A dimensão necessária, de João Filho (Mondrongo , 2014). |
Duas notícias, envolvendo amigos poetas,
deixaram-me muito feliz hoje: a primeira, a notícia de que João Filho, poeta
baiano, um dos melhores de sua geração, foi vencedor do Prêmio Biblioteca
Nacional 2015, na categoria poesia, com o livro A dimensão necessária (Mondrongo, 2014). Uma graça não só de João
Filho, mas de toda literatura baiana, cada vez mais necessitada de grandes
representantes. E João Filho cumpre muito bem esse papel.
Poeta sério, da métrica, da rima, do soneto bem
trabalhado, João é um mestre em imagens que procuram revelar o mundo através de
uma poesia concisa e muito bem pensada. É certamente um poeta que não se prende
ao vago, ao meramente sensorial, quando não a um suposto surrealismo sem
significado, típica maneira de se fazer poesia de muitos também premiados, mas
sem nenhum mérito. Os poemas de seu livro, A
dimensão necessária são muito bem realizados porque são frutos de um
talento que não se contenta consigo mesmo, fazendo-se através de um
aperfeiçoamento constante, cujo resultado é uma poesia que não perde o seu
tino, sua comunicação, nem com seu leitor, nem com ela mesma. Não é resultado
de uma sobreposição de imagens ao acaso, mas de uma construção extremamente
elaborada: é Engenho e Arte mesmo, no melhor sentido e no resultado mais
primoroso.
Mas como o trabalho de um poeta fala muito mais
e melhor do que qualquer admirador empolgado e bajulador, vamos lá:
O sol do Amor é implacável,
tudo mostra
de uma só vez – detalhes sutis e invisíveis
e a totalidade do ser. Pela encosta,
os limites da noite largam seus possíveis
nas raias da manhã. Reflexo da resposta:
de uma só vez – detalhes sutis e invisíveis
e a totalidade do ser. Pela encosta,
os limites da noite largam seus possíveis
nas raias da manhã. Reflexo da resposta:
você. Seus gestos, cheiro, aparições incríveis,
lampejos com que o eterno bruscamente arrosta
lampejos com que o eterno bruscamente arrosta
meu coração, dramatizando voos
risíveis.
O sol do amor enxerga o que na ausência é falha,
e sabe perdoar imperícias, desânimos
O sol do amor enxerga o que na ausência é falha,
e sabe perdoar imperícias, desânimos
dos amantes, e alaga-os com
suas migalhas.
Aqui o quarto, culminância dos topônimos
onde Amor entrecruza num ponto da malha
Aqui o quarto, culminância dos topônimos
onde Amor entrecruza num ponto da malha
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O Corpo Nulo, de Lorena Miranda Cutlak (Mondrongo, 2014) |
A segunda notícia foi a de que o livro “Corpo
Nulo” (Mondrongo, 2015), da poetisa paraense, Lorena Miranda Cutlak, mas
que adotou São Paulo como lar, será lançado dia 20 de novembro.
Lorena é, para mim, uma das coisas mais
verdadeiras que conheço em termos de poesia; minha admiração por ela vem desde
os primeiros versos que li e que foram se aperfeiçoando até chegarem ao nível
de se dizer: “Eis aí, o resultado do talento e da depuração”. Lorena é mãe,
dona de casa e escreve sobre Dostoievsky, mas se engana quem espera encontrar
em seus versos uma profusão de panos-de-pratos, as desventuras de uma pobre
mulher cuja importância se perde quando o marido, a filha e o lar não precisam
mais dela, mesmo que por alguns momentos, ou uma intelectual de versos
herméticos e linguagem intransponível... Seus versos têm a fluidez de quem se
vestiu da melhor tradição, e da maneira mais simples de se dizer as coisas
grandes e realmente necessárias.
