A máscara sem face:
a arte do embuste através dos
tempos
no livro da mentira de gabriel liiceanu
ou UMA BREVE HISTÓRIA
DO DIABO
aosprofessores
e amigos
José Jerônimo de Moraes e Elói Barreto
O Prince de l’exil, à quil’on a fait tort,
et qui, vaincu,
tourjourste redresses plus fort...
CHARLES BAUDELAIRE
O que me interessou nos marxistas e o que aprendi deles são
os seus métodos... Todo o nacional-socialismo está contido neles... As
sociedades trabalhadoras de ginástica, as células de empresas, os cortejos
maciços, as brochuras de propaganda escritas especialmente para serem
entendidas pelas massas, todos esses novos meios de luta política foram quase
integralmente inventados pelos marxistas. Eu não tive senão de apropriar-me
deles e desenvolvê-los, arranjando para mim desse modo o instrumento de que
tinha necessidade.
ADOLPH
HITLER
D
|
emônio, Satanás, Mefistófiles,
Belzebu, Anticristo, Pazuzu, Baal, Belfegor, Asmodeu; Capeta, Cão, Bode,
Capiroto, Cramunhão; Azarape, Coisa-Ruim, Sete-peles, Impostor, Mofento,
Máscara-sem-rosto – esse eu roubei do subtítulo do livro de Luther Link–,
Aquele-que-nunca-se-viu; Arrenegado, Mentiroso, Chifrudo, Pé-redondo,
Pé-cascudo, Pé-de-cabra, Pata-preta, Coxo; Príncipe das Trevas, Anjo Caído,
Dragão, Serpente, Besta; Jurupari, Anhangá, Barzabu, Beiçudo, Rabudo,
Condenado; Catimbozeiro, Temba, Tisnado – esse eu retirei do Grande Sertão: Veredas – Tendero,
Provinco, Sapucaio, Zarapelho, Cabrunco, Estupor, Exu... ou, simplesmente,
Diabo. Não importa o nome ou epíteto atribuído, ele sempre será uma figura
controversa por natureza e elusivo em suas mais diferentes formas e maneiras de
se apresentar e de ser visto. Algo, todavia, é impossível de se desassociar de
sua figura: a capacidade intrínseca de enganar e de fazer enganar. A própria Bíblia chama-o de “Pai da mentira” e é
nesse contexto que a presença do Diabo, através da história, permanece linear e
indissolúvel, embora as maneiras desse embuste primordial se apresentar sejam,
também, elusivas e diversificadas. Com o tempo, a própria demonização será uma
arma a serviço do próprio Lúcifer; uma arma eficaz e muito mais perigosa do que
se imagina... Uma coisa é certa, estamos à sombra do Diabo, como afirmara o
Apóstolo do Amor, no quinto capítulo (versículo 19) de sua primeira Epístola: “Sabemos que somos de Deus e
que todo o mundo jaz no maligno”. Não estamos somente à sombra do Inimigo, mas
de sua influência. E, se isso é fato, então... salve-se quem puder.
I
As duas primeiras coisas que se podem concluir a respeito do
Demônio é o seu papel sempre presente nos principais acontecimentos que os
Textos Sagrados descreveram, ao tempo que este mesmo papel vem ganhando maior
importância e abrangência. Ele estava presente na queda do homem e teve participação direta nisso – incutindo-lhe o
mesmo tipo de pecado que também o fizera cair –; assim como na primeira
profecia que o Livro Sagrado nos apresenta, seu papel vai além de um mero
adjuvante; sua participação é fundamental para tudo que viria até o fim dos
tempos, inclusive sua própria aniquilação.
O
Diabo, ao longo da história, também assumiu muitas formas, desde as mais
elaboradas aos disfarces mais ridículos, e acumulou mais funções do que pode
imaginar a nossa vã teologia. Ele já passou de procurador a tentador, acusador
e adversário; Legião ou mero espírito impuro; de Gênesis a Jó, do livro do
profeta Zacarias às Cartas do
apóstolo Paulo, não lhe faltaram nomes, atribuições, práticas... Polimorfo e manifesto, o Diabo já foi
serpente, dragão, gato preto, lobo, sapo, mulher, bruxa, feiticeiro,
maniqueísta, vampiro, modelo de rebeldia para os ultrarromânticos, mostro do
cinema, astro do rock, político
brasileiro... Em algumas tradições ele sequer era danoso, em outras foi o
próprio inverso do Deus altíssimo, antagonista da Divindade; corretor de
pecados antes mesmo que se atribuíssem a ele, praticamente, todos os males da
terra. Para Santo Agostinho, Deus ter permitido a existência de um Mal absoluto
(e o Diabo muitas vezes incorporou esse personagem), era para que, do Mal
absoluto, se extraísse o Bem absoluto. Por considerarem a mulher um ser
naturalmente propenso à volúpia, muitos foram os religiosos que “diabolizaram”
o sexo oposto; o corpo de uma mulher era uma verdadeira porta de entrada para o
Inferno, e o Diabo não se poupou de se apossar, inúmeras vezes, delas e de
torná-las, aos olhos dos caçadores de demônios, bruxas ou grandes devassas.
Porém, mesmo Anjos e Santos viram-se aos trancos e barrancos para fugirem de
sua influência terrível, como Teófilo de Adana, que, antes de se converter ao
Cristianismo, teria feito um pacto com o Mafarro; Santo Agostinho, que resistiu
ao Livro dos Vícios, escrito pelo
mesmo São Teófilo, mostrado a ele pelo próprio Chavelhudo; até Lutero falou de
seus muitos embates com o Tinhoso.
Na
Mesopotâmia, ele tinha asas, patas de leão, rabo de escorpião e um pênis de
cobra. Na Grécia e Roma antigas, ele era Hades, meros sátiros, espíritos
errantes ou mesmo um Tirano. Da Idade Média ao Renascimento, assumiu formas monstruosas:
ele tinha pelugem negra, com dentes afiados e bocas múltiplas para devorar
quantos pecadores fossem precisos, como em um quadro de Fra Angélico
(pertencente ao Museu de São Marcos, em Florença). Na pintura Inferno: a queda do Maldito, de Hieronymus
Bosch, ele tem asas de morcego, pés de pássaro, cara de porco e bigodes
felinos. Em um vitral da Catedral de São Pedro de Beauvais, datado do século X,
ele já está dotado de todos os ícones destinados a impor medo e asco: chifres
enormes, presas grandes e afiadas, olhos esbugalhados dentro de um olhar
faminto e cruel, pele vermelha, etc. Já Andrea da Cella, por exemplo, põe
semelhante rosto num belo corpo nu e sedutor de mulher a atentar os peregrinos,
em um afresco do início do século XVI... Na verdade, os artistas, ao longo de
séculos, sempre se empenharam em retratá-lo das formas mais hediondas – vejam,
por exemplo, como ele é “visto” pelos pinceis de Giotto de Bordoni, Luca
Signorelli, Michel Pacher ou Francisco Goya –, todos, procurando traduzir em
seu exterior, a sua imensa e interna fealdade.
