segunda-feira, 15 de julho de 2013

MANUEL BANDEIRA: CRÍTICO...

Manuel Bandeira, visto pelos pincéis de Cândido Portinari










UM ALGOZ DA MEDIOCRIDADE:
MANUEL BANDEIRA E A CRÍTICA LITERÁRIA


Dir-se-ia que até a pedra
Morreu de sede e de sol…
JOÃO CABRAL DE MELO NETO

para Bernardo Solto, Walter Ramos
e Renato Suttana.










Manuel Bandeira é, acima de tudo, um poeta. E poeta maior e, diferentemente à definição que, com a modéstia digna dos grandes, ele mesmo tomou para si, tornou-se o arauto de uma poesia tão verdadeira que não foi menos que superior a todo o movimento de 1922, o qual o próprio Manuel defendeu, quando necessário, e se desvinculou, quando preciso.

Eliminados certos resíduos simbolistas e parnasianos, presentes em Cinza das horas e Carnaval, mas sem perder o que de melhor e essencial esta influência lhe poderia trazer, enquadrando-se na vertente “mais clássica” do espírito modernista que se formava após 1922 – aquela em que se processa uma fusão entre a confissão pessoal e a vida cotidiana –, Manuel Bandeira não se desprende de um lirismo que lhe é tão próprio quanto predominante, sem que desapareça uma apreensão cotidiana que se mostraria como uma síntese feliz entre subjetividade e objetividade e que será, em toda obra do poeta pernambucano, sua característica mais peculiar. Isto se dá porque uma relação dialética estabelece-se entre ambos. Assim, a poesia do cotidiano se alia ao eu-lírico fazendo com que tudo em sua poesia não seja mera visão interior, digna dos românticos tardios – comuns em sua época – e nem tampouco lhe agradar a simples fotografia realista de mundo que sempre lhe pareceu desgostoso e insuficiente.

Todavia, é certo lembrar que, à medida que sua poesia assume um caráter confidencial, as referências biográficas tornam-se importantes e, desta forma, tanto a tuberculose, quanto a decadência da família, poderia nos explicar o clima de desejo insatisfeito e amargurado que percorrem seus versos. A doença impediu-o de realizar uma série de experiências e vivências e, desta maneira, a literatura, realmente, representou para ele "toda a vida que podia ter sido e que não foi". Daí a frequência e a intensidade de seus sonhos, geradores de universos imaginários, onde não há repressões e os homens são felizes. Mas, ao contrário dos românticos que acreditam em suas fantasias, Manuel Bandeira ironiza os seus próprios desejos, dando-os como ilusões, como em seu conhecidíssimo Vou-me embora pra Pasárgada. Por isso, como reflexo da sua crise pessoal, aproxima-se continuamente da temática da morte como um dos seus maiores motivos poéticos, conforme podemos constatar no expressivo Momento num café:

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.



A tristeza do autor de Estrela da manhã não tomará, contudo, uma direção crepuscular, lamentosa, nostálgica ou doentia. Gilberto Freyre afirma que há, em Manuel Bandeira, uma sábia conciliação entre a lucidez pessimista com a paixão instintiva pela vida.  E aliando-se a tudo isso, há o uso tanto das formas mais radicais das vanguardas do século XX, quanto das formas clássicas do lirismo ocidental. Em síntese, Manuel Bandeira delimita um estilo de absoluta simplicidade, aliado ao que de mais sofisticado pode existir na construção poética.

Não obstante, não é necessariamente do poeta que falaremos aqui, e sim do crítico. Há pouca diferença entre um e outro... é importante salientar. Como poeta, Manuel Bandeira sempre viu seu ofício como uma missão de extrema importância, quando não de alto risco. A literatura não é um passatempo para diletantes; é redação de altíssima qualidade; sublime resultado de um espírito criativo e elegante que busca não menos que a perfeita elaboração que se extrai da soma de nossos conflitos mais intensos e concretos buscando significados cada vez maiores e complexos. Com este ofício, o poeta não quer outra coisa senão ultrapassar a si mesmo. E com a mesma audácia que tratou seus poemas, Bandeira usou em sua crítica literária, por vezes apaixonada, por vezes mordaz, mas de uma sinceridade como pouco se vê hoje em dia; e se cobrou qualidade e ousadia daquilo que criticou, é porque sua poesia era deveras ousada e grandiloquente.

