Silvério Duque, autor de O crânio dos Peixes, ( Ed MAC, 2002 ), Baladas e outros aportes de viagem, ( Edições Pirapuama, 2006 ) e A Pele de Esaú ( Via Litterarum, 2010 ). Meu próximo livro, Ciranda de Sombras, está no prelo.
para Hilton Valeriano & Hermógenes de Castro e Mello
Hilton Valeriano, querido amigo e poeta, um destes poucos homens que têm um compromisso realmente sério com a arte e com a cultura, pergunta-me, como começou o meu contacto com a poesia. Isso me remete a pensamentos tão complexos, e, por vezes, não muito agradáveis, e à lembranças muito queridas de tão distantes.
Eu comecei, muito cedo, a ler poesia; escrever, no entanto, foi algo que veio depois, bem depois e eu, sinceramente, não conseguiria dizer, com certeza, quando ou como foi verdadeiramente. Sei que apareceu, sei que Fernando Pessoa, Drummmond, Camões, Shakespeare, Dante, e, logo depois, Eurico Alves Boaventura, Manuel Bandeira, João Cabral, Rilke, Tolentino, começaram a fazer parte de minha vida... mas, hoje, prefiro acreditar, o me limitar a responder, na seguinte idéia: Poeta nascitur, orator fit, como diria Sêneca.
Já a criação poética, pelo menos para mim, vence alguns estereótipos, desde que me entendo como poeta, a idéia me vem. Aí, eu a capturo, “deixo rolar”, como dizem os mais jovens. Depois, ponho “no complicador”, como diria o João Cabral. Tenho poemas feitos de uma só vez, cujos retoques foram mínimos e outros que levaram horas, dias, meses e até anos. Em meu próximo livro, Ciranda de Sombras, a sair pela É Realizações, há um poema que construir ao longo de oito anos... O que posso fazer; retoco aqui, refaço ali, reproduzo e experimento várias combinações sonoras. Sou músico, componho um poema como quem combina notas, melodias, harmonias, timbres... Este é o caminho de quem quer algo bem feito, é o caminho percorrido pelos grandes, é o caminho que quero e devo seguir. É assim que sei fazer as coisa e, sinceramente, quem faz o contrário é um idiota preso em sua própria vaidade de inepto, é o que penso, porque a poesia é uma coisa séria, muito séria. A poesia é uma afirmação diante da vida e de suas limitações. A poesia é uma das poucas coisas que eu sei valer, verdadeiramente, alguma coisa. Com ela, a vida é maior e já a não sei olhar (ou para mim mesmo) sem olhar para ela, pois nos tornarmos uma coisa só, o mesmo propósito, a mesma vontade de completude. Ela me dá a certeza de que é possível criar, realizar... E realizar é afirmar a vida, vencer a morte; como eu mesmo escrevi, para um amigo poeta que morria de câncer:
nada somos se nada construímos,
pois se nada inventamos, nada existe...
Somos a nossa ação por sobre o tempo.
No dia em que tecemos tudo vive,
realizar é escapar da morte... mas,
não durarei apenas entre os outros,
pois dou aos versos usos e clarezas.
De tanta falta e busca me revejo,
de tanto amor e anseio, me reinvento,
nessas rotas e fugas me refaço.
Necessário é criar e a vida é pouca,
no dia em que eu me faço estou e existo.
Neste poema há todos os meus passos.
A poesia, ao contrário do que pensam muitos, representa muito para o nosso Brasil. A poesia, em nosso País, sempre foi algo muito forte, ligada demasiadamente à construção de nossa nação, à nossa idéia de brasileiros, à identidade brasileira. O problema é que, de uns tempos para cá, alguns critérios muito básicos vêm mudando radical e erroneamente. Exceto por uma duas dúzias de esmerados perdidos por nosso vasto território, a cultura, que, no Brasil, um dia, se chamou de erudita, é quase uma alucinação. Daí, um dos grandes problemas de nossa atual sociedade: desaprender o sentido, tanto teórico quanto prático, da palavra “critério”, ou mesmo “juízo” e “discernimento”. E a poesia, principalmente a contemporânea, acabou sofrendo muito com isso, também. Assim, me pergunto ou se me perguntam se a nossa poesia vai bem, é claro que vai, sempre foi maravilhosa.
