quarta-feira, 26 de agosto de 2009

AS VÍTIMAS-ALGOZES DE JOAQUIM MANUEL DE MACEDO



Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882)


A importância de Joaquim Manuel de Macedo resulta de uma percepção do próprio escritor: o público leitor nacional, centralizado na capital federal e devorador de folhetins europeus, estava disposto a aceitar um romance adaptado a cenários brasileiros, desde que a conservado o modelo de enredo das narrativas inglesas e francesas. Além disso, o escritor deu-se conta de que precisava vencer a barreira moral – imposta pela estrutura patriarcalista – que não via com bons olhos a explosão de sentimentos naquelas histórias que afirmavam o direito da paixão sobre a obediência e sobre a hierarquia social. A adaptação que Macedo fez, portanto, era uma necessidade, podendo ser assim resumida:

Romance brasileiro =
Romance romântico europeu + cenários brasileiros + valores patriarcais

O produto desse esforço foram relatos desprovidos de grande valor artístico, mas que possibilitavam ao leitor várias identificações. Tropeçava-se a todo instante em ruas, praças, praias e outras paisagens conhecidas. Aqui e ali, sob algum disfarce, topava-se com uma figura típica da sociedade carioca (fluminense, se dizia então). Um nome era lembrado, um costume coletivo evidenciado, de tal forma que a alegria do reconhecimento tornava-se contínua – como se, atualmente, alguém descobrisse o seu mundo e a si próprio num filme ou numa telenovela.

Outro fator de identificação resulta do processo de abrandamento do folhetim europeu. Embora o tema predileto de Macedo fosse o amor, as aventuras sentimentais que imaginou não possuíam nem a violência nem o velado amoralismo das histórias dos romances europeus de então. Afinal, aqui era o Brasil, país em que a burguesia não tinha expressão e a ideologia patriarcal dominava completamente os espíritos. Afetos sim, mas afetos mantidos nos limites do decoro, para não ferir os leitores, nem com a tragédia, nem com a revolta. Mais açúcar do que sangue. Em vez de paixões intempestivas, respeitáveis namoros que, passando pelo noivado, terminam obviamente no casamento e outras educorações.

Não por casualidade, na obra de Macedo os impulsos íntimos dos enamorados sempre se enquadram nas normas da família patriarcal. Nada de vulcões, nada de protestos, nada de desrespeito. O universo pré-capitalista brasileiro ainda não podia conviver com a liberdade sentimental. Até os vilões sabem adaptar-se às conveniências sociais. Como disse um crítico, só praticam a vilania na medida em que o enredo assim o exige. Quer dizer, o mundo narrativo de Macedo, praticamente, não tem abismos.


AS VÍTIMAS ALGOZES (1867)

Um dos quadros sociais mais alegóricos da História do Brasil é a escravidão, principalmente no que se refere ao final do século XIX, dividido entre os defensores da Escravidão e aqueles que a repudiavam por considerá-la um dos maiores símbolos do atraso político-social do País.

Como já destacado, alguns autores se tornaram notórios defensores do abolicionismo, como Trajano Galvão, Rui Barbosa, Thobias Barreto, José Bonifácio (o “Velho” e o Moço), Fagundes Varela, Luís Gama, José do Patrocínio, Bernardo Guimarães, Raimundo Correa, e, o mais destacável, Antônio Frederico de Castro Alves, entre outros, expressaram o seu repúdio pelas práticas escravistas em prosa e verso, legando uma das ações políticas e humanitárias mais belas e vitoriosas de nossa História. Por outro lado existiram aqueles que pintavam um quadro bem diferente da Escravidão e que possuíam idéias não muito humanista. Eram escritores que viam a situação com um peculiar sentimento de medo; não um medo político, um medo de uma revolução, ou rebelião ou coisa do tipo, mas um medo físico e moral cuja principal vítima seria o Senhor de Escravos e o negro seu principal executor. Um dos arautos desta inconveniente verdade será Joaquim Manuel de Macedo, em seu outrora esquecido As Vítimas-Algozes.

A obra não agradou o público oitocentista e recebeu várias críticas publicadas na imprensa, sendo considerado, por Ubiratan Machado, como o livro mais atacado pela crítica durante o período romântico. As Vítimas-Algozes teve apenas três edições, a de 1843, depois 1896 e a de 1988, mas não por isso deixou de ser uma leitura essencial para a compreensão de um dos mais importantes períodos da História do Brasil.

