Compre o livro "Revelações do Grotão", de Miguel Carneiro: Editora Mondrongo, Ilhéus, 2012, através do Site: http://www.lojasingular.com.br/revelacoes-do-grot-o_9788565170130.html |
Já disse aqui, uma vez, e torno a repetir: Miguel Carneiro é dono de um talento nato e inquestionável, aliando-se a uma vigorosa consciência artística, extremamente identificada com a com a natureza, com a realidade, bem como ligada demasiadamente a uma prodigiosa e inventiva memória, desenhando ora auto-retratos, ora confissões... ora a mais profunda reconstrução de si mesmo para construir uma obra muito maior e mais importante do que imagina a grande maioria de nossos leitores, críticos e ditos estudiosos de nossa literatura, desacostumados a uma produção prosaica e poética capaz de captar, como nenhuma de sua geração, bem como aos de seu métier, a essência da vida espiritual do povo simples de sua região de origem com inegável engenho artístico e técnica lingüística, além de uma grande sinceridade em tudo o que escreve e como escreve. Embora, para muitos, a obra de Miguel Carneiro pareça o resultado imediato de uma “sabedoria tosca”, basta uma leitura cuidadosa e verdadeira em suas intenções para descobrir de que se trata da produção de um autor que conhece muito de nossas tradições e heranças da literatura medieval européia, ainda tão abundante em nossos Sertões. Miguel Carneiro maneja, como habitual destreza, as formas mais características das prosas de origem popular ao tempo que se mostra habilmente capaz de sustentar uma narrativa fantástica sem mascará nenhuma nem outra com o uso de cacoetes lingüísticos ou de estilo. É literatura simples e pura, buscando-se sempre assim, optando por uma clareza e uma objetividade marcantes, mas sem deixar de fazer literatura por conta disso. Entre os escritores baianos em plena atividade, nestes últimos trinta anos, que se dedicam à prosa, Miguel Carneiro é o que melhor demonstra habilidade e franqueza de criação, cujo funcionamento não depende totalmente de mecanismos estilísticos facilmente apreendidos por viés dos moldes acadêmicos, mas de elementos extremamente significativos e engenhosamente dispostos de modo a passar despercebidos de nossos leitores e críticos descuidados. Em sua prosa, a construção de imagens, que constituem a própria imagem de seu pensamento de escritor, cede lugar ao peculiarismo da língua e a emoção como princípio determinante para as mais diversas situações encontradas em suas estórias; tudo para alcançar a máxima plenitude de significado e beleza, pois Miguel sabe planejar – como poucos – os instrumentos mais característicos da poesia e da prosa de raízes populares, não sofrendo, como muitos, o dilema de construir uma literatura elaborada com a melhor técnica artística, mas completamente desprovida da mais simples beleza, graça e sinceridade. Além do mais, o que chama muito a minha atenção para a prosa de Miguel Carneiro é a sua fácil distinção entre o regionalismo maduro, sobrepondo-se ao sertanismo ingênuo, tão difundido e confundido entre os nossos consumidores de literatura – quando não por nossos escritores sem noção de um quanto do outro... isso quando não têm noção de nada. Nesta diferença, o servilismo diante da paisagem geográfica desaparece e a natureza não se apresenta como determinante ao espírito ao à natureza humana. Com Miguel Carneiro, o erro mui comum de moldar o homem à semelhança do espaço geográfico – como o fez até mesmo Graciliano Ramos – não existe como necessidade. O meio geográfico apresentar-se-á apenas como mero condicionador às condições e às relações humanas e não como um determinador. Miguel também não distingue seus personagens pelo seu “modo” de falar, não amesquinha seus tipos por mera convenções de linguagem. Miguel aprofunda mais ainda seus