A questão é que a poesia, mesmo se apresentando como uma forma de arte menos comercial e, muitas vezes, “sisuda”, não se livrou deste problema que no Brasil é grave, crônico e contagioso, por isso é preciso, infelizmente, dividir a poesia em dois extremos bem distintos: de um lado, aquela que ocupa a maioria das revistas, jornais e programas ditos especializados que, em sua maioria serve apenas para maquiar a total ignorância e a falta de apreciação mais acurada, aliada às trocas de favores, ao cooperativismo porco, à industria da promoção, dos diplomas, das orelhinhas de livros; do outro, aquela poesia distante da grande maioria destes veículos, feitas por pessoas que sabem que a poesia é a mais perfeita das redações, que ela não se nivela por baixo e que deveria constar nos livros de literatura e em todo material didático que chega às mãos de nossos alunos, porém, o que acontece é que aquilo que há de pior, ou, no melhor dos casos, de mais simples, óbvio e, digamos, de fácil digestão, à maneira da axé music e do hip hop, é o que se acaba estudando e aprendendo como a única poesia existente no Brasil, e isso é uma inverdade cruel e sínica, mas, ouçam o que te digo, a história, no fim, excluirá os covardes, os apedeutas, os sem talento, os sem critério, os sem noção...
Mas, ainda contamos com grandes nomes, como Bruno Tolentino, Alberto da Cunha Melo, Orides Fontela, Hilda Hilzt, Ildásio Tavares, por exemplo, que, mesmo mortos, ainda que a pouquíssimo tempo, são nossos contemporâneos, incluindo mestres da velha guarda como Ferreira Gullar, Ariano Sussuna, Reynaldo Valinho Alvarez, Adélia Prado, Mirian Fraga, Antônio Brasileiro e Conceição Paranhos que ainda estão vivos e nos ensinando cada vez mais. Estes são nossos contemporâneos, claro. Muito me contentam em ler os trabalhos de Rodrigo Petrônio, autor de Venho de um país selvagem, que, inclusive, ganhou prêmio, aqui, na Bahia; Érico Nogueira, Marco Catalão, Jorge Elias Neto, ou de baianos – por que acontece que eu também sou baiano –, que são responsáveis por manter uma tradição de qualidade e beleza que provem desde Gregório de Matos, passando por Castro Alves e outros mais, como Bernardo Linhares, que nos apresenta uma poesia madura e admirável, onde forma fixa, aliada à livre cadência de ritmos, compõe uma das obras mais singulares de nossos últimos tempos por se tratar, principalmente, de um livro contemplativo, que nos apresenta uma postura positiva da vida e de toda a beleza que ela nos oferta dia após dia, e, em um caso que vai um pouco além do ofício de poeta; Gustavo Felicíssimo, que é o paulista mais baiano que conheço e um dos poetas mais disciplinados e talentosos de minha geração, por assim dizer, responsável por reunir e divulgar, em seu livro Diálogos (Ilhéus/Itabuna: Via Litterarum/Editus, 2009.), uma dos maiores grupos de poetas que o Brasil já possuiu, todos baianos, da região Grapiúna, onde, sem dúvida nenhuma, se produz, atualmente, a melhor poesia da Bahia e uma das melhores do País. Quem se aventurar nas páginas de Diálogos, encontrará a síntese perfeita entre imagem e palavra na econômica, porém dialética, poesia de Edson Cruz; o verso sincero e livre de Heitor Brasileiro Filho; a delicada angústia de Noélia Estrela; os formais e coloquiais sonetos de Piligra; a enigmática literatura de George Pellegrini; o erotismo pujante e lírico de Rita Santana; o verso livre e apaixonado de Fabrício Brandão; o deslumbramento reflexivo de Daniela Galdino; os haicais (e falando em haicais já se diz tudo) de Mither Amorim; o esmiuçar emotivo de Geraldo Lavigne. Além do mais, o leitor constatará uma coisa óbvia: o trabalho sério e impressionante do pesquisador e organizador Gustavo Felicíssimo, que, entre critérios estéticos e políticos, constrói uma obra de referência, onde novas vozes se misturam, em igual índole, a nomes referencias como Sosígenes Costa, Adelmo Oliveira e Cyro de Mattos e para onde não encontramos sinais de nenhum “verbalista” que, como bem acentuou, certa vez, o filósofo Olavo de Carvalho, aquém muito admiro, são os ditos "poetas que saltam direto do estímulo verbal à reação emotiva, sem passar pelo trabalho de imaginação e muito menos pela triagem crítica das representações imaginativas e cuja sua tendência é buscar a comoção ante os simples jogos vocabulares que, bem examinados, não significam absolutamente nada e nem poderão suscitar emoção nenhuma a não ser no sucesso do movimento Concretista que se deveu a propagação do verbalismo no lugar do verdadeiro poeta..."