Inspirados
pelas ideias de Maniqueu, e se baseando em uma espécie de dualidade universal
entre Bem e Mal, mesmo cristãos, a exemplo dos Cátaros, tiveram suas práticas
atribuídas ao lá-Ele, e por isso foram terrivelmente reprimidos pela própria
igreja romana. Aliás, correntes dualistas, principalmente entre os séculos III
ao XIII foram responsáveis por boa parte da elaboração da figura do Demônio
como hoje a conhecemos. No século V, o Papa Leão, o Grande, vociferou contra
maniqueístas e cátaros, afirmando que, em sua insanidade dualista,
encontrava-se a própria fortaleza de Satanás, onde ele reinaria absoluto e
triunfaria insolentemente. Relegada à categoria de heresia cristã, o
maniqueísmo e supostos seguidores, como os cátaros, constituíram-se no primeiro
grande exemplo de perseguição cristã em grande escala, mesmo antes das
Cruzadas, da Caça às Bruxas ou aos Hereges. Foi durante esta época que, já
coincidindo com a solidificação do Cristianismo como religião mais que
estabelecida no Ocidente, o Concílio de Latrão, entre tantas anátemas contra os
supostos hereges – isso incluía até, entre tantas “medidas disciplinares”, a
condenação do clero grego e a exortação às Cruzadas – instituiu a
obrigatoriedade, pelo menos de uma vez no ano, da Confissão aos seus fieis adultos de ambos os sexos. A medida não
visava, entre tantos outros objetivos, menos que a vigilância contra o Diabo –
pois quando se fala em pecado, a proximidade do Capeta era algo iminente – e
sua influência devassa, mesmo entre os grupos ditos cristãos, como foi o caso
cátaro, precisava ser vigiada e combatida, tanto no corpo quanto no espírito.
Mas
será a partir do século XII que o poder do Demônio parece ganhar um status como nunca havia antes alcançado:
é a época da perseguição aos seus seguidores mais fiéis e poderosos, é a caça
aos satanistas, aos hereges e às bruxas. A verdade é que, já no início da baixa
Idade Média, a Igreja condenava a bruxaria menos em sua prática do que a crença
em sua eficácia. O reconhecimento do poder maléfico seria o mesmo que
reconhecer a existência de um poder oculto equivalente
ao poder do Deus Altíssimo... e à Sua vontade eterna. Eles eram vistos como
embusteiros e meros idiotas iludidos pelas artimanhas e superstições de um mal
menor; essas sim, as superstições, altamente condenáveis e perseguidas... isso,
no entanto, mudará. A partir do século XIII, a Inquisição, nascida do Excomunicamus, de Gregório IX, trilhará
um caminho, até hoje, controverso na luta contra o poder e influência do
Excomungado. Muitos acreditam que, como acontecerá ao longo de todos os
períodos da história, foi um mal usado para combater outro Mal. Não podemos,
entretanto, deixar de aceitar o fato de muitos cultos satânicos ou mesmo
“reuniões anticristãs”, por assim dizer, constituíam-se, sim, em ações
criminosas, onde o assassinato – inclusive o infanticídio –, eram práticas
recorrentes – e a morte e uso de tantos animais para práticas satânicas não
constituiriam menos do que um dos primeiros casos de saúde pública de que se
tem registro – e coisas como essas, até mesmo por um dever moral, necessitavam
de combate imediato, pois tinham tomado dimensões muito maiores do que se
esperavam, constituindo um perigo tanto ao mundo espiritual da Igreja, quanto
ao mundo ético e moral dos homens. Para piorar, tais ações, do contrário do que
pensam muitos, eram praticadas por membros das mais diversas classes sociais: o
uso das praticas satânicas poderia advir das mãos da mais humilde camponesa,
como de alguém como Catarina de Médici.
Toda
uma literatura, seja ela a favor ou contrária às práticas satânicas, foi
produzida neste período; tanto se ensinava a combater um bruxo, como se era
possível encontrar algum texto que ensinava, a quem assim o quisesse, a se transformar
em um bruxo; tanto se podia aprender a enfrentar o Sujo cara a cara, como se
era possível invocá-lo e dele tirar proveito. É dessa época as bulas SummisDesiderantesAffectibuse Cœlietterrae, além do famigeradoMalleusmaleficarum. Também são dessa época
relatos extraídos – a maioria sobre os rigores de interrogatório – de práticas
satânicas diversas; algumas carregadas de uma crueldade realmente infernais; já
outras repletas de imagens ridículas, mas todas, ao final das contas, deixando
claro duas coisas: o incrível crescimento da credibilidade do Diabo entre estas
pessoas, mesmo sobre um rigor religioso tão grande, e de como, em determinado
momento, o Anjo Caído rivalizou diretamente, em grau, inclusive de importância,
com o Deus que, até então, era-lhe antagônico, mas não igual em poder. Para se
tornar um bruxo ou uma bruxa, ou meramente adorar o próprio Belzebu, valia de
tudo: automutilação, assassinato de recém-nascidos, orgias sexuais que levavam
em consideração não só o número de praticantes, mas as “espécies” que dela
participavam. Mas, nem tudo era (pelo menos aos olhos mais leigos) tão terrível
quanto parecia: um conhecido sinal de adoração ao Condenado consistia em
beijar-lhe o ânus... os valdenses, por exemplo, na falta do próprio Satanás para
tal prática, contentavam-se com um bode mesmo. Para além do ridículo que isso
possa parecer, há algo muito terrível a se elucidar aqui: o quanto que os
seguidores do Diabo estavam dispostos a se humilhar para agradá-lo, e de como,
diferentemente do que se espera de Jeová, por exemplo, o Lá-de-baixo não tem o
menor respeito por seus adoradores. Mesmo no Renascimento, as práticas de
bruxaria e satanismo se fizeram mais presentes e diversas; mas, será justamente
nessa época que o Diabo começará a sofrer um suposto declínio que dura até os
dias de hoje.
Com as
descobertas de novos mundos e crenças, Lúcifer teve que dividir espaço, e mesmo
rivalizar, com centenas de entidades que, em maior ou menor escala, foram lhe
conferindo menor credibilidade e poder do que as atribuídas a ele desde a Idade
Média. Mesmo assim, em lugares como em nosso Brasil-colônia, o Diabo servia de
justificativa à ação dos missionários bem como à validação de medidas
repressivas que a Inquisição fazia valer com toda a força, pois ninguém conferiu
mais ao Demônio maior estatuto de grandiosidade do que as Reformas e
Contrarreformas que surgiram entre os séculos XVI e XVII. Mesmo assim, é
difícil falar do Diabo, bem como de todo o seu poder, para alguém que não
acreditava em sua existência ou que já possuía um número tão grande de outros
capetas que mais um não representaria
nada; nem em medo ou numa possível adoração. O resultado disso é que, na
cultura aqui do Brasil, o Diabo se insere muito mais nas ações do cotidiano,
ameaçando muito mais padrões sociais do que o Reino de Deus propriamente dito.
Todavia, o Diabo é astuto e metamórfico, e essa inserção que ele faz no dia a
dia das pessoas só supervaloriza o fato de ele estar diretamente associado ao
comportamento e às atitudes mentais das pessoas... e isso é um problemão. Mesmo
perdendo sua imagem de arqui-inimigo de Deus e, muitas vezes, sendo visto como
um tentador medíocre e uma figura risível que poderia ser facilmente enxotada
(seja com uma simples oração ou com uma boa dedada no... deixa pra lá),
tornando-se uma personagem inserida no cotidiano das pessoas; isso equivale a
dizer que o Diabo diminuiu para crescer, ou, em outras palavras, tão logo
perdeu seu caráter aparentemente onipotente, mais próximo ficou do homem para
atentá-lo e enganá-lo.
Do
século XVIII para a era das Revoluções Burguesas foi um pulo, e a decadência do
Inimigo rolava ladeira a baixo. A busca desenfreada que o Iluminismo nutria por
uma Razão que tudo explicava, tirou do Diabo qualquer forma de se apresentar
como entidade autônoma... Os românticos, que não tardariam a chegar,
torná-lo-iam um símbolo de sua rebeldia e enfrentamento do mundo. O Diabo não
precisava ser seguido de fato (muito menos temido). O Príncipe das Trevas era
apenas uma alegoria desprovida de poder ou influências reais. E, na segunda
metade do Século XIX, a coisa desandou de vez: a máquina e a ciência tomaram o
lugar da Divindade; o homem tornou-se perdido e vazio; niilista como nunca, já
não havia razões ao homem para adorar e, muito menos, temer seja lá oque ou quem fosse. Havia teorias evolucionistas, seres microscópicos,
tabelas químicas, leis da gravidade e relatividade, havia Marx, Nietzsche,
Freud... Pestes antes atribuídas ao Diabo eram resultantes de infecções e
doenças bacterianas; sintomas, antes pertencentes às possessões, agora
pertenciam à Psicanálise. No século XX, foi o cinema se apoderou do Demônio,
ele foi Nefisto, Drácula, Zé do Caixão; vomita vitamina de abacate, vira alvo
de perseguição e não mais perseguidor, é derrotado pelos cavaleiros do Zodíaco
(numa versão onde se mistura com a mitologia grega e o mangá japonês). Da segunda metade do século XIX para cá, Deus e o
Diabo foram vitimados... mas, apesar de tudo, o Diabo ganhou com isso: o Papa
Bento XVI precisou afirmar: o “Diabo existe” – oh, quão infelizes são estes
dias, em que até o Papa precisa dar uma mãozinha à imagem do Rabudo. Nos canais
religiosos e nas igrejas pentecostais ele ainda é responsável pelos males do
homem, mas não mais como arquiteto de todos os malefícios, mas o “culpado”,
pelos pequenos danos e incômodos da vida: álcool, cigarros, drogas, traições
conjugais, xeques sem fundo... Como afirmou o professor Leandro Karnal, o Diabo
passou “do atacado para o varejo”. Contudo, é justamente aí que mora o grande
perigo.
E como
“viver é muito perigoso”, a literatura de nosso tempo também se valeu da
decadência do Cramulhano. Em Grande
Sertão: Veredas, por exemplo, o Demônio é resultado de suas próprias
metamorfoses, quando não, ele sequer existe. Hermógenes é o Demônio de
Riobaldo, a trilha da vida é o próprio caminhar pelas estradas incertas e por
isso mesmo demoníacas. Todo o livro do Guimaraes Rosa é um discurso alegórico
sobre o Diabo, sua presença, manifestação, transformação e aniquilação – ele, o
Diabo, vive nos crespos do homem; é o próprio homem “arruinado”. Mas a luta
contra o Tentador não é uma luta improvável, pelo contrário, ela é continua e
possível; a luta contra o Demo é uma luta contra nós mesmos. A realidade,
então, seria apreendida nas travessias da vida para nela nos livramos do
Maléfico, um Horror que se utiliza de muitos caminhos e portas, todos findando
nas almas dos homens. Quando trilhamos “caminhos certos”, expulsamos nossos
próprios diabos, pois O-que-nunca-ri não é uma possessão, não está em nós como
uma entidade autônoma e poderosa... o Diabo, para Riobaldo, somos nós mesmos...
Contudo, sendo assim, poderia haver, de fato, uma forma pior de manifestação
por parte do Demônio...?!
Como
figura híbrida, o Diabo se reinventa, aprende a ganhar mais se ocultando,
fazendo-se “zé ninguém”, torna-se cada vez mais astuto, à medida que tudo nele
é posto à prova. Mas, ninguém duvide que ele, Satanás, é o Anjo Caído, o senhor
do Inferno, o representante do Mal absoluto e, para muitos, o próprio oposto do
Deus Altíssimo. É necessário nos certificarmos de uma coisa: o Diabo merece
credibilidade; do contrário, tornar-se-á uma figura muito mais perigosa quanto
mais o considerarmos menos significante... Ora, ele é o “Pai da mentira”, e é
justamente sobre o uso da mentira, diabólica ou meramente política, que
gostaria de falar agora; e, ao falar daquilo com o qual o Diabo mais se vale,
equivale a falar dele, e de como ele está
muito mais presente e ativo do que nunca.
Da Mentira de Gabriel Liiceanu, tradução de Elpídio Mário Dantas Fonseca. Vide Editorial; São Paulo, Vide Editorial, 2014. |
II
Em um
livro bastante emblemático para tudo isso que estamos a dizer, o filósofo
romeno Gabriel Liiceanu, nos dá um bom exemplo da mentira em seu uso, digamos,
pragmático, a começar por um questionamento que, em certo tempo,
apresentar-se-nos-á, também, como uma afirmação: o de como pode ser possível que, da essência da língua, faça parte a
perfeita ambiguidade de sua utilização...?!
Se a
levarmos, como afirmação, para uma rápida análise teológica do Cristianismo,
equivaleria a perguntar como que, pelo mesmo recurso da palavra, pode-se ver Deus criando o universo e tudo o que nele
existe – e, inclusive, por ela fazer-se encarnado na figura do Filho –, e, ao
mesmo tempo, o homem, através da própria palavra, deixar-se cair nas tentações
de Satanás? Liiceanu, em tempo, não prefere empregar tal ideia em seu livro Da mentira – no original: Despre minciună –, traduzido, aqui no
Brasil, entre tantas outras pérolas da filosofia romena, pelo meu amigo Elpídio
Mário Dantas Fonseca, mas limita-se à análise tanto política quanto filosófica
da mentira, dentro de um uso tão prático quanto necessário ao homem, o único,
dentre todos os animais que, segundo Liiceanu, permite-se a tal ato, pois o ser
humano é “o único que tem parte em ‘um algo’ que pode exprimir” e, uma vez se fazendo
exprimir, pode “mover-se em duas direções totalmente opostas”; este algo,
obviamente, é aquilo que os gregos chamavam de γλώσσα, e que
nós conhecemos como “língua”.
