz o crepúsculo de evitar o gênio,
por isso essa Elegia no ventre da noite,
esse copo de chope, o linguajar vulgar.
Por isso, Alberto, os seus poemas insistem.
Neles me reconheço e me edifico,
uma vez que o tempo gasto
com inúteis procelas não nos alimenta,
pois em essência somos feitos de suavidade e compaixão...


         Ao optar por uma poesia formal, Gustavo Felicíssimo não busca nada além da elaboração interior do poema composta pelas idéias nela contidas, coisa a que estão destinados todos os poemas, ou, pelo menos, os bons poemas. Gustavo sabe que forma é assimilação de idéia; compor diretamente nela é o melhor exemplo que alguém possa ter da incorporação desta idéia ao seu resultado final, enquanto arte. Gustavo Felicíssimo nos deixa bem claro que a sua pretensão poética não almeja menos que as grandes composições, as quais só os poetas afeitos tanto à composição quanto à depuração podem realizar. Mas a forma, por sua vez, não trabalha em causa própria, ela, por sua vez, realiza a idéia presente no poema, apropriando-a à rima, à métrica e ao ritmo, como afirmara, certa vez, T.S. Eliot. Pensar que um soneto, por exemplo, são simplórios catorze versos, distribuídos entre estrofes, em um sistema de ritmos e rimas, é puro e irresponsável desmerecimento. Antes, devemos olhar para um soneto muito mais por seu caráter dissertativo, racional e objetivo; caráter, aliás, presente em todas as artes, ao menos, é claro, que alguém acredite que a arte não é uma concepção exclusiva da humanidade.

Desta maneira, fica fácil perceber o quanto que a forma é muito mais a realização de um conteúdo apropriado à rima ou ao ritmo do que o contrário; percebe-se, assim, que, para um Camões, a forma, mais do que uma imposição estilística de sua época, é a única maneira pela qual sua poesia poderia se realizar, ao contrário da dos Românticos que, tomados de um sentimentalismo desenfreado e, muitas vezes, urgente pouco utilizam do soneto, porque seus emotivos frenéticos e alucinados não poderiam resultar em algo que advém, justamente, do racional e do amadurecimento paciente. Isso, porém, não impede que ninguém faça um soneto; já a qualidade deste soneto... Gustavo não escolhe o soneto, contudo, ao optar pela formalização de seu trabalho (seja ela qual for) todas estas elucidações lhe fazem justiça.

É bom lembrar, também, que a forma não estabelece o conteúdo de um poema, muito pelo contrário; a forma é o resultado mais imediato deste conteúdo e nada denuncia mais o vazio, ou a hipocrisia, de um poeta – intelectualmente falando – do que seu metro, do que sua forma. A sinceridade do teor de um poema mede-se, muito mais, pela sua disposição formal do que pela análise crítica de qualquer um que seja.  É pensando desta maneira que Jessé de Almeida Primo, em seu livro A natureza da Poesia, afirma que um soneto será sempre um soneto ainda que os versos estejam distribuídos na forma prosaica ou dispostos numa forma fixa completamente alheia, uma vez haver tratamento específico da métrica além de uma distribuição de rimas as quais determinam o modo como os versos devem se agrupar, não sendo à toa, segundo o próprio Jessé, que “ouvidos treinados” identificam a forma fixa pela própria elocução. Mesmos os versos ditos “livres” compensam sua falta de regularidade métrica e estrófica por meio de uma progressiva simetria rítmica, pois nenhum verso é livre para quem realiza um bom trabalho, segundo, novamente, o velho T.S. Eliot.

Em suma, verso livre, ou metrificado são – em natureza e maneira de composição – a mesmíssima coisa. Não é à toa que este livro de Retrancas se inicia com uma Elegia..., em versos aparentemente livres... Só aparentemente, pois, quando condensados numa única leitura, percebe-se logo, mesmo para o ouvido “menos treinado”, que o ritmo e a melodia dos versos se condensam em uma só harmonia.

No final das contas, todo poema deve estar pleno de sentido, de significados, e não ser um mero jogo de idéias sobrepostas ao acaso; deve aparecer e soar ao seu leitor dentro de uma imaginação auditiva, tão comum em um Milton como em Eliot; mas também em Castro Alves e até mesmo em Ascenso Ferreira, e, por recortar uma realidade instigante, por ter uma penetração psicológica muito intensa, por proporcionar uma fácil compreensão de tudo e de si mesmo, Gustavo Felicíssimo faz de seu novo livro uma obra de razão; mas de uma razão recortada pelos malabarismos lingüísticos e dos signos comuns, o que garante a total qualidade de tudo que é dito neste livro, que não se preocupa em transformar em conceitos suas mais diversas percepções, como fariam nove entre dez homens de nosso tempo tão conturbado, porém, ao contrário, na busca de sua própria poesie pure, Gustavo procura transformar em impressões a maioria de seus conceitos, oriundos do mundo que ele percebe.

Assim sendo, tudo isso garante a este livro seu mais profundo propósito e sua mais autêntica beleza: um homem criador de seu próprio universo poético a reescrever a si mesmo pela influência que este mesmo universo lhe circunscreve... é o eterno reencontro de tudo e de si mesmo que o poeta propicia a ele mesmo e ao mundo através de todo seu trabalho, ou como o próprio Felicíssimo procura traduzir:

O meu retrato em preto e branco
deixei grafado nessas páginas,
deixei toda a minha loucura,
deixei também algumas lágrimas;

          deixei o chapéu companheiro,
          deixei meu mundo por inteiro;

deixei aqui tudo o que sou,
deixei um resto de alegria,
deixei o que de mim sobrou:

deixei as pedras nessa estrada,
          deixei minha vida e mais nada.






Alagoinhas/Feira de Santana, inverno de 2012.


***

O livro será lançado oficialmente na programação do Terreiro da Poesia, na Feira do Livro de Ilhéus, Centro de Convenções de Ilhéus, no dia 10 de agosto, às 18h00.

Também pode ser adquirido, ao valor de 25,00, já inclusa despesa de remessa, enviando-se e-mail para a Mondrongo Livros: contato@mondrongo.com.br


Nenhum comentário: