sexta-feira, 6 de maio de 2011

DA OLARIA À OURIVESARIA: ALOÍSIO RESENDE & O BIG BROTHER BRASIL DOS INTELECTUALÓIDES



Aloísio Resende (1900-1947), poeta negro, pobre e, supostamente, um beberrão freqüentador de candomblés e de quengueirosum... prato cheio para todos os oportunistas dos Estudos Culturais de plantão.




Nuestras convicciones más arraigadas,


más indubitables, son las más sospechosas.


Ellas constituyen nuestro límite, nuestros confines,


nuestra prisión.


ORTEGA Y GASSET





Parece-me, caro leitor, que a biografia moderna considera o homem em todos os seus aspectos, buscando fixar a humanidade do seu personagem. Pelo menos é o que afirma Edvaldo Boaventura em seu No Território da Palavra; seu objetivo “é a transmissão verídica de uma personalidade”; buscando o homem com as virtudes e os defeitos inerentes a raça humana. Mas, no fundo no fundo, em termo do que interessa realmente à poesia, estes aspectos estão mais para um Big Brother Brasil dos pseudo-intelectuais do que verdadeira ciência e literatura.



Olhem o caso de um Augusto dos Anjos, por exemplo: nem um poeta de nossas Letras foi mais vitimado pelos estereótipos do que ele – estereótipos esses advindos tanto dos leitores ingênuos como da crítica dita especializada, mas que nada mais é do que uma propagadora de tolos ideais etnocêntricos e multiculturalistas que pouco ou quase nada acrescentam à poesia e à sua verdade estética. O poeta paraibano, por mais que fosse, à sua maneira, um revolucionário, dono de um artesanato poético sem precedentes em nossa história, quase sempre foi focalizado como um tuberculoso sofredor e depressivo; um anti-herói errante em sua própria angústia e dor, representado, como diria Antônio Houaiss, por “versos herméticos, onde, por vezes, se escondem cisma extremamente patológicas, psicologia doentia”, et cœtera e tal.






Antônio Houaiss, também, nos lembra que, “em conseqüência dos usos simbólicos feitos por Augusto dos Anjos, de um material não raro de procedência científica, dos usos analógicos e corretos para fins de enlace estético e emocional, desde sempre se manifestou entre nós de interpretar a poesia de Augusto dos Anjos como uma poesia exótica, cuja chave – como a de Cruz e Souza – poderia estar na sistemática de certas doutrinas orientais místicas”... Já pensou?!






Mas muito longe de ser um poeta conhecido e aclamado, como Augusto dos Anjos o é, Aloísio Resende (1900-1941) não está livre de interpretações semelhantes; e, mesmo a sua exígua produção literária, torna-se vítima de uma “visão multicultural” que leva muito mais em conta os processos pessoais do autor como se esses valessem muito mais do que a sua produção poética ou como se estes fossem a poesia em si, não levando nem mesmo em consideração aquela máxima de Fernando Pessoa de que “o poeta é um fingidor”; máxima, aliás, que vale muito mais do que toda a obra de Raymond Williams.






Nascido na provinciana Feira de Santana, no início do século passado, Aloísio Resende era negro, pobre e, supostamente, um beberrão freqüentador de candomblés e de quengueiros; seguindo os caminhos da figura mística vitimada pela condição social, pela cor e pela escolha religiosa que escrevia versos como quem desabafa suas mágoas, em glorioso e talentoso protesto, tornou-se um prato cheio para todos os oportunistas dos Estudos Culturais de plantão, que o vêem como uma figura lendária destituída de seu cânone, mas sem olhar necessariamente (nem verdadeiramente) como poeta que era... para variar. Não conheço um ensaio, artigo ou crítica – inclusive esta – sobre Aloísio Resende cuja curiosidade sobre a sua vida boêmia, suas insatisfações pessoais e de uma improvável inadaptação social de sua parte não se sobreponha à sua poesia, muito menos à análise estética de sua produção poética que é a verdadeira essência da crítica literária, pois a crítica que não analisa é uma crítica que se quer acomodada e infecunda e que, à semelhança das velhas titias do século XIX, nada mais lhe resta, em sua vida miserável e desesperançosa, do que a observação deturpada da vida alheia.






Não pense qualquer um ao ler este artigo, que eu queira transformar Aloísio Resende num esteticista sem nenhuma noção de utilitarismo social, moral ou político, preso a considerações excessivamente racionalistas, ou como os parnasianos de segundo escalão que o precederam, numa típica “torre de marfim” estética, mas a verdade é que pouco importa, poeticamente falando, se o poeta feirense sofria preconceitos raciais, freqüentava terreiros de Candomblé ou se passava as noites a se embebedar numa atitude tipicamente vitimista, à maneira dos ideólogos etnocêntricos de nosso tempo, Aloísio, semelhantemente aos grandes poetas, sabe que a vida não deve ser contemplada com olhos demasiadamente abertos nem desesperadamente lúcidos, pelo simples fato de ser um homem de versos e não um sociólogo de Esquerda.






Nenhuma poesia que se preze deve subestimar os métodos estilísticos, muito menos desconsiderá-los. Uma crítica que se preocupa com os possíveis ideais marxistas de Graciliano Ramos do que com a sua escrita viva e objetiva, com a boemia de Vinícius de Moraes do que com seus sonetos de notável aprofundamento lírico, com a vida indistinta de Bruno Tolentino do que com sua poesia de incomparável abrangência estética é uma crítica de intrigas e mexericos, que deve ter Pedro Bial como patrono... só não é crítica.






No caso de Aloísio Resende, os elementos oriundos das religiões africanas parecem, à atordoada crítica literária predominante no Brasil, muito mais importantes do que os próprios poemas que os utilizam para fins que vão muito além do que eles representam. O mesmo erro que cometam há anos com o Augusto dos Anjos ao rotulá-lo de “poeta cientificista” quando este dito “cientificismo” é só mais um caminho para algo que vai muito além. O mesmo acontece com os elementos “afrodescendentes”, na poesia de Aloísio Resende: não passam de tijolos de uma construção maior e que vai muito além da mera referência étnica. E digo mais: o erotismo apresentado em praticamente todo a sua obra poética é muito mais intenso e centralizado e é um elemento primordial de seus poemas para o qual a sua dita africanidade trabalha intensamente. É só recordar de trechos como o do poema Iemanjá, onde a idéia que do objeto contemplado é maior do que o próprio objeto:







Quando, às vezes, obter se lhe pretende a graça,


dão-se-lhe macumba os mais lindos presentes,
pois, só mesmo Iemanjá, ditosos dias traça,
aos tristes corações de amores padecentes.







Mas, para estes multiculturalistas, que olham para as artes como um reality show atrasado e defasado, a tinta parece valer mais do que a pintura, o metal mais do que o anel ou o barro mais do que o vaso; aliás, mostrando-lhes um vaso, são capazes de enxergar o barro, a pintura, o verniz, as mãos oprimidas que o fizeram... só não enxergam o vaso. Incapazes de ver o óbvio esquecem que a poesia deste bardo baiano não é demasiadamente clara, nem facialmente inteligível, muito menos pretendeu ser um poeta de vanguarda só por usar termos como bozó, canzuá ou babalaô, muito menos abrir-se a heterogeneidades culturais de uma Feira de Santana provinciana, pelo simples fato de, em nenhum momento, se sobrepor às referências helênicas de uma poesia retardadamente parnasiana, como a sua.






A poesia de Aloísio Resende, como qualquer outra, pretende apenas comunicar – sem nenhuma ironia – com base muito mais em suas influências literárias do que qualquer outra coisa. E é uma poesia ordenadamente estruturada, mas sem grandes sutilezas, zelos retóricos e sem o desejo de carregar nos ombros as dores e os desmantelos humanos, por isso sua poesia deve ser lida, vista e analisada como poesia pura, sem nenhuma pretensão de ser nada mais do que isso, pois é só isso que verdadeiramente importa e, pelo que sei, o que, realmente, ele queria. Olhem o caso, por exemplo, deste belo soneto:





Vive deserta e triste a minha pobre rua,


por onde nem se quer um simples vulto passa.


Turva poeira de luz pelo espaço flutua,


enquanto bate em cheio a chava na vidraça.



Produz na ramaria o vento que perpassa
de preces um rumor, que noite dentro atua.
Trema na água empoçada a claridade baça:
corre como pavor na rua longa e nua.


De minha vela oscila a chama tênue e leve,


no quarto, que ficou de mil beijos vazio,


com a ausência de teu corpo alvíssimo de neve.



Todo o meu ser invade imenso desconforto,
corta na minha carne a lâmina do frio...


Chove. É o pranto hibernal de nosso afeto morto.







Aloísio, caro leitor, é um poeta da forma e ponto final, pois ele não poderia fazer escolha melhor, nem dentro de seu contexro histórico-social, muito menos em sua verve de art´fce do verso. A forma, como já tive oportunidade de dizer aqui, não trabalha em causa própria, ela realiza a idéia presente no poema, apropriando-a à rima, à métrica e ao ritmo, como afirmara. A forma é muito mais a realização de um conteúdo apropriado à rima ou ao ritmo do que o contrário; percebe-se, assim, que, para Camões, por exemplo, a forma, mais do que uma imposição estilística de sua época, é a única maneira pela qual sua poesia poderia se realizar, ao contrário da dos Românticos que, tomados de um sentimentalismo desenfreado e, muitas vezes urgente, pouco se utilizaram do soneto, porque seus emotivos frenéticos e alucinados não poderiam resultar em algo que advém, justamente, do racional e do amadurecimento paciente.






Nada disso, porém, impede que ninguém faça um soneto; já a qualidade deste soneto...






É bom lembrar, também, que a forma não estabelece o conteúdo de um poema, muito pelo contrário; a forma é o resultado mais imediato deste conteúdo e nada denuncia mais o vazio, ou a hipocrisia, de um poeta – intelectualmente falando – do que seu metro, do que sua forma. A sinceridade do teor de um poema mede-se, muito mais, pela sua disposição formal do que pela análise crítica de qualquer um que seja. Caso o leitor se recorde, no filme, Amadeus, de Milos Foreman, Salieri, interpretado por F. Murray Abraham, leva o Mozart, vivido por Tom Hulce, extremamente doente, para a sua casa, e o ilude para que continue a compor sua Missa Réquiem, em Ré menor, deitado naquele que seria seu leito de morte; Mozart o dita para que Salieri o transcreva à partitura (o que de fato teria acontecido, embora não com Salieri e sim com dois de seus pupilos, Joseph Eybler e Franz Xaver Süssmayr), por toda a madrugada. Mozart indica que baixos, em Lá, cantem o tema do Confutatis, junto com os tenores, na subdominante, acompanhados, na mesma linha melódica, por fagotes e trombones para que as vozes sejam multiplicadas; em sotto voce, seguem as vozes femininas... etc. Compasso por compasso observamos a construção deste trecho que, somando suas partes, criam um dos temas mais belos e ferozes de nossa música. Separados são sons sem muita conexão ou apoio, mas, juntos, formam uma cadeia de melodias de mais alto padrão já escrito.






Tudo isso parece, aos olhos inéptos, se repetir no filme Copying Beethoven, mas sem o mesmo resultado; e a cena entre Ed Harris e Diane Kruger lembra mais a “viajem” de dois maconheiros do que a instrução de um mestre ao seu pupilo, pois a inverossimilhança do resultado se sobrepondo à matéria e a forma que o compõe são demasiadamente insustentáveis. Enquanto, em um filme, figuras musicais se acomodam à partitura para resultar em uma impressão melódica, no segundo esta impressão tenta “se compor” na partitura. O que vemos, então, são dois episódios onde sentido não depende da narrativa em si, mas dos fatos do mundo exterior a que a platéia, mesmo não musicalmente educada, associe os episódios narrados, fazendo destes o símbolo daqueles. Assim no filme de Milos Foreman a sena é realisticamente aceitável enquanto que no filme de Agnieszka Holland só sobre o riso involuntário.






Por fim, mesmo o resultado mais belo produzindo é estruturado através de formas muitas vezes rudes e extremamente ortodoxas. Mas é o resultado que importa aos olhos leigos e preparados, já ao seu criador, o conhecimento das formas que moldam este resultado são, praticamente, tudo para ele. Não é toa que os melhores e mais maduros poemas de Aloísio Resende são sonetos...






Da olaria de uma poesia social que Aloísio Resende não tem, à ouriversaria paranasiana que sempre seguiu, é esta a questão que me levou sua à poesia e não esqueça, caro leitor, de lembrar isto aos responsáveis pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da UEFS, só pra começar, pois alguém precisa ensinar alguma coisa àquele povo.



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Porque é assim que é... e quem pensar que é diferente o faz por ser idiota.






Alagoinhas, 05 de maio de 2011.









P.S. É uma necessidade vital, caro leitor, conferir a exposição de Gabriel Ferreira, intitulada BRINQUEDO DOS ANGOLAS E ORIXÁS: ALOISIO RESENDE E BEL PIRES... de 19 de abreil a 15 de maio, na Galeria de Arte Carlo Barbosa, cituada no Centro Universitário de Cultura e Arte, de Feira de Santana, rua Conselheiro Franco, 66, Centro. Como a de todo grande artista, na obra de Gabriel Ferreira elementos diversos se agrupam em diferentes aspectos para construir ir algo realmente belo, único, repleto de cor, verdade e significado, indo muito além daquilo que lhe serviu de mote, no caso, a poesia de Aloísio Resende, para que a vida seja mais... É para isso que a Arte serve.








Confira através do link: http://artistagabrielferreira.blogspot.com/2011/04/capoeiragem-candomble-e-poesia.html






















2 comentários:

Raymundo Luiz Lopes disse...

Prezado confrade, Silvério!
Seu ótimo texto já, pelo título, é convidativo ao leitor que se predispõe a refletir sobre a obra de Aloísio Resende a partir de uma perspectiva crítico-literária. Gostei, parabéns!!

Raymundo Luiz Lopes disse...

Prezado confrade, Silvério!
Seu ótimo texto, já de início, pelo título, é estimulante ao leitor que pretende refletir sobre a obra de Aloísio Resende, a partir de critérios literários e filosóficos. Gostei, parabéns!!