Em Apresentação da poesia brasileira, por exemplo, Bandeira mostra-se um crítico sem nenhum medo e totalmente claro; mesmo que, aos olhos mais leigos, o poeta pareça, em sua crítica, concentrado muito mais na procura de si mesmo no que de melhor possa achar no trabalho de outros, mas é, obviamente, lógico que, poeta ou não, nenhum crítico busque algo alheio a sua própria pessoa, pois é a experiência de vida e leitura de quem lê que forma tanto o escritor quanto as análises que possam advir de seu trabalho. Ao falar de nosso Boca do Inferno, por exemplo, Manuel Bandeira não pensa duas vezes em taxá-lo como um poeta de segunda linha, ao mesmo tempo que ressalta o grande valor de sua personalidade forte que contribuiu para a afirmação de Gregório de Matos como a primeira grande voz poética a aparecer em nossas Letras. O mesmo acontece com o renomado inconfidente Cláudio Manuel da Costa, cuja falta de originalidade de seu cansativo Vila Rica não é atenuada pelo seu contexto político, como farão, praticamente, quase todos os críticos depois de Bandeira. É perceptível, então, que, para o autor de Belo Belo e Lira dos Cinquent’anos, a real justiça empreendida por um crítico estava em sua fidelidade a si e ao que considerava verdadeiro e correto (um tapa na cara do politicamente correto que parece ser a essência de toda crítica atual) e, assim, livrar-se de uma série de modelos previamente incorporados – uma desgraça para qualquer analista sério.

José Castello, por exemplo, afirma que, mesmo ao criticar os poetas do Modernismo, amigos e contemporâneos seus, Manuel Bandeira não se refreia e, como consequência, acaba por antecipar ideias que, àquela época, já poderiam parecer apressadas e agressivas, mas que, com o tempo, concluir-se-iam em verdadeiras profecias, tal a maneira como considerava Mário de Andrade um deslocado da real cena literária brasileira, com pendores que se voltavam muito mais para a música do que para a poesia que, ressaltava, foi abraçada, pelo autor de Pauliceia Desvairada, “muito mais como uma causa do que verdadeira vocação”. Sobre Pauliceia Desvairada, e o estilo de seu autor, ainda arremata: rebenta em “excessos de liberdade estrepitosa”. Oswald de Andrade seria outro que não escaparia... Sobre o autor de Serafim Ponte Grande, Bandeira não pensou duas vezes em apontá-lo como um repetitivo e bajulador de marxistas, e outras criaturas semelhantes, mas tudo que conseguiu com este irmão paupérrimo de Memórias sentimentais de João Miramar, foi parecer inteligente e simpático a burgueses e letrados metidos a moderninhos, como o próprio Bandeira. Oswald, com seu romance edulcorado, era, para Manuel, “um palhaço para a burguesia” que muito se afastava daquilo que o próprio Oswald tinha de realmente grande e melhor: o Sarcasmo.


         Entretanto, Bandeira soube ceder aos apelos do afeto – mas sem se esquecer da responsabilidade que a literatura esperava dele – àqueles poetas que julgou “seus pares”. Com toda razão, chama a atenção para a o “esmero técnico” de Cecília Meireles, a “mescla de humor e sensibilidade” de Drummond, os não raros momentos de “alta beleza”, em Jorge de Lima, e a “complexidade estranha”, e fecunda, de Murilo Mendes. Sobre Vinicius de Moraes, por exemplo, escreveu, no Diário de Notícias, já em 1933, a seguinte profecia:

“...dos livros que nomeei atrás o que revela maior fatalidade de vocação é, sem dúvida, O Caminho para a Distância, do Sr. Vinicius de Moraes... Se eu tivesse alguma autoridade para dar um conselho ao poeta, dir-lhe-ia que renunciasse por algum tempo ao verso livre, onde ainda a sua inspiração muitas vezes se espraia sem nervo em palavras demasiado fáceis”...