Macedo comporá uma obra abolicionista um pouco diferente daquelas a que o grande público leitor de nosso País está mais acostumado, pois este abolicionismo é visto pelo ponto de vista do Senhorio que tem, na escravidão pela qual subjuga seus negros, a possível destruição de seus bens maiores: a Família, a Moral e a Propriedade. O objetivo do livro, que não é necessariamente um romance, mas um livro de novelas, três para ser exato: Simeão – o crioulo, Pai-Raiol – o feiticeiro e Lucinda – a mucama é convencer os leitores da necessidade de libertar os escravos, pois estes cativos, de natureza vil e obscura e, se não bastasse, submetidos ao horror do cativeiro, levam, para dentro de seus, lares a corrupção física e moral para o seio de suas famílias. Para uma sociedade que se quer moral, incorrupta e limpa, o escravo é, em potencial, um agente corruptor da mais baixa e perigosa espécie.

Para comprovar uma afirmação desta natureza Macedo se valerá de descrições intensas e de uma galeria de tipos negros comuns à realidade dos Senhores de Escravos; assim, as três novelas que compõem o livro trazem, por exemplo, o negrinho ingrato, o negro feiticeiro, os negros vagabundos, o escravo traiçoeiro, a mucama promiscua, escrava assassina... e muitos outros exemplos que demonstram o quão comprometedor é a presença do negro, do escravo dentro da casa-grande, perto de sua família, na intimidade da vida dos Senhores de Escravos.

RESUMO DAS NOVELAS

1ª NARRATIVA: SIMEÃO – O CRIOULO


O protagonista, Simeão, perdera a mãe, que fora ama-de-leite da sinhazinha, aos dois anos, tendo sido criado pelos patrões. Até os oito anos de idade Simeão teve prato à mesa e leito no quarto de seus senhores, e não teve consciência de sua condição de escravo.

Em função disso, tinha algumas regalias, mas não deixava de ter o estatuto de escravo e de ser tratado como tal, fator que, conforme ele se tornava adulto, se agravava e se fazia mais claro. Foi privado da mesa e do quarto em comum depois dos oito anos; continuou, porém, a receber tratamento de filho adotivo, mas criado com amor desmazelado e imprudente, e cresceu enfim sem hábito de trabalho. Devia ter 20 anos, crioulo de raça pura africana, cabelos penteados, vestido com asseio e certa faceirice e afetação, era calçado e tinha vícios de linguagem. Havia, no entanto, a expectativa de que seria alforriado quando o seu patrão morresse, o que não acontece, tendo este, em seu testamento, transferido a alforria certa para o momento em que a esposa viesse a falecer.

Simeão, juntamente com um comparsa, já alimentado de ódio contra os patrões, trama e realiza o assassinato da família toda e o saque do ouro e da prata que guardados no interior da Casa Grande. O quadro vem a se revestir de crueldade maior porque os proprietários de Simeão se achavam, no íntimo, protetores bem-intencionados do mesmo, tendo, inclusive, na véspera do crime, decidido alforriá-lo imediatamente. Não eram, no entanto, capazes de questionar o sistema que os privilegiava, em todos os sentidos, e desumanizava o outro pólo, ou seja, os escravos, da sociedade. Sistema que, Macedo diz com todas as letras, produz o ódio e o crime, no que o romancista estava se apoiando em dados da sociedade real. Sua personalidade era ingratidão perversa, indiferença selvagem, inimizade, raiva, vícios, era vadio, dissimulado, ladrão, tinha instintos animais e era atrevido. Seus senhores eram: Domingos Caetano, Angélica, Florinda e Hermano de Sales. Eram bons e humanos, tinham delicadeza de sentimentos e sentimentos generosos. Honestos e trabalhadores e o tratavam como a um filho, bastardo, mas filho.

O autor constrói um perfil aterrorizante para o escravo, misto de tigre e serpente, de vítima e algoz, capaz de atacar quando menos se espera. Procura, claramente, encher de medo os brancos, senhores de escravos, e sugere como solução: o fim da escravatura. Solução que configura a tese básica que passa pela conclusão de cada um dos três quadros da escravidão. A novela não tem por final um desfecho romanesco típico; a morte cruel dos senhores não se parece em nada com o Happy End mui comum aos romances macedianos, por exemplo, mas a reafirmação da tese do autor é que Simeão foi o mais ingrato e perverso dos todos os homens da terra e afirma: que, Simeão, se não fosse escravo, poderia não ter sido nem ingrato, nem perverso. A escravidão degrada, deprava, e torna o homem capaz dos mais medonhos crimes.