Mas,
logo em seguida, Gabriel Liiceanu não vê, para este curioso fenômeno da ambiguidade
da linguagem, outra explicação mais contundente que não a perversão da língua, enquanto instrumento
divino, pelo uso que os homens passam a fazer dela. Isso equivale à
afirmação da liberdade e do decaimento do homem frente a Deus pelo pecado original e, por isso mesmo,
indigno de se utilizar de tal instrumento, desvia-o de seu “modo originário de
emprego”. Assim, sendo o homem livre e decaído, a utilização da linguagem por
ele não poderia ser outra a não ser pela ambiguidade que o leva a passear tanto
pelos caminhos da verdade quanto às veredas da mentira. Isso também significa
que o uso da mentira, segundo
Liiceanu, não pode ser nunca entendido, em sua essência, como algo positivo,
ou, em outras palavras, como o bem
produzido a partir da liberdade do homem, e, sim, como o mal resultante dessa mesma liberdade a qual o homem se faz
destinado.
O fato
de a palavra conter, em si mesma, preceitos que se negam mutuamente, serve-nos
como uma explicação mesma à decadência e às misérias da humanidade, através de
sua própria história. E a história humana, seja em um contexto teológico ou,
simplesmente, sociológico é, meramente, uma história de engodos e embustes,
onde apenas Deus aparece incólume a tal processo; Satã, como seu articulador
maior; e o homem como manuseador do instrumento de sua própria perdição. É por
isso, talvez, que, para Liiceanu, a mentira possa ser vista também sobre dois
aspectos: a mentira particular, onde,
segundo Liiceanu, “um homem engana outro” e a mentira vista em coletividade, onde “muitos enganam
outros muitos”, e esses muitos também se
deixam enganar. O que me faz lembrar
outro grande mestre romeno, o Nicolae Steinhardit, em O Diário da Felicidade, também traduzido, aqui em nosso país, pelo
Elpídio Fonseca, que afirmara que a idiotice
– talvez pelo próprio ato de enganar a si mesmo – é também um pecado. No
entanto, como nenhuma afirmação filosófica se faz valer sem provas ou, pelo
menos, análises, Gabriel Liiceanu não se faz de rogado e dialeta sobre a
mentira e, digamos assim, seu uso
pragmático; primeiro, através de três textos que, segundo ele mesmo, contém
o uso da mentira como construção de um programa moral político de grande
eficácia: Filoctetes, de Sófocles,
depois Hípias Menor, de Platão, e,
como não poderia deixar de ser, Maquiavel e seu O Príncipe... Em segundo, através da análise pessoal da história
recente de seu país, a Romênia, principalmente a dos anos em que a antiga
Dácia ficou submetida ao braço forte do Comunismo dos Ceauşescu.
O
primeiro trata de como a mentira é extremamente eficaz em roubar as mentes das pessoas, raptar
as suas consciências e levá-las a
fazer aquilo em que, sequer, acreditam ou deixaram de acreditar. É o caso em
que Odisseu ordena a Neoptólemo que convença o arqueiro Filoctetes a voltar à
guerra após ser covardemente abandonado em uma ilha por causa da picada de uma
cobra. O que Odisseu diz, exatamente, ao jovem Neoptólemo, filho do herói
Aquiles é: “τήνφίλοκτήτον ψυχήν λογίσίν ’έκκεψεις”, ou
seja, “Para captares com as tuas palavras o ânimo
de Filoctetes”, ou, melhor dizendo, “através das palavras se apossar da alma de Filoctetes”.
O que
se pode tirar, logo de cara, desta ordem é: aquele que antes era estorvo
torna-se a peça fundamental não só à guerra, mas a todo o processo de mudança
moral que o fim desse conflito parece trazer, e onde a honra, a força e a
coragem perdem lugar para um novo pensar
das relações humanas através do “reassentamento político” que a necessidade da
mentira traz para todos os homens. É por isso que, mesmo discordando de tal
ordem, que vai de encontro a todas as suas crenças e preceitos éticos,
Neoptólemo não vê outra escolha que não seja a de ceder às ordens do astuto
Odisseu porque, antes mesmo de, com seus ardis, produzir algum engano a
Filoctetes, o próprio Neoptólemo já se fez enganar
pelas palavras desferidas pelo rei de
Ítaca. O que se conclui, obviamente, é que a mentira é uma corrente de muitos
elos, e nem sempre contínua; todavia, a sua eficácia mostrar-se-nos-á cada vez
maior e perigosa, pois, se pensarmos em termos Cristãos, o pedido de Odisseu
equivale a um dos melhores exemplos de uma brilhante ação do Demônio frente à
compreensão dos homens, pois, ao pedir que Neoptólemo não escolha o bem que está em seu ser, mas aquele
que será alcançado pelo mal que ele
fará à sua própria natureza e consciência, não se espera de Odisseu mais que
fazer o papel do próprio Diabo: que faz com que se ganhe, em um momento de
desonra, toda uma vida de suposta glória e honradez. A falsidade e a
contradição de tal ação são bem descritas nas palavras do Cristo que, no
Evangelho de Mateus – capítulo 5, versículos 29 e 30 –, afirma:
Portanto,
se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti;
pois te é melhor que se perca um de teus membros do que seja todo o teu corpo
lançado ao fogo. E, se a tua mão direita, escandalizar-te, corta-a a atira
longe de ti, porque te é melhor que um de teus membros se perca do que seja
todo o teu corpo arremessado ao Inferno.
O que Odisseu pede a Neoptólemo
é que ele salve seu olho ou sua mão, mesmo que isso signifique arremessar ao
Hades todo o resto de seu corpo e de sua alma. Odisseu fala de uma mentira que
conduz a uma salvação... O problema é o tipo de salvação a que se refere
Odisseu e das coisas que se deixarão de ser salvas em nome dessa mentira.
Ao
analisar Filoctetes, Gabriel Liiceanu
nos mostra claramente que não são os fatos
que conduzem a história, mas é pelas mentiras
que ela é construída. O que o leva à
análise do segundo texto: Hípias Menor,
de Platão. Neste caso, em especial, não se trata, simplesmente, da mentira em
si, e sim da eficácia com que se mente.
Esse diálogo equivale a um jogo dialético entre aquele que profere e ama a verdade,
contra aquele que se vale da mentira;
em termos gregos, teríamos aí a velha disputa entre o ‘ό αλεθής e o ‘ό ψευδες; a
oposição não poderia se fazer de melhor maneira, a não ser pelo equivalente
cristão daqueles que seguem a verdade
ou a palavra de Deus, contra os que se utilizam
dela.
