Sociedade Filarmônica Ramo da Oliveira, sobre a regência do maestro Márcio Bandeira, durante a presentação na cidade de Santo Amaro e no distrito de Oliveira dos Campinhos. |
VAMOS
FALAR SOBRE AS FILARMÔNICAS?
Como
que um homem, com as virtudes que lhe são próprias, pode cultivar a música?...
A pergunta é de Confúcio, e ela leva-me a uma reflexão, primeiramente, muito
pessoal, que tenho com a música e, especialmente, à minha formação de músico de
Filarmônica.
Poucas
coisas, incluídas no vasto campo do conhecimento, são tão importantes à
formação tanto da inteligência, quanto do caráter, como o aprendizado da
música. E não se enganem os teóricos de todas as imbecilidades que vemos e
ouvimos por aí, não se pode executar a música em sua devida forma sem a total
compreensão de sua finalidade, sem um compromisso verdadeiro com as virtudes
que ela nos transmite, junto à disciplina necessária. É uma entrega tanto
física quanto emocional, mas também moral e em certo ponto filosófica, mas,
acima de tudo, é um aprendizado sem igual, na mesma medida que a música nos
oferece.
É
difícil determinar quando começaram as Filarmônicas e quando elas se tornaram
populares aqui no Brasil, mas uma coisa é certa, elas tomaram como base as
bandas militares; e não só em seu formato, mas em sua disciplina e austeridade.
De certo, o melhor período para elas, ou a época em que ganharão as
características que lhe são, até hoje, peculiares, foi justamente na virada do
século XIX para o XX, mais precisamente durante a Belle Époque. Foi por
esse tempo que elas se tornaram um braço dos muitos clubes e associações
filantrópicas de que faziam parte, além de assimilarem muito bem o estilo de
época que nada mais era do que um neoclassicismo tardio, mas muito pomposo e
eficaz à identificação dessas bandas de música que logo começaram a ser
chamadas de “Liras”, numa direta referência à cultura helênica e a receber nomes
de deusas e musas greco-romanas, até hoje desconhecidas e até impronunciáveis
para muitos dos componentes de seus corpos musicais, como Euterpe (a deusa da
música, porém, mais tarde também associada à poesia lírica) e Terpsípore (a
musa da dança), mas velhas e íntimas conhecidas dos bardos parnasianos, como
Bilac, Correa e Alberto de Oliveira. Conclui-se, assim, que as fontes que
servirão de base e inspiração às Filarmônicas estão repletas de história, de
arte, de educação, boa conduta, de cultura e relações sociais com todas as
maravilhosas diferenças que tudo isso nos tem a oferecer.
A existência, no
entanto, de Filarmônicas em quase todas as cidades do Brasil, até meados do
século passado, representava mais do que um mero atrativo artístico para as
localidades. Algumas, inclusive, orgulhavam-se de ter, em seu município, mais
de uma. Santo Amaro da Purificação, terra de mano “Caê” e “Bethaninha”, até
hoje possui cinco, entre sede e distritos – isso é o que se podia chamar,
àquela época, de “ostentação”. As Filarmônicas representavam, de fato, um
imenso projeto social até hoje incomparável, levando-se em consideração os
inúmeros fracassos de nosso ministério educacional em implantar, em nosso país,
um aprendizado de música verdadeiramente eficaz e abrangente, entre outros
fracassos. A fundação de uma Filarmônica não poderia ser feita sem,
primeiramente, a implantação de uma escola onde a comunidade poderia aprender
sem nenhum custo, a não ser a dedicação e a fidelidade à instituição. Isso era
feito por um maestro, nascido e criado naquela localidade, ou que a adotara como
seu berço e lar, conclamando, principalmente, crianças e jovens das mais
diferentes classes e etnias a uma mesma causa e aprendizado, porém, obviamente
eram os meninos mais pobres que melhor se encaixavam àquela academia, pois ali
se encontravam as suas chances de serem
e se criarem as suas próprias
oportunidades para longe de quaisquer esteriótipos que deles se esperava.
Ser músico era, antes de tudo, ser visto com outros olhos
naquela cidade; ser músico era ter uma profissão; era ter, em um instrumento,
um bom caminho a se seguir. Nunca conheci músico de Filarmônica que, apesar dos
vícios e dos deslizes comuns a nós, meros mortais, não tenha se tornado uma
pessoa digna ou não tenha carregado a dignidade consigo. À música, como já foi
dito acima, é necessário uma disponibilidade de caráter, seja ela do tamanho
que for. Era através dela que se aprendia o significado do respeito, da obediência
e outros valores muitas vezes perdidos em casa ou pela rua. Aplicado aos nossos
dias, quando um garoto aprende um instrumento em uma Filarmônica, por exemplo,
ele está dizendo adeus às drogas, à malandragem que leva às drogas, à
malandragem e as drogas que levam ao crime e daí, sucessivamente. Quando um
garoto entra para uma Filarmônica, ele abandona o tédio de uma vida sedentária,
o despreparo humano de uma vida muitas vezes apenas “virtual”, o mau gosto por
uma música sem sentido e incapaz de acrescentar o mínimo que seja a um de
nossos milhões de neurônios, pois agora ele está munido do conhecimento e das
estruturas que não só remodelaram para melhor sua percepção auditiva, mas sua
maneira de ver e perceber uma serie de outras coisas, pois está mais que
comprovado que poucas atividades lúdicas acessam um número tão abrangente de
áreas cerebrais como é o caso da música.