2ª NARRATIVA: PAI-RAIOL – O FEITICEIRO

As considerações sobre os cultos e crenças africanas é a forma escolhida pelo narrador para apresentar o papel do feiticeiro africano. A descrição física do feiticeiro já assusta: era um negro africano de trinta a trinta e seis anos de idade, um dos últimos importados da África pelo tráfico nefando: homem de baixa estatura tinha o corpo exageradamente maior que as pernas, à semelhança de um chimpanzé, por exemplo; a cabeça grande, os olhos vesgos, mas brilhantes e impossíveis de se resistir à fixidade do seu olhar. Segundo o narrador, trazia, porém, nas faces, cicatrizes vultuosas de sarja duras recebidas na infância: um golpe de azorrague lhe partira pelo meio o lábio superior, e a fenda resultante deixara a descoberto dois dentes brancos, alvejantes, pontudos, dentes caninos que pareciam ostentar-se ameaçadores; e prosseguia: uma de suas orelhas perdera o terço da concha na parte superior cortada irregularmente em violência de castigo ou em furor de desordem.

Em suma, Pai-Raiol tinha, para variar, uma má fama terrível, é um escravo que nenhum senhor queria por muito tempo. Ele conquista escravas por meio do medo e do pavor. As mucamas de que ele se aproxima obedecem-lhe cegamente. No momento da narrativa, é escravo de Paulo Borges e Teresa, um casal trabalhador, que vive muito bem até a chegada do feiticeiro. Paulo Borges é um homem trabalhador, dedicado ao lar; Teresa, esposa também dedicada e bondosa. Ambos viviam para sua família, seus filhos e para o trabalho.

Pai-Raiol incitou Esméria, mucama que cuidava das crianças a seduzir seu amo, o que de fato acontece. Os vícios e a sedução da escrava deixam Paulo enfeitiçado, até o dia em que a mulher os surpreende trancando-se no quarto sem nunca mais querer ver o marido. Esméria vai assumindo o papel de dona da casa aumentando a humilhação de Teresa. Quando nasce uma criança, filha de Paulo e Esméria, Pai-Raiol mostra à escrava a necessidade de que seu filho seja o único herdeiro. Paulo, no entanto, começa a sentir remorsos por seus atos, pois até os filhos ficam contra ele. Ensinada pelo feiticeiro, Pai-Raiol, Esméria coloca ervas especiais na comidas das crianças. Mas dentro em pouco estava a casa em movimento, Paulo Borges em sustos, a crioula em desespero: terrível indigestão se declarara em todas as crianças que em gritos e vômitos, em convulsões e delírio, e com as mãozinhas nos ventres, que se abrasavam e se dilaceravam em fogo e em dores horríveis, avançavam depressa para a morte que se manifestava já na decomposição dos traços fisionômicos. Ao amanhecer estavam mortos os dois filhos legítimos de Paulo Borges e os de alguns escravos – estes, para funcionar como álibi à maldade de ambos. Esméria, agora que as crianças estão mortas, orientada por Pai-Raiol, pede a Paulo que reconheça o filho deles. Ela vai encontrar-se com Pai-Raiol, com medo.

Não suportando mais, Esméria conta seus segredos para um escravo, Alberto, e fala sobre o domínio que o feiticeiro exerce sobre ela. Há uma luta entre Pai-Raiol e Alberto; o feiticeiro é morto, ao ser atirado por Alberto, de um desfiladeiro. Quando Alberto está amarrado e preso, Paulo, que já sabia da trama entre Esméria e Pai-Raiol, intervém dizendo que foi salvo por Alberto, dando-lhe carta de alforria. Esméria é, também, castigada.

A conclusão do narrador é de que não importa a morte de Pai-Raiol, o castigo de Esméria. O que fica é que Teresa tinha vivido vida de martírio em seus últimos meses, e morrera envenenada. Luís e Inês, filhos legítimos de Paulo Borges, tinham também morrido por atroz e dilacerante veneno. O pobre anjinho do berço fora privado dos seios de sua honesta mãe, bebera a sífilis e a morte nos peitos imundos de negra corrupta. A asa negra da escravidão roçara por sobre a casa e a família de Paulo Borges, e espalhara nela a desgraça, as ruínas e mortes violentas dos senhores e a escravidão, mãe das vítimas algozes, é prolífica.


3ª NARRATIVA: LUCINDA – A MUCAMA
A narrativa conta a história de Cândida, filha de honrado negociante e agricultor do interior da província do Rio de Janeiro. Em seu aniversário de onze anos, a menina recebera de presente do padrinho, Plácido Rodrigues, “o mais opulento fazendeiro e capitalista do lugar”, uma escrava crioula chamada Lucinda, de doze anos, que havia sido enviada à Corte para aprender a servir de mucama. A mucama logo conquistou a senhorinha ao dizer que sabia fazer bonecas e penteá-las. O padrinho empenhara-se em conseguir uma escrava que pudesse agradar a afilhada porque sabia que a menina andava triste devido à recente partida de Joana, “uma boa senhora, mulher pobre, mas livre e de sãos costumes, que fora sua ama de leite e a idolatrava como seus pais”. Joana, que enviuvara ainda moça, encontrara segundo noivo num “laborioso e honrado lavrador”, deixando por isso a sua adorada Cândida “com o maior pesar”.

Macedo oferece uma primeira ilustração de sua tese no romance ao contrastar a virtuosíssima Joana com a mucama Lucinda. Joana é descrita como uma segunda mãe, criada e também amiga, companheira do seu quarto de dormir, mulher simplória, bondosa e religiosa. Cândida, perdera segundo Macedo, “a companhia da mulher que era nobre, porque era livre” e que servia com o “coração cheio de amor generoso”, algo só possível “quando a liberdade exclui toda imposição de deveres forçados por vontade absoluta de senhor”. Em substituição, a menina recebera a crioula quase de sua idade, para Joaquim Manuel de Macedo: “a mulher escrava, uma filha da mãe fera, uma vítima da opressão social, uma onda envenenada desse oceano de vícios obrigados, de perversão lógica, de imoralidade congênita, de influência corruptora e falaz, desse monstro desumanizador de criaturas humanas, que se chama escravidão”.

Diante desse quadro os acontecimentos desenrolam-se naturalmente, sendo que o maior desafio é entender o porquê de Macedo ter achado necessário escrever quase quatrocentas páginas para contar essa história. A mucama tem uma influência nefasta sobre a donzela, de quem se torna a única confidente nos anos seguintes. Ensina-lhe o que ocorre quando a menina vira moça, despertando-lhe a curiosidade pelos rapazes, ministra-lhe lições de flerte e namoro, mostrando-lhe ser mais divertido namorar vários rapazes ao mesmo tempo, e assim por diante, num desfilar constante de idéias destinadas a excitar os sentidos da donzela cândida e pura. As lições de amor da mucama eram inspiradas pelo sensualismo brutal, em que, de acordo com a tese do autor d’ A Moreninha, resume-se todo o amor nos escravos; portanto, a mucama escrava, ao pé da menina e da donzela, é o charco posto em comunicação com a fonte límpida.

Com a mucama escrava, infiltrada no quarto da donzela, foi possível, a um conquistador barato, um francês estróina e ladrão, insinuar-se aos amores de Cândida, conquistá-la efetivamente e tirar-lhe o maior símbolo da honestidade feminina. Lucinda, criatura ruim como nunca se viu mesmo em folhetins televisivos hodiernos de horário nobre, tornara-se ela mesma amante de Souvanel, tramara tudo com ele, e até abrira o quarto da virgem para a consumação do delito. A idéia dos biltres era forçar o casamento de Souvanel com Cândida; dado o golpe do baú, Lucinda ganharia a liberdade e ficaria teúda e manteúda do francês. No final, Frederico, criatura virtuosa como nunca se viu mesmo em folhetins televisivos hodiernos de horário nobre, filho do padrinho de Cândida, apaixonado por ela desde menino, perdoa o erro da amada e casa com ela. Descobrira-se que Souvanel era na verdade Dermany, criminoso procurado na França. O vilão é preso e deportado. Lucinda e o pajem do pai de Cândida, também envolvido na trama para aproximar Souvanel da donzela, fogem dos senhores, são capturados, mas acabam abandonados ao poder público pela família. Frederico, o anjo, fecha o romance e o nosso martírio com um discurso abolicionista que aqui transcrevo, para martirizar o leitor, ou ao menos para dividir com ele o meu sofrimento.