Por exemplo:
Touro louríssimo, teu torso
forjado à força de antiquíssimas
batalhas sem ouro vencidas
vem dissolver-se nas pupilas
com que fulminas, sem esforço,
pedra selvagem e estrela fria.
forjado à força de antiquíssimas
batalhas sem ouro vencidas
vem dissolver-se nas pupilas
com que fulminas, sem esforço,
pedra selvagem e estrela fria.
Com sempre mansa maestria
de quem não mede a própria força,
pois que de si mesmo deposto
para melhor legar-se à lida,
teu passo é torto à revelia
da paz que emana de teu rosto.
de quem não mede a própria força,
pois que de si mesmo deposto
para melhor legar-se à lida,
teu passo é torto à revelia
da paz que emana de teu rosto.
Segues em frente, e em frente, e após
tua marcha zonza e imperativa
eis que desponto, a persegui-la,
sombra no rastro de um sol: touro,
tu que me arrastas pela vida,
que houve entre a noite e o nosso encontro?
tua marcha zonza e imperativa
eis que desponto, a persegui-la,
sombra no rastro de um sol: touro,
tu que me arrastas pela vida,
que houve entre a noite e o nosso encontro?
As madrugadas mal cabiam
dentro do vão da minha fome,
eram chacinas repetidas,
todas idênticas, e o corvo
de uma Lenora mais antiga
vinha pontuá-las com o agouro
dentro do vão da minha fome,
eram chacinas repetidas,
todas idênticas, e o corvo
de uma Lenora mais antiga
vinha pontuá-las com o agouro
de seu “Não mais”, e eram sozinhas
as minhas lágrimas de assombro.
Eu não sabia que tu vinhas,
ponto de luz sobre o horizonte,
e às vezes dava por perdida
essa batalha contra a foice
as minhas lágrimas de assombro.
Eu não sabia que tu vinhas,
ponto de luz sobre o horizonte,
e às vezes dava por perdida
essa batalha contra a foice
de um desespero que trucida.
Touro de luz, forma de amor
a um tempo íntima e inaudita,
tu, a caminhar como caminhas,
com a retidão dos homens sós,
soubeste ver nas entrelinhas
Touro de luz, forma de amor
a um tempo íntima e inaudita,
tu, a caminhar como caminhas,
com a retidão dos homens sós,
soubeste ver nas entrelinhas
do desencanto o meu melhor,
espécie de novo batismo
dentro das águas de teus olhos
místicos, límpidos: teus olhos
lançando, em busca de um destino,
sua chama em torno — são meus sóis.
espécie de novo batismo
dentro das águas de teus olhos
místicos, límpidos: teus olhos
lançando, em busca de um destino,
sua chama em torno — são meus sóis.
Touro louríssimo, antiquíssimo,
esse céu triste, que revolves
em teu sonho sôfrego, habita
também as mágoas de meu corpo —
é o mesmo céu que, enfim, nos liga
pelo tendão da angústia, exposto.
esse céu triste, que revolves
em teu sonho sôfrego, habita
também as mágoas de meu corpo —
é o mesmo céu que, enfim, nos liga
pelo tendão da angústia, exposto.
Como se não bastasse, temos aí o trabalho
desbravador da Editora Mondrongo, na figura de seu editor, o poeta Gustavo
Felicíssimo. Visionário, Gustavo tem nos mostrado que há poesia no Brasil. Não
essa divulgada, nas mídias (quando divulgada) ou nos livros didáticos (nos
ensinando que poesia é, no mínimo, algo irresponsável), mas poesia em sua
verdade. E a verdade grita!
Parabéns ao João. Parabéns à Lorena. Parabéns ao
Gustavo e à Mondrogo. E que fique registrado aqui o meu MUITO OBRIGADO... Eu
sou um leitor de poesia; sou eu, assim como tanto outros, que ganho com a
vitória de vocês.
Um comentário:
Gratíssimo por tudo, meu caro poeta Silvério Duque. Quando vier a Salvador, me avise, e vamos tomar um café. Abração fraterno.
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