quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

PE. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA: UM GÊNIO ESQUECIDO E INDOMÁVEL


O padre José Maurício Nunes Garcia (Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1767 – 18 de abril de 1830)





em comemoração ao bicentenário
da Missa Pastoril para a Noite de Natal (1811)



  
Neste fim de ano de 2011, chamo a atenção de ti, caro leitor, para um aniversário... mas não o de uma pessoa, ou de um poeta – o que nesse nosso contexto seria bem adequado; aliás, este ano, podemos assim dizer, “comemoramos” os trezentos anos da morte de Botelho de Oliveira e o centenário de morte de nosso querido parnasiano, Raimundo Correa: é de uma obra que eu quero lembrar, mais necessariamente dos 200 anos da Missa Pastoril para a Noite de Natal (1811), do Pe. José Maurício Nunes Garcia, um dos maiores nomes da história de nossa música e também um dos mais esquecidos.

Filho de Apolinário Nunes Garcia e Victória Maria da Cruz, uma escrava, José Maurício muito cedo revelou seu incrível talento para a música, compondo, aos 16 anos sua primeira obra, uma antífona para a Catedral e Sé do Rio de Janeiro: Tota pulcra es Maria, em 1783. Talento que, ao lado de suas convicções religiosas, será sua principal arma contra os principais inimigos que terá por quase toda a sua vida profissional: a falta de recursos técnicos, o preconceito e o corporativismo de invejosos que não aceitavam um homem de cor e quase autodidata no comando da Capela Real e na apreciação do rei D. João VI... os gênios também têm as suas cruzes. O empobrecimento da vida cultural após o retorno de D. João VI para Portugal, e a crise financeira depois da Independência do Brasil, em 1822, causaram uma diminuição da atividade de Nunes Garcia, agravada pelas más condições de saúde do compositor. Em 1826, compôs sua última obra, a Missa de Santa Cecília, para a irmandade de mesmo nome. Morreu em 18 de abril de 1830 e apesar de ser padre, teve cinco filhos, dos quais reconheceu um.

O José Maurício viveu e atuou numa época bastante conturbada para a história brasileira. O Rio de Janeiro, pouco antes da chegada da corte portuguesa, culturalmente em nada se distinguia da exigüidade dos demais grandes centros nacionais. Entretanto, presença da Família Real, na, então, capitão da colônia, mudou esta situação radicalmente, atraindo as totais atenções e passando a ser o centro de irradiação de estéticas novas, nomeadamente o neoclassicismo, com o abandono da tradição barroca que, até então, continuava a exercer grande influência em todo país, daí da pra se medir o tamanho do atraso no qual vivi o Rio de janeiro e todo País àquela época. É certo que esta tradição ancestral não feneceu imediatamente, mas, dali em diante, o patrocínio oficial à vertente neoclássica foi o golpe mortal nela infligido, e do Rio irradiou-se uma visão diferente que, aos poucos, dominaria em todo o território.

José Maurício tinha luzes surpreendentes para alguém de sua origem e condição social. Pobre, mulato, perdendo o pai cedo e sendo educado com grande dificuldade, até hoje não se sabe exatamente como conseguiu adquirir a cultura que seus primeiros biógrafos reiteradamente alegam ter-lhe pertencido. Seu progresso na Igreja foi muito rápido, a ponto de ser dispensado de formalidades e pré-requisitos, onde a ascendência de sangue escravo era um estorvo considerável para uma carreira eclesiástica e mesmo mundana bem sucedida naquela sociedade escravocrata e preconceituosa. Mais tarde foi indicado Pregador Régio da Capela Real, e o bispo seu superior declarou que ele era um dos mais ilustrados sacerdotes de sua diocese.

Antes do período cortesão suas composições se ressentem à escassez de recursos humanos e técnicos do ambiente que beiravam a uma verdadeira miséria técnica e humana; diversas peças suas traem a indisponibilidade de instrumentistas, forçando-o a “adotar” soluções fora da ortodoxia como acompanhamentos reduzidos ao órgão, ou às madeiras. Durante bom tempo as aulas de teoria e prática musical que ministrava tinham de ser realizadas apenas com a viola de arame, não podendo contar sequer com um cravo ou pianoforte. Entretanto, quando indicado a Mestre de Capela da corte teve acesso à importante biblioteca musical da Casa de Bragança que Dom João VI trouxe consigo, contribuindo para sua instrução geral, para uma maior variedade de gêneros musicais trabalhados e para o conhecimento da obra de grandes mestres europeus como Mozart e Haydn, que terão prufunda influencia em sua vida e obra, e doas quais me arisco em dizer que se aproximava em talento e missão. Os muitos músicos e cantores altamente qualificados contratados pelo rei em sua chegada, que formaram uma orquestra considerada por todos os conhecedores e os viajantes estrangeiros como uma das melhores do mundo em seu tempo, possibilitaram que aprofundasse sua técnica de instrumentação e escrita vocal.

Seu declínio se acentuou com a partida de Dom João e com o vazio que isso produziu na cena musical carioca. Seu sucessor Dom Pedro I, apesar de amante da música e simpático ao padre, não pôde manter a pensão do compositor, e ele teve de fechar sua escola. Um de seus filhos, escrevendo sobre o pai nesta fase de obscurecimento, fala de sua frustração, de um envelhecimento precoce e de doenças crônicas que perturbaram sua produção e paz de espírito.