Ainda que Macedo atribua os defeitos morais de Lucinda e seus pares à instituição da escravidão, a sua descrição dos cativos é tão impiedosamente desfavorável que torna-se difícil pensar na possibilidade de que essas pessoas, uma vez libertas, possam usufruir de direitos de cidadania e participar da vida política. De fato, uma característica intrigante de vários pronunciamentos favoráveis à lei de 1871 era a descrição dos escravos como seres quase destituídos de humanidade, pois a violência da instituição os desprovia de cultura, de regras de comportamento; por conseguinte, não desenvolviam laços de família, relacionavam-se sexualmente como animais, atacavam os senhores como bestas feras. Enfim, pareciam condenados a uma espécie de coisificação moral, resultado direto de sua condição de propriedade, de sua representação como coisa no direito positivo.

UM ROMANCE DE TESE?
Joaquim Manuel de Macedo constrói As Vítimas-Algozes dentro de uma tese: as desgraças e as corrupções das famílias dos Senhores de Engenhos são trazidas pela escravidão, pois ela transforma o negro num ser vil, violento e vingativo e, conseqüentemente, capaz das mais infames atitudes. Macedo demonstra, pelas três novelas de seu livro, como, gradativamente de maneira pautada e planejada, o negro vai se transformando de vítima para algoz. A proximidade quase íntima entre patrão e escravo nos últimos anos do cativeiro, uma intimidade que, segundo Macedo, beira o sado-masoquismo, é outro aspecto fundamental deste livro. Ele denuncia que, se o escravo é inegavelmente vítima de um regime desumano, a sua presença igualmente desagrega a sociedade branca no que ela teria de mais recomendável.
Assumindo um papel de arauto dos Senhores de Engenho do Século XIX, tais como Plácido Rodrigues, “o mais opulento fazendeiro e capitalista do lugar”. O autor procura demonstrar, com suas três novelas, como a escravidão pode significar a destruição das famílias de seus proprietários. As suas mulheres, seus filhos e filhas, todas as suas famílias encontravam-se ameaçadas, em tempo integral, pela presença de um indivíduo movido pelas malícias e pelo sentimento de vingança para como os seus acolhedores, ou seja, o escravo. Construindo a figura dos escravos sobre “tipos” e “estereótipos” que aumentam a imagem de medo por eles carregada, Macedo é muito feliz na criação do pânico e na linguagem direcionada à Classe Aristocrática a qual também pertence. Neste ínterim, estilisticamente, o livro ganha uma força descritiva e alegórica muito forte, com histórias de tristes realidades e influências, relações sexuais lascivas e desprezíveis pela sociedade da época, a natural repulsa do escravo pelo seu Senhor, por outro lado, perde em seu contexto ficcional em detrimento ao forte teor documental com o qual é envolvido. Em suma, na obra, o autor expressa a idéia de que a escravidão faz vítimas algozes e deve ser gradualmente extinta, sem prejuízo para os grandes proprietários de terra. Num tom conservador e usando personagens como a escrava Lucinda, o autor defende a tese de que a escravidão cria vítimas oprimidas socialmente, mas com uma perversão lógica, imoral e com influência corruptora oriunda da própria índole natural do escravo negro.
Para melhor engendrar sua tese, Macedo se utilizará de características e de esquemas narrativos comuns aos romances naturalistas. Por ter sempre um alicerce ideológico, um argumento, uma tese, a se comprovar, o autor de A Moreninha mescla o apelo à imaginação, comum ao Romantismo, com a busca pelo verossímil, característica comum ao Naturalismo, criando uma narrativa bastante peculiar na Literatura Brasileira, onde se mesclam Romantismo e Naturalismo. As Vítimas-Algozes é um alinhavo que traz elementos românticos como as constantes intrigas, a extrema sentimentalidade e compaixão dos senhores e senhoras de engenho, o heroísmo de alguns jovens, mistério, suspense e, claro, o sacrifício pela pessoa amada entrelaçados com características dos romances naturalistas como o determinismo do meio, da raça e da classe social, valorização do momento presente e verossimilhança, descritivismo e gosto pelo grotesco, presença do patológico, predomínio dos instintos, meio corrompido, ora moralmente, ora economicamente, ora os dois, aspectos sórdidos da consciência humana, desvios comportamentais, zoomorfismo dos indivíduos. Notoriamente, todas essas características se mesclam para que Joaquim Manuel de Macedo de coerência e forma poética à sua tese romanesca.