A
conclusão do diálogo, no entanto, não poderia ser pior àqueles que, por muitos
motivos, querem se livrar da mentira ou dela manter grandes distâncias; assim
sendo, Liiceanu conclui de Platão que há dois tipos de mentirosos: os meramente mentirosos, que facilmente se
traem, e se arriscam, a um engano fácil, fariam parte do primeiro time; e
aqueles cheios de recursos, sábios o
suficiente para fazerem, da mentira, um recurso ilimitado, pois eles podem – e sabem – de muitas coisas, inclusive daquilo que é certo e errado – para que o seu mentir seja o melhor entre tantos outros – compõem, respectivamente, o segundo
time. Ora, toda criatura sobre a terra, com o mínimo de consciência, sabe o que
é certo e errado – e os relativistas mais do que qualquer outros, eu diria.
Quanto mais sabedor da verdade, maior a qualidade do mentiroso; quanto mais
conhecedor da palavra melhor serão os diferentes e antitéticos usos que dela
ele poderá fazer; o exemplo bíblico aqui é aquele que se encontra no Evangelho de
Mateus, mais precisamente no capítulo 4, entre os versículos 3 ao 11. O maior
conhecedor aqui equivale ao “mais competente na esfera do mal”: mata melhor
quem mais bem conhece o corpo; roubam seus dados àqueles que melhor conhecem os
recursos digitais para isso... Em outras palavras, aquele que pratica o bem
pode desempenhar o mal como nenhum outro, pois se utiliza do próprio bem para
isso; vejam, por exemplo, a ação dos donatários do “politicamente correto”, os
líderes dos grupos que defendem as “minorias”, e mesmo a ação de alguns
pastores e padres a professar um paraíso financeiro na terra ou um
marxismo-cristão dentro da Igreja. No final das contas, tanto para Platão, como
também para Aristóteles, e, obviamente, para o Cristianismo em sua forma mais pura,
o homem bom e verdadeiro é aquele que, podendo
fazer o mal, mesmo que voluntariamente, não o fará por ser essencialmente bom... Não viria a ser esse o conceito mesmo de
livre-arbítrio? Observem, por exemplo, que em todo caso de possessão (ou obsessão, como querem alguns teólogos)
há sempre algo em comum: a perda da
vontade. Seja na Bíblia, na literatura ou nas desculpas esfarrapadas dos
assassinos, a possessão atacaria diretamente tanto a liberdade de um indivíduo
quanto o seu livre arbítrio,
impedindo-o de exercer poder sobre seu corpo, sua mente e, consequentemente, de
exercer poder sobre suas escolhas, fazendo com que o bem não seja sequer uma
ínfima possibilidade e o mal se faça reinar pela força. A mentira deve ser uma
possessão, que, uma vez entrando pelo ouvido e se alojando no fundo da mente,
não dê ao indivíduo a mínima chance de exercer sua vontade ou seu conceito de
certo e errado.
Se
pararmos para pensar, o ser humano possui muitos medos, mas dois em particular
são primordiais tanto para o contexto filosófico que Gabriel Liiceanu trabalha
em seu Da mentira, quanto em nossas
reflexões sobre o Diabo: o medo do desconhecido
e o medo de se reconhecer como algo
tão mal quanto todo o mal que o homem pode temer. O primeiro é facilmente
reconhecido pelo homem e muitas coisas, nos mais diversos campos do pensamento
filosófico e da religião, existem para amenizar o assombro da humanidade diante
daquilo que está além da sua razão e compreensão. O segundo, entretanto, é
facilmente esquecido pelo próprio ser humano, por se chocar com espírito de
autossuficiência do ser humano, e suas mais diversas vaidades, o que
equivaleria a reconhecer-se dono das piores fraquezas de sua própria natureza e
se aceitar tão decaído quanto o próprio Demônio. O que se conclui então seria o
seguinte: Homem e Satanás deixaram-se cair por semelhante pecado, mas enquanto
um faz uso desse deslize para dominar, o outro se deixa dominar por não querer
reconhecer uma culpa ou fardo que acredita não lhe pertencer. Poucos lembram,
por exemplo, de que a primeira atitude do Cristo, já reconhecido como o
Messias, foi fazer-se humilde, como se pode ver no Evangelho de Mateus, mais
precisamente no capítulo 3, do versículo 13 ao 15...
Não sei
dizer, com exatidão, se foram os gregos que descobriram que o homem é o maior e
mais assustador de todos os assombros,
mas ninguém filosofou melhor sobre isso, nem atribuiu, a tal descoberta, um
termo tão preciso e pertinente como o de δείνον. O
homem, segundo reconhece Liiceanu, é o próprio τό δείνοτατον, a “coisa
assombrosa por excelência”, oriunda de um, digamos, horror vicioso, por assim dizer, porque nada parece mais assombroso
ao homem do que reconhecer que há forças maiores do que ele e que estão além de
sua compreensão e alcance e que, para piorar, acabam formando um mal que se
vale de muitos abismos por onde homem pode cair (e por onde o mal entrará), mas
todos findando na própria consciência ou alma humanas... Eis aí algo realmente
tenebroso. Tal reconhecimento vai imperar no ser humano um dialetismo muito
intenso por causa da antagônica problemática encontrada na já citada questão da
língua e de sua ambiguidade usual: o
respeito a tudo que estava além de sua compreensão, o que no Cristianismo
equivale ao temor a Deus, assim como ao fato de por ser, também, o homem, à
medida que, graças à sua própria condição, não poderia ser definido, algo que
escapa à própria compreensão do homem pelo homem; ou seja, o homem é também deίnoς, e o
que faria com que o homem resolvesse esse problema seria, no equivalente às
virtudes cristãs, a humildade.
Todavia, depois de séculos de história e política, o Marxismo, o Positivismo, o
Darwinismo, e tutti quanti,
arranjaram uma solução ainda mais assustadora...
A
partir daí, e reconhecendo de vez que a humanidade perdera sua inocência moral,
por assim dizer, Liiceanu chega à analise de seu terceiro e mais contundente
texto, um livro que, por si só, apropria-se de tudo que foi dito em Filoctetes e Hípias Menor e abre seu pensamento de uma forma não só filosófica,
mas (acima de tudo) pragmática, colocando a mentira como um elemento de real
necessidade à política e sua prática,
pois, para fazer isso, abre mão tanto daquela ética imprescindível aos helenos, quanto àquele temor metafísico comum aos homens do período
medievo – ou, nas palavras do próprio Gabriel Liiceanu, o pensamento ali
contido “se livra de dois momentos essências da tradição”: Aristóteles e a
Igreja –; o livro em questão é O Príncipe,
de Maquiavel.