A apreciação contemporânea o considera o maior compositor brasileiro de seu tempo, mas critica suas concessões aos modismos que não encontravam eco verdadeiro em sua natureza, e certa contenção excessiva em sua escrita, que nunca mostra rasgos mais audazes ou experimentalismos. Sua produção conhecida chega a cerca de 240 obras, muitas delas redescobertas ou restauradas em meados do século XX por Cleofe Person de Mattos, musicóloga que teve papel fundamental na revalorização da música do período colonial brasileiro.

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Hoje em dia suas composições voltaram às salas de concertos e recitais em igrejas, já tendo diversas delas gravadas e publicadas... E dessas composições a que mais me encanta e a que escolhi para cpomentar rapidamente, por motivo de seu bicentenário é a A Missa Pastoril para a Noite de Natal (1811).

 Se parares um pouco para refletir, caro leitor, há certa utilização de um cantus-firmus, que confere às missas renascentistas uma forte e identificável unidade, construída, em certos trechos das composições, sob o princípio da imitação; e isso se verificará, inclusive nos séculos seguintes, nos séculos seguintes... Sobre um  ponto de vista diferente, a busca dessa unidade por compositores que empregaram o mesmo motivo, com ou sem variações, não terá o mesmo espírito imitativo, nem o mesmos traços do cantus-firmus, criando-se, assim, uma linguagem diferente e nova. Compositores como Galuppi, que no século XVIII escreveram missas com semelhante unidade cíclica, aplicaram-se em formações vocais e instrumentais reduzidas, cujas melodias eram, freqüentemente, retiradas de cânticos folclóricos e populares, chamaram-nas de missae rurales e missae pastoritae. A Missa Pastoril para a Noite de Natal (1811), do Pe. José Maurício não foge à regra, pois repete, mas numa linguagem um pouco mais diversa, meio século mais tarde, tal procedimento, num Rio de Janeiro colonial que acabara de imergir como sede do Império Português.

A primeira versão da Missa fora composta em 1808 apenas para vozes e órgão. O nível do conjunto instrumental, na época da criação da Real Capela certamente desestimulou D. João VI que chegara ao Brasil àquele ano. Posteriormente orquestrada (1811), a missa do Pe. José Maurício pode finalmente se dar ao propósito para a qual fora composta, bem como a quase toda à sua obra musical, que é o de acompanhar a liturgia natalina com o seu canto tranqüilo, de caráter pastoral, recolhido, mas sem se negar à obstinação.

Embora moderada, face às poucas possibilidades técnicas de sua época incluindo a de seus novos cantores, as dificuldades dos solos que permeiam a Missa Pastoril para a Noite de Natal (1811) não seriam trechos adequados aos velhos cantores que em 1808 transferiram-se da velha Catedral da Sé para a Real Capela. Com a necessária reserva, conclui-se então que a partitura autógrafa de sua Missa reúne elementos das duas versões: de um lado, as partes corais caracterizando a posição do compositor ante seus habituais interpretes – em sua maioria vozes infantis e falsetistas – que até 1808 formavam o quadro de músicos disponíveis na antiga Catedral, e, do outro, os solos destinados aos novos cantores da Capela Real, chegados ao Rio de Janeiro, em 1809, e dotados de vozes capazes de destacar a genialidade e o virtuosismo comum à escritura vocal do Pe. José Maurício Nunes Garcia.

A Missa Pastoril para a Noite de Natal (1811), ocupa posição singular entre as muitas obras do Pe. José Maurício Nunes Garcia, pelo caráter peculiar e por certos desvios dos padrões convencionais de composição, coisa que não escapa aos sentidos das demais obras do autor. Do ponto de vista de sua estrutura, a Missa Pastoril para a Noite de Natal (1811) ela até que se enquadra ao modus operandi de seu compositor: textos desdobrados, em partes solísticas sistematicamente, pela repetição freqüente dos mesmos textos. Todavia, quanto à contenção melódica, transforma-se com desdobramento com vários picos de brilho e virtuosismo. Seu caráter natalino, e um tanto que simplório, não lhe propiciará uma envergadura criativa comparável às grandes missas que o Pe. José Maurício comporá no futuro, mas lhe sobra em beleza o que lhe falta de sofisticação, às vezes... A economia extrema dos motivos empregados, bem como a repetição inflexível da mesma temática fez dessa Missa uma composição de certa pobreza técnica, mas “elaborada” no sentido de lhe conferir uma riqueza de outro tipo: ser uma composição da mais pura e verdadeira devoção ao Cristianismo e seu sentido.

Nessa estrutura marcada pela uniformidade a diversificação de elementos fica por conta dos solos, entre os quais destaco o Qui sedes, para soprano solista e três baixos concertantes, e o Et Incarnatus, para duo de sopranos clarinete e cordas: ambas representam e conservam muito bem os aspectos singelos, por assim dizer,  desta obra. Contrapondo-se à simplicidade vocal outro tipo de manifestação simplória e, ao mesmo tempo de particular beleza, é o motivo do clarinete – algo, particularmente, muito especial para mim – exposto desde o início da obra, e guiando-a muitas vezes daí então, como um leit-motif de graça e ingenuidade, que com o seu caráter pastoril, complementa com adequação o específico ambiente desta obra, como bem o quisera o Pe. José Maurício.

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Os links abaixo trazem breves exemplos – Viva à Internet – desta que é uma das obras mais significativas da cultura brasileira e que demonstram a grandiosidade de um gênio ainda um pouco esquecido... mas, indomável.







    

Um comentário:

Rúbida Rosa disse...

Tudo mo destes a conhecer! Pois nunca havia ouvido falar nesse pesonagem.Não raro, grandes artistas são talhados na dificuldade, nas agruras da vida. Esse Nunes Garcia foi mais um. Interessante o post.
Abraços Literários!