e, mais tarde, por volta de 1939, no Anuário Brasileiro de Literatura, deixou claro a muitos o quanto se orgulhava de suas palavras terem dados frutos tão numerosos e de qualidade inquestionável:

“Quando Vinicius de Moraes estreou com o livro O Caminho para a Distância... louvei-o com uma certa secura. Quatro anos depois, em 1935, o poeta dava-nos um segundo livro – Forma e Exegese... Uma coisa porém me deixava insatisfeito: a persistência do poeta num tom sublime e no ritmo inumerável. ‘Bicho da terra tão pequeno’, eu queria ver outro bicho nesse rapaz que pairava continuamente nas regiões irrespiráveis da estratosfera poética. O vasto planejamento rítmico dos seus poemas dava-me de repente uma saudade irreprimível de versos curtos... Vinicius de Moraes fez-me a vontade: este seu novo livro, intitulado de Novos Poemas, traz vários poemas metrificados, sonetos, redondilhas; o bicho da terra desceu das Itatiaias, desceu, firmou os pés no solo, saiu andando naturalmente... a sua poesia ganhou com isso uma humanidade mais vasta e mais profunda”.



         Manuel Bandeira é um crítico que não perdia de vista, nos outros, aquilo que esperava do próprio Manuel Bandeira... Assim também era o poeta. E se o próprio poeta é a medida do que ele faz, ao crítico cabia a sua leitura, sinceridade e compromisso com ela. Seu livro, Itinerário de Pasárgada é exemplo não só de um livro que conta a vida literária de seu autor e seu encontro com a poesia: ele é um tratado sobre a busca do verdadeiro sentido de se escrever que é também a busca pelo verdadeiro sentido de se estar no mundo como homem e poeta. Porque a poesia, como a vida, modifica-se continuamente.

         O poeta pernambucano é representante de um tempo onde crítica literária era formada por pessoas realmente compromissadas com a literatura e sua verdade e não essa que está aí: entregue ao academicismo corporativista de professores medíocres que, imbuídos de um discurso esquerdista – Manuel odiava comunistas e só por isso já podia ser considerado um dos homens mais inteligentes do Brasil – e de busca por uma “destruição das formas”, o qual não tem outra função ou razão para existir a não ser o de criar diferentes maneiras de não se fazer ou dizer algo realmente interessante. A crítica literária de hoje é, em sua maioria, uma variação de jargões técnicos institucionalizados para que uma seleção criteriosa seja substituída pelo simples papo furado ou, quando não, pelos tapinhas nas costas de algum amiguinho que, utilizando-se da máquina institucional, garantirá seu futuro salarial em uma de nossas Universidades. 

         Com nossa crítica literária entregue a tamanha mediocridade e a insipidez intelectual academicista, não é à toa que a última coisa que se espera hoje de quem analisa uma obra literária, seja ela qual for ou de quem for, é a total falta de vontade, ou mesmo competência, de um exame rigoroso e, sobretudo, sincero do trabalho de um autor. De certo, Manuel Bandeira não deixou o afeto de lado ao fazer sua crítica literária. Sabe-se que ele trazia um carinho muito especial aos poetas que considerava como seus “pares” dentro do movimento modernista. Mas todos tinham talento e qualidades inegáveis, e a história da literatura mostrou o quanto isso era verdadeiro. E, evidentemente, Bandeira cometeu lá seus “erros”, como quando coloca um nome como o de Amado Fontes como um autor de fôlego maior que José Lins do Rego, embora se possa considerar que, à maneira de Bandeira, Ribeiro Couto é um escritor de inegável qualidade, independentemente do facto de ele, hoje, estar praticamente esquecido.

         Uma coisa é certa: se Manuel Bandeira estivesse vivo para testemunhar o clubinho medíocre – ele que sempre se mostrou um algoz da mediocridade – de lambedores de botas e abanadores de bunda no qual se tornou a crítica literária brasileira e, por conta, o próprio ciclo de poetas e escritores... ele morreria.












Candeias, 25 de junho de 2013.











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