E se ainda me permito mais um exemplo, ainda temos o caso de poeta Patrice de Moraes, que, por ainda não ter seu trabalho muito divulgado e nem lançado por uma editora, merece um tratamento um pouco especial. Homem de extraordinário talento, cuja produção poética, segundo o dizer de Jessé de Almeida Primo, tranqüiliza a toda crítica “por não deixá-la em dúvida quanto à sua qualidade”, não restando objeções ao seu domínio de um ofício de eleitos: a Poesia. Quando me refiro à poesia de Patrice de Moraes, refiro-me a uma poesia que sempre se quer cinética, que pretende romper os limites da impressão simplória e alçar à consubstanciação da mais pura e didática alegoria, ou seja, uma poesia que substitui o abstrato pelo aparentemente concreto. Assim, em cada poema de Patrice vejo imagens intencificadoras, dentro de um sistema que permite muito bem a isso; uma imagem representando um conceito ao qual se pretende, ou, simplesmente, comunicar, por meio de imagens puras e gradativas, o despertar dos sentidos, onde certas questões, como a do erotismo, são bem menos um assunto do que uma maneira de metaforizar, como nos dirá, pois, nesse sentido, sua poesia é tão erótica quanto toda poesia de qualidade deve ser, pouco importando seu assunto.
Por fim, não sou a melhor pessoa para falar de mim, nem comigo mesmo, nem falar dos outros; tenho apenas 33 anos, e já me sinto um velho, daqueles velhos que reclamam bastante, eu me acho!!! Sou tão aspirante quanto muitos que ensaiam seus primeiros versos; mas se há um conselho que eu mesmo me dou é o de ler muito, principalmente, os grandes poetas. A mediocridade é contentar-se apenas como que se tem sem buscar nada... sem ariscar para mais além. O contrário disso é o capricho.
Muitos poetas com certo talento tornam-se poetas medíocres por causa de leituras igualmente medíocres... Deus me livre disso. Trocar Manuel Bandeira por Cassiano Ricardo, Jorge de Lima pelos irmãos Campos, Bruno Tolentino por Manuel de Barros, Ildásio Tavares por Arnaldo Antunes é querer não ser ninguém, ou coisa alguma, nada.
Além do mais, sempre aceitei o fato de que poder errar, mas também poder me refazer, porque um poema nunca está, verdadeiramente, terminado; há sempre a algo a mudar, a corrigir, a refazer, tudo pode ser melhorado se houver talento, exercício constante e vontade de construir sempre o melhor. Lembrar-me de que Ildásio Tavares me dizia que ninguém colhe manga em jabuticabeira... Nem todos hão de ser poetas por mais que queiram e é preciso saber a hora de desistir, também. Mas eu credito no que acredito ser algo especial, porque é verdadeiramente especial; a poesia e arte tornam a vida melhor; com a poesia, como diria Gullar, “a vida é mais”, sem dúvidas. Só não me iludo... este não é um caminho de glória, muito pelo contrário, por causa da poesia eu ouvi muitas injúrias, muitas mentiras que disseram todo tipo de mal a mim e aos meus. Parafraseando, novamente, meu velho mestre e amigo, Ildasio Tavares, o melhor conselho, assim como os melhores versos, quem nos deu foi Dante: “Lasciate ogni speranza, voi che entrate”!
Feira de Santana, março de 2010.
Um comentário:
Se todos tivesser esse discernimento, amigo... Como o senso estético anda sendo repuldiado em prol de "invenções" modernas... Mas verdadeiramente a poesia é grande nesse país, muito grande. Já é tempo de um Nobel para esse país, e um Nobel para a Poesia. Um abraço, grande poeta!
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