Na obra de Maquiavel, onde o discurso político
passa a fazer parte – na prática – da própria política, o primeiro
reconhecimento, e o mais importante à eficácia de seu plano político, é o de
nos encontrarmos em um mundo profano e,
por isso mesmo, passível de fazer uso, entre tantas coisas, do próprio mal. Nesse sentido, Maquiavel não seria
um hipócrita, o uso do mal aqui não equivale à busca ou à afirmação de uma
falsidade, mas, pelo contrário, é o reconhecimento
da realidade: vivemos em um mundo decaído
e que se reconhece repleto de autossuficiência. Essa autonomia é essencial aos
objetivos almejados em O Príncipe,
que é o de reconhecer o enorme poder e diversidade do mal que, de tão
produtivo, pode servir, mesmo sem deixar de ser mal, ao próprio bem, e o de
encontrar alguém que possa pôr em prática tamanho potencial. No mundo decaído,
onde o homem se encontra, nada pode equilibrar melhor o caos proveniente dessa decadência do que o próprio mal e seu uso,
para que o bem puro, frágil e fujão, faça-se cada vez mais presente. Eis a
grande preocupação de O Príncipe, o
de como encontrar alguém que, segundo Liiceanu, faça-se disposto a
identificar-se com o mal e, ao mesmo tempo, almejar “atingir escopos nobres”,
se quase não há homens bons que não se afastam do mau, nem homens maus que
busquem caminhos de nobreza. Então, como encontrar esse alguém disposto a
fazer, pelo bem, o uso do mal? Esse homem preterido por Maquiavel, não é,
senão, o próprio homem moderno, mas
esse mesmo homem encontrará não só o maior obstáculo que ele poderia encontrar,
mas a mais demoníaca força que já pousou sobre a terra, depois do próprio Cão,
é claro, e cuja meta não é menos que a anulação do homem pela falsificação
daquilo que ele possui de mais subjetivo e, por isso mesmo, valioso; é uma
força onde a mentira odisseica e o mal reparador que Maquiavel tanto falava
não têm valor algum e se anulam completamente; uma força que, segundo Liiceanu,
é a própria espinha dorsal do mal, ou melhor, do Mal, “sendo empregada não
contra um inimigo externo que ameaça o ser de sua própria coletividade, mas
contra a própria coletividade mesma”; uma força que não é “uma síncope maléfica
posta a serviço do bem, mas o mal puro”, posto “a serviço” de nada menos que
“do próprio mal puro”... Essa força chama-se Comunismo.
III
O
Comunismo é uma ideologia; a pior delas, tanto pela sua abrangência geográfica
e histórica, quanto pelo uso prático e real de duas forças igualmente
destruidoras: a violência física e psicológica que não conhecem limites e
cujo único objetivo é a total e absoluta destruição das liberdades individuais;
é a destruição de todo o pensamento livre, de toda iniciativa, de toda ação
autônoma; em outras palavras: uma possessão.
Para
isso, o Comunismo se vale de uma característica muito comum às ideologias –
mas, no caso, em especial, do Comunismo, essa característica é acentuada
milhares de vezes aproximando-o do fervor religioso, mas daquela religiosidade
despropositada e fanática, cujo princípio não é mais ligar, e sim corroer moral e espiritualmente – que é a sua
capacidade de multiplicação e estimulação indefinidas, graças à sua demoníaca
eficácia no mascaramento das verdades e, consequentemente a este mascaramento:
seu modo preciso de alinhar aquilo que o filósofo romeno Andrei Pleşu, em seu
livro, Da alegria do Leste Europeu e na
Europa Ocidental – também traduzido, aqui no Brasil, pelo Elpídio Mário
Dantas Fonseca –, chamará de “realidades específicas” às generalizações do real. Dois bons exemplos disso são os inúmeros
livros didáticos (distribuídos pelo MEC), escritos por professadores das
ideologias de Esquerda e indissociavelmente despreocupados com qualquer coisa
que vá além delas, que, carregados de propaganda esquerdistas, vão minando as
mentes de estudantes das mais diferentes classes sociais e níveis escolares
contra tudo aquilo que não faz parte de seu pequeno mundo ideológico, e à
maneira como os valores familiares mais sólidos e tradicionais são
transformados em meros estereótipos de brutalidade e moral arcaizantes pelos
filmes brasileiros, quase todos produzidos e dirigidos por dissidentes de
partidos e grupos de extrema esquerda, ou por admiradores destes grupos e
partidos, e, telenovelas, principalmente, aqui em terras tupiniquins, pelas da
Rede Globo.
O mal das ideologias é um mal que
representa o Mal em seu sentido mais absoluto e que se vale da maior e mais
eficaz arma que o Demônio dispõe: a Mentira.
Não existe em nenhuma ideologia a necessidade de se buscar ou alcançar a
verdade mesmo que pelos caminhos mais indevidos. O grande interesse das
ideologias e, principalmente, a do Comunismo é a de fazer da mentira uma
verdade por mais falsa que ela seja, uma mentira que se passe mesmo por verdade
e, mais ainda, uma pseudo-mentira que se passe por verdade e verdadeutilizável, como quer Andrei
Pleşu. A verdade não tem, para o Comunismo, e demais ideologias, uma função
diferente que não seja a de manipular,
pois, e aí podemos nos valer do próprio Karl Marx, ideologias como o Comunismo
não possui nenhuma vontade de “interpretar o mundo” ou a realidade, mas
“transformar” ambos numa coisa assombrosa e absurda, capaz de transformar erros
em crimes e ambos em meios aceitáveis de dominação; é a interpretação errônea
das coisas sem que estas saiam de seu lugar ou estado. O próprio Comunismo, com
o tempo, transformou-se de uma ordem linearizada e sanguinária em uma união de
subgrupos moderados, como as feministas, os gayzistas, os multiculturalistas,
mas “de uma eficácia ainda mais insidiosa”, como nos diz Pleşu. O Comunismo, e
as ideologias, ainda nos alerta o autor de Da
alegria do Leste Europeu e na Europa Ocidental, são um mal tão grande que
não veem outra saída senão se multiplicar e criarem mais ideologias, ou mesmo
contraidologias, que não são combatidas senão por outras ideologias; é o circulo vicioso do Mal absoluto que está
no próprio cerne do Comunismo.
Gabriel Liiceanu viu este Mal crescer,
multiplicar-se e agarrar-se ao seu país, a Romênia, como um câncer se agarra a
cada célula de um corpo já debilitado. Ele, a exemplo de outros mestres e
conterrâneos seus, como Noica, Steinhardit, Pleşu... viu, e vivenciou, todo o
terror que um mal institucionalizado, como é o caso do Comunismo, é capaz de
fazer a toda uma nação e por muitas e muitas gerações. Liiceanu nos fala do
Comunismo como uma espécie evoluída de mentira que não tem mais o seu sentido
odisseico, passando para forma de mentira pura, institucionalizada e coletiva;
uma mentira que leva os homens a
acreditar, e, consequentemente, a errar,
quando creem, fielmente, que o Comunismo é algo bom e necessário às soluções de
seus mais diversos problemas; que, também, levou outros homens a uma crença tão
grande, ao Comunismo, que, em tempo, fizeram-se dispostos a morrer por ele e
pelas mãos dele; e estes, os “comunistas propriamente ditos”, que, sabendo e
reconhecendo o grande embuste que o Comunismo é, entraram na onda, por assim
dizer, profetizando e proferindo o falso, mesmo estando completamente
esclarecidos a respeito do grande mal que o Comunismo representa; estes, à
semelhança daqueles que, na Idade Média, em nome do Diabo, abaixavam-se,
humilhando-se – e não em estado de humildade – beijavam o ânus de um bode;
estes que, igualmente àquelas mães que levavam seus filhos engelhados ao
sacrifício satânico, como retratou Goya; estes foram, segundo o próprio
Liiceanu, os emissários da Morte e os próprios comensais do Mal, responsáveis
diretos da disseminação do Comunismo mundo a fora.