Projetos
não faltam nem faltarão para a revitalização de Filarmônicas em todo o nosso
país. Não só porque se faz extremamente importante o aprendizado musical, ou a
necessidade de criar oportunidades a mais para muitas pessoas... Revitalizar
Filarmônicas também é uma forma de “lavar dinheiro”, como se tem comprovado por
aí. Por isso, só iniciativas individuais, para não dizer, muitas vezes,
solitárias, são as que realmente conseguem construir, entre “trancos e
barrancos”, algo realmente bom, verdadeiro e duradouro. Como é o caso, por
exemplo, da Sociedade Filarmônica Ramo da Oliveira, do distrito santamarense de
Oliveira dos Campinhos, erguida e regida por meu amigo e parceiro musical
Márcio Bandeira, que a fundou procurando, principalmente, fugir às intrigas
comuns que esses “clubes” por trás das escolas de música costumam realizar; e
advinha quem perde? Os músicos que não recebem o seu devido “valor”, em todos
os sentidos da palavra; o acervo, tão maltratado como a própria banda de
música, os instrumentos; a comunidade, e a sociedade, que perdem com a
destruição de todos os benefícios que uma Filarmônica carrega. Enfim, precisamos continuar aprendendo
com as Filarmônicas, com sua música típica e seus compositores, verdadeiros
eruditos que sofrem um desprezo horrível por escrever uma “música de
filarmônica”, quando poderíamos pegar qualquer dobrado ou marcha de um Estevam
Moura, por exemplo, retirar-lhe os títulos convencionais e encomiásticos, e,
colocando algo do tipo, Grande Marcha
Concertante para banda de música, Op. 1, n. 2, ninguém diria que não
pertença a um gênio do nível de muitos metres por aí. Ou quem é que se atreveria
a dizer que John Philippe Sousa não é um compositor erudito?
Por
fim, alegra-me muitíssimo dizer que uma de minhas lembranças mais espantosas –
uma verdadeira “memória base” – remonta ao início de minha pré-adolescência,
quando dos festejos em homenagem a Santo Antônio, eu ainda morava na cidade
Tanquinho, na Bahia, fui despertado pelos acordes poderosos que vinham da
Filarmônica local, a Sociedade Filarmônica Maria Quitéria, sobre o comando de
meu saudoso mestre Nilo Souza, um dos maiores professores e compositores de
banda de música de que já tive conhecimento. Lembro-me de ouvir e ver aqueles músicos
marchando com tanto vigor e ordenamento, executando a poderosa melodia do Dobrado n. 5, de autoria do maestro
Nilo, que ia à frente do grupo, para ordenar e reger, acompanhados pelo
estranho ritmo dos fogos e das pessoas que saudavam e aplaudiam, de suas portas
e sacadas, a banda que avançava sem pedir licença, às 5:00 da manhã, e de como
aquilo me encantou e se fez tão determinante para mim, como se fora um chamado,
uma verdadeira convocação das musas àquele menino que mal terminara uma década
de vida e que, daquele dia, ao início dos primeiros estudos musicais, não se
demoraria muito, pois, se existe algo nesse mundo que eu posso chamar de vocação, eu soube àquela madrugada.
Um comentário:
Seria um erro não postar ao menos um sincero agradecimento... Silvério, como não falar de algo tão maravilhoso e desconhecido, rico em emoções e tão pobre em reconhecimento? Como não oferecer aos seus leitores a oportunidade de conhecer rara beleza? Através do seu texto, tornar-se compreensível e compensável o esforço e a dedicação dos grandes mestres das Filarmônicas. Colocamo-nos na condição de Filhos de Apollo,incumbidos em perpetuar a arte de Amando Nobre, H.Guerreiro, A.M.do Espírito Santo e de tantos outros notáveis quanto desconhecidos: Osório Oliveira e Antônio Luz, Isaias Gonçalves e Nilo Souza, tantos outros e outros que foram abduzidos para o universo flarmônico nas alvoradas e procissões compondo, regendo, ensinando e tocando a banda.
Bravo amigo, muito obrigado!
Salve as Filarmônicas...
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