A obra é, certamente, um retrato perfeito do Brasil pós-abolicionista. O objetivo político das três histórias que compõem o livro está claro desde a nota inicial aos leitores. Professando narrar apenas histórias verídicas, Macedo procurava firmar, na consciência da população mais abastada, principalmente, o medo e as represálias do escravo sobre o seu senhor. Obra de convencimento, portanto, As vítimas-algozes era tentativa de obrigar os leitores a encarar de face profunda de um mal enorme que afeia, infecciona, avilta, deturpa e corrói a nossa sociedade, e a que nossa sociedade ainda se apega semelhante a desgraçada mulher que, tomando o hábito da prostituição, a ela se abandona com indecente desvario, segundo o próprio autor. Em sua retórica, Macedo lembra o isolamento internacional do país, do exemplo da guerra civil americana, do processo de emancipação em Cuba, e do caráter implacável da reforma, exigência da civilização e do século. Afirma que a escravidão é câncer social, que se não estirpa sem sofrimento; mas o adiamento teimoso do problema agravaria o mal, pois o país poderia ter de enfrentar a emancipação imediata e absoluta dos escravos, colocando em convulsão o país, em desordem descomunal e em soçobro a riqueza particular e pública, em miséria o povo, em bancarrota o Estado.

Macedo antevê um cenário apocalíptico como decorrência de uma possível emancipação imediata dos escravos revelando, já de início, o que seria esta obra, a forma como faz desfilar uma galeria medonha de escravos astuciosos, trapaceiros e devassos, sempre dispostos a ludibriar os senhores e ameaçar os valores e o bem-estar da família senhorial. Preocupado em não deixar nada por explicar, Macedo esclarece que havia dois caminhos a seguir para mostrar aos leitores a profunda reprovação que deve inspirar a escravidão: o primeiro consistiria em narrar as misérias e os sofrimentos dos escravos, suas vidas de amarguras sem termo – seria o quadro do mal que o senhor faz ao escravo, ainda que sem querer; o segundo caminho, aquele escolhido por Macedo, mostraria os vícios ignóbeis, a perversão, os ódios, os ferozes instintos dos escravos, inimigo natural e rancoroso do seu senhor. Seria o quadro do mal que o escravo faz ao senhor, de assentado propósito ou às vezes involuntária e irrefletidamente, ou, por que não, por instinto.

Joaquim Manuel de Macedo não foi o único – aliás, não foi nem o primeiro nem o último – a defender esse tipo de tese. Várias vezes, na literatura oitocentista, o negro foi pintado como corruptor da moral, da higiene e dos bons costumes da sociedade brasileira. Seguem, também, esse exemplo os romances: O Demônio Familiar, de José Martiniano de Alencar, História de uma moça rica, de Pinheiro Guimarães, A carne de Júlio Ribeiro e A falência de Júlia Lopes de Almeida.



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Joaquim Manuel de Macedo nasceu em Itaboraí, Estado do Rio de Janeiro, filho de uma família abastada, Formou-se, jovem ainda, no Curso de Medicina, profissão, a qual, jamais praticara, pois fora seduzido pela carreira de escritor, pelo magistério (foi preceptor dos filhos da princesa Isabel e professor de História no colégio Pedro II) e pela política (tornou-se deputado pelo Partido Liberal em várias legislaturas), além de fazer constantes incursões pela carreira jornalística. Foi o primeiro escritor brasileiro a conhecer grande popularidade, deixando uma obra bastante vasta de mais de quarenta títulos. Morreu no Rio de Janeiro. Suas obras principais são: A moreninha, de1844; O moço loiro, de1845; Memórias do sobrinho de meu tio, de1867; A luneta mágica, de 1869 e, pelo que parece, graças ao Vestibular da UFBA, As Vítimas Algozes, também de 1867.




3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o tópico Silvério. Você poderia postar questões de vestibular sobre o livro?

Lorena disse...

Simplesmente ótimo ! melhor comentário que li . Parabéns !

Anônimo disse...

muito bom me ajudou um pouco mais