Podemos
entender tudo isso a que estamos a falar de duas formas: a mentiraproferida pela ideologia ou a mentira quea própria ideologia éedissemina, porque uma ideologia
nada mais é do que uma mentira dita às claras e sustentada pela própria
previsibilidade que a mentira traz em si mesma – parafraseando Andrei Pleşu.
Não obstante, como se dissemina a mentira tida por verdade? De duas maneiras: pelo terror, à maneira leninista; e, da
forma mais eficiente em muitos aspectos, pelo
parasitismo que o Comunismo impõe às instituições que lhe são naturalmente
contrárias, como à Igreja, às Universidades e mesmo ao Exercito... à maneira de
Antônio Gramsci. Pelo terror, há
aceitabilidade da mentira por não se encontrar nenhuma saída que não seja
aceitá-la. Pelo parasitismo, se
aceita a mentira porque ela não é mais uma mentira pura, mas uma mentira que se
passa por verdade e, à medida que se aceita a mentira por verdade, é aceitável
mentir para si mesmo, por conveniência ou comodidade... Sobre esse tipo de
mentira, Liiceanu é catedrático:
Uma vez
que aquele a quem se mentiu mente, a mentira no comunismo é uma pseudo-mentira [grifo nosso], é uma
mentira falsa, não é uma “verdadeira mentira”. Às mentiras se tira sua força de
engano porque já não enganam ninguém. A mentira, por assim dizer, não tem
atração senão quando “ela pega”, por tanto tempo quanto aquele a quem se mentiu
é induzido em erro. Mas então quando é insolente, atrevida, inchada, quando
toma a forma “o branco é preto e o preto, branco”, e quando todo o mundo finge
crer aquilo que todo mundo sabe ser falso, a mentira já não é operacional no
sentido do pensamento e da prática política tradicional. Ela toma uma
originalidade sem precedente: o mentiroso mente para aquele a quem se mentiu,
mas este, por sua vez, mente para aquele que lhe mentiu (fingindo que crê). Mas
o mentiroso mente mais uma vez quando, mentindo, finge que não sabe que aquele
a quem se mentiu sabe que lhe foi dita uma mentira.
e completa:
Essa
mentira infinita de espelhos, à medida que anula a mentira como “mentira
verdadeira”, transforma esta em mentira
coletiva: todo mundo mente, à medida que uns dizem mentiras, mas os outros,
por não as denunciarem, deixam entender que as aceitam como verdades.
Sobre a força e eficiência
desse parasitismo comunista à la
Gramsci, extremamente capaz de se apossar das mais diversas e antitéticas
instituições, inclusive aqui no Brasil, escreve, incisivamente, em uma edição
de O Globo, de janeiro de 1999, o
professor e filósofo Olavo de Carvalho:
Por uma
coincidência das mais irônicas, foi a própria brandura do governo militar que
permitiu a entronização da mentira esquerdista como história oficial.
Inutilizada para qualquer ação armada, a esquerda se refugiou nas
universidades, nos jornais e no movimento editorial, instalando aí sua principal
trincheira. O governo, influenciado pela teoria golberiniana da “panela de
pressão”, que afirmava a necessidade de uma válvula de escape para o
ressentimento esquerdista, jamais fez o mínimo esforço para desafiar a
hegemonia da esquerda nos meios intelectuais, considerados militarmente
inofensivos numa época em que o governo ainda não tomara conhecimento da
estratégia gramsciana e não imaginava ações de esquerdistas senão de natureza
insurrecional, leninista. Deixados à vontade no seu feudo intelectual, os
derrotados de 1964 obtiveram assim uma vingança literária, monopolizando a
indústria das interpretações do fato consumado. E, quando a ditadura se desfez
por mero cansaço, a esquerda, intoxicada de Gramsci, já tinha tomado
consciência das vantagens políticas da hegemonia cultural, e apegou-se com
redobrada sanha ao seu monopólio do passado histórico. É por isso que a
literatura sobre o regime militar, em vez de se tornar mais serena e objetiva
com a passagem dos anos, tanto mais assume o tom de polêmica e denúncia quanto
mais os fatos se tornam distantes e os personagens desaparecem nas brumas do
tempo.
Após a
queda do Comunismo na Romênia, Gabriel Liiceanu chama-nos à atenção para o fato
de a corrupção ter se instalado por sobre o Estado político como uma doença tão
mordaz quanto o Comunismo, ou seja, o Comunismo deixou, após a sua destituição,
o mesmo clima desfavorável à verdade, encontrado na época em que ele tomou o
poder na Romênia, favorecendo, dessa maneira, às novas mentiras ou, pior ainda,
a um novo período comunista.
Nenhuma
sociedade, ou mesmo um indivíduo, deixa-se dominar por alguém ou algo, em sua
totalidade – não só de corpo, mas também de alma –, se esta sociedade, ou
indivíduo, já não apresente uma decadência interna e indissolúvel; dessa
decadência, alimenta-se de algo que é a própria expressão e extensão do
Demônio, como é o caso do Comunismo. Assim pensava Will Durant, assim me parece
fazer-se cada vez mais no Brasil, e assim alerta Liiceanu, para o caso da
Romênia. Sem a imposição de um mal depurador e de uso necessário, em nome do bem maior, velhas toxinas ideológicas
continuarão no corpus social
esperando o melhor momento para fazê-lo novamente doente. A corrupção existente
tanto na Romênia, que viveu um regime comunista concreto e destruidor, quanto
no Brasil, que há muito vive sobre o signo de um comunismo fantasmagórico, mas
eficientemente presente, não são mais do que um campo arado e semeado para o
nascimento de um novo regime demoníaco de mentiras e que se vale, entre tantos
outros recursos, da demonização
daqueles que, de uma forma ou de outra, lutaram contra ele.
***
A demonização se encontra no princípio
mesmo do Comunismo e sua atividade. O próprio Lenin ensinava que aos
professadores do Comunismo cabiam acusar, aos outros, daquilo que eles eram;
apontar aos outros crimes que eles não cometeram; crimes que, na verdade, eram
cometidos pelos próprios comunas. E, daí, cria-se esta rede infinita de
mentiras, “mentiras de espelhos”, como afirmara Liiceanu, mentira que, à medida
que anula a mentira como “mentira verdadeira”, transformando-a em mentira
coletiva, daí, fazendo com que todo mundo minta, e, à medida que uns dizem
mentiras, os outros, por não as denunciarem, deixam entender a si e aos outros
que aceitam tais mentiras como verdades. Todo comunista, seja ele um velho
político tarimbado ou um mero militante cooptado em um dos muitos criadouros de
maníacos esquerdistas a que chamamos universidade, está consciente de suas
mentiras, bem como de seus crimes, e, por isso, mente a respeito mesmo dessa
consciência. Ao lado dessa rede de mentira, advém uma fomentação de um ódio
igualmente ilimitado, um ódio para além de tudo que não pertence ao Comunismo e
que é parte de sua natureza. Não é o próprio Lenin que diz que o ódio deve ser
exercitado, que “precisamos odiar”, e segue, “o ódio é a base do Comunismo” e
que “as crianças devem ser ensinadas a odiar os seus pais se estes não forem
comunistas”? Não foi Mao Tsé-tung que escreveu que “o comunismo não é amor. É
martelo com que esmagamos o nosso inimigo”? Não foi Che Guevara, o queridinho
da mocidade universitária brasileira e da indústria de camisetas, que
pronunciou estas palavras: “O ódio intransigente do inimigo, que impulsiona o
revolucionário para além das limitações naturais do ser humano e o converte em
uma efetiva, seletiva e fria máquina de matar: nossos soldados têm de ser
assim”...? Não foi o próprio Karl Marx que, em um artigo publicado no jornal New York DialyTribune, de 22 de maio de
1853, meus caros defensores dos direitos humanos e das minorias, escreveu que
as classes e raças, demasiado fracas para dominar as novas condições de vida
“devem sucumbir”? Não foram essas as próprias palavras do Karl Marx: “A
principal missão dos outros povos (exceto os alemães, os húngaros e os
poloneses) é perecer no Holocausto
revolucionário [o grifo é nosso]... Esse lixo étnico continuará sendo, até
seu completo extermínio ou desnacionalização, o mais fanático portador da
contra revolução”?!
Além de um mentiroso, o Diabo é
um acusador, aliás, este é um de seus milhares de apelidos e uma de suas
centenas funções. Acusação e mentira são duas coisas que funcionam muito bem e,
no caso do Demônio, diria quase que perfeitamente. Acusar e mentir torna-se uma
dobradinha extremamente eficaz, principalmente quando a acusação do Diabo é
sobre seus próprios erros, mas, evidentemente, esses erros devem ser atribuídos
a outros, que, pelo próprio Diabo, devem pagar em seu lugar. Assim é com o
Diabo, assim será no Comunismo. É o mesmo que dizer que demonizar, depois de
mentir, é a segunda melhor arma do Capeta... imagine estas duas bombas atômicas
fundidas...!? Para justificar a sorte reservada aos seus muitos adversários e
desafetos, tiranos e ditadores, ao longo da história, sempre usaram da
demonização como meio de destruir a alma e a imagem de seus inimigos perante
seus súditos, escravos, asseclas, neófitos, puxa sacos... Segundo Rèmi Kauffer,
em L’herminerouge de Shangai,
ditadores como Stalin, Hitler, Pol Pot, Mao Tsé-tung, Fidel Castro, Mussuline,
Pinochet, entre outros, empenharam-se de maneira hercúlea na arte de
“luciferar” seus inimigos.
É
essencial aos regimes totalitários a negação de toda dignidade humana aos seus
inimigos, é preciso rebaixar seus opositores a níveis inferiores ao animalesco
ou mesmo à comparabilidade ao excremento. A absoluta negação de qualquer valor ao inimigo atesta a total falta de
vontade dos regimes totalitários em enxergar qualquer coisa que esteja para
além deles mesmos. Aos inimigos, a própria face do Demônio deve ser colada aos
seus rostos, mas pouco importa se estes demônios são judeus, mulçumanos,
capitalistas, ou meras pessoas que, dentre tantas muitas, não pediram mais do
que a verdade. Contra esses, há toda uma dialética da satanização em oposição
aos ditadores que são sempre vistos como heróis de um novo mundo, por mais
velho que ele seja, ou como deuses vivos e benevolentes, pouco importando os
inúmeros crimes por, eles, cometidos; há sempre um Füher, um Duce, um Pai dos Pobres, um Grande Timoneiro, um Farol do
Marxismo, um Filho do Brasil a tirar 40.000,000 de miseráveis de sua miserabilidade (papai Noel, um dia, perde o emprego), etc... todos, à maneira de Moisés satânico,
ardorosos e bondosos, a conduzir as massas oprimidas pela metralhadora ou,
simplesmente, pela mentira, à estrada da felicidade eterna onde, no fim, há
apenas a Terra das promessas inexequíveis.
Não obstante, ninguém, nem mesmo entre os nazistas e
fascistas do mundo inteiro, utilizou-se de forma melhor, nem mais abrangente,
da demonização como os comunistas,
pois como a demonização é primordial tanto ao pensamento, quanto à ação do Comunismo, ela se torna indissociável de sua prática e
abrangência. Lênin, por exemplo, não poupava acusações aos Socialistas
Democráticos, acusações que podiam ser imputadas ao próprio Lênin e que, por
isso mesmo, eram imputadas a outros. Stalin “luciferava” rivais aos montes, a
começar por Trotsky, que fora logo responsabilizado por todas as degradações do
mundo; um mundo que escroques como o próprio Stalin tratavam de degradar ainda
mais. Nem vou me ater aqui a nomes com Mao, ou casos como o ocorrido no Camboja
dos Kmers vermelhos, por razões mais
do que óbvias e conhecidas.
Tudo
isso serve para mostrar como, nos últimos dois séculos, o Demônio reinventou o
seu próprio poder de ação, tornando-se cada vez mais forte quanto mais se fazia
esquecido; uma força verdadeira e ativa. No século passado, através dos grandes
demônios ideológicos que sobraram da Segunda Grande Guerra: Nazismo, Fascismo e
Comunismo, este Lúcifer de três faces, à semelhança daquele descrito por Dante,
na sua DivinaComédia, e cujo rosto
mais cruel, mais sanguinário e enganador jamais fora exorcizado... Pouco
importa, no entanto, o modo com que o Diabo possa nos enganar, nos acusar, nos
ludibriar, se através de um sistema como o Comunismo, ou mesmo pela
metralhadora de um terrorista suicida, de um traficante de drogas; se pela
calúnia se seu vizinho, o olhar de desprezo que um abortista desfere a uma
criança ou um feto; se pela rede de corrupção que os políticos de qualquer
paizinho de meia tigela se utilizam para roubar seu próprio povo ou quando um
padre e um pastor apoiam um governo de raízes marxistas. O Diabo sempre estará
a se valer da mentira, principalmente, como nos alertou Baudelaire, a maior de
todas as que ele poderia inventar e se valer: a de nos fazer acreditar que ele não existe. Desta maneira, a criação de
descrentes de sua existência, acaba por gerar – nos fracos e decaídos corações
dos homens de pequena fé –, descrentes da existência de Deus... Eis aí, pela
força de sua mentira, a maior semente que o Diabo lançará no coração dos
homens: o Ateísmo.
Candeias, início da primavera de 2014.
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