aspectos regionais, apropriando-se de uma verossimilhança muito intensa e muito típica aos grandes escritores deste estilo, principalmente por sua convivência pessoal entre esses muitos sertões e sertanejos, permitindo que a fala da vida se acomode à fala ficcional, mas sem se perder no tipicismo puro, no pitoresco simplório, na cor-local burra, no sertanismo idealizado ou mesmo na cópia barata dos neologismos e caboclismos de Guimarães Rosa. Para sustentar o que afirmo, a respeito da sinceridade deste aedo de Riachão do Jacuípe, é que sua obra não cai no jogo perigoso do tratamento postiço da linguagem, nem da falsidade estilística... e o leitor, ganhando com isso, agradece. Em Revelações do Grotão, seu mais novo livro, editado pela Mondrongo (Ilhéus, 2012), vemos uma obra bem trabalhada, onde se pode notar a maturidade do poeta e escritor, que busca superar-se incessantemente, que abre seu coração sertanejo num canto seco e arrebatador... Confiram:
PERFUME
DE PICA
( por Miguel Carneiro)
Deus criou o mundo e não esqueceu das
formigas. Há pessoas nesse mundo que são semelhantes como as formigas, só
gostam dos estragos e vivem devendo pelanca a gato, perto de se dizer: “Deus
queira que morra!”, mas quando a boca do filho beija, verdadeiramente, a da mãe
adoça. Nada nessa vida vã é à-toa, e os cornos, obra do Avesso, cumprem também
o papel sobre a face da terra. Ninguém é corno porque quer e nenhum corno por
mais cabisbaixo que seja aceita a admirável missão de ostentar cornos. A missão
do chifrudo é titânica: ridicularizado numa porta de venda, onde ali de tudo se
fala, fica o galheiro com a pecha para o resto da vida.
No anedotário brasileiro há
diversos tipos de galheiro: “corno-manso”, “corno-revoltado”, “corno
passional”, “corno-desleixado”, “corno-valente”, “corno-consciente-do-galho”,
“corno-traído”, “corno-faz-de-conta-que-não-toma”, “corno-arrependido”,
“corno-desiludido”, “corno-filho-da-puta”, “corno-conformado”,
“corno-de-chifre-cheio”, “corno-prepotente”, “corno-de-galho-baixo”, “corno-meu-futuro-é-Deus”
e por aí vai...
Mas não foi assim com Trazíbulo
Menezes Miranda, que fora casado com Ebonina de Araújo Sales, também chamada
dentro da casa de D. Rola, “Rolinha” para os mais íntimos. Os dois construíram,
no passar das horas, na mamparreação dos segundos, no cair do sol, alicerce,
reboco e pintura de uma longa história de oitenta anos de vida conjugal,
transformando-o no romance mais belo que já se ouviu naquelas terras
catingueiras.
Moravam numa fazenda próxima do
povoado de Cachorro Sentado, também chamado de Forró, perto de Coração de
Maria,. a qual tinha o nome de Recanto, e nela havia um grande criatório de
zebuíno. Era uma fazenda modelo na região, Zé Maria do Couto Sampaio, renomado
professor de zootecnia, fazia a chancela para que o rebanho se tornasse modelo
no Brasil. Trazíbulo Miranda dono de sua caminhoneta, fabrico de requeijão,
criação, cavalo bom no pisar do trote. Casara-se com D. Rola num tempo de
privações, na distante década de 60, quando a seca ameaçava dizimar todo seu
rebanho, a célebre estiagem de sessenta que tanto castigo trouxe para o homem
nordestino, quase que o levou ao roldão. Foi aos poucos erguendo a fortuna na
labuta dos dias, debaixo do sol escaldante que castiga aquele termo de caatinga
povoada por facheiro, palmatória, unha-de-gato, angico, cabeça-de-frade,
gravatá, jurema, quixabeira, caroá, rabo-de-raposa, calumbi e o escambau.
Um dia, quando percebeu que podia
sustentar uma família, noivou-se de D. Rola. Após um ano de namoro se casaram
na igreja do povoado de Cachorro Sentado em cujo orago se louvava a “Rose
Mystique”; Nossa Senhora Acalentadora de Nossos Pecados, que em cuja igreja
caiada de azul tinha suas portas talhadas em formosas almofadas no cedro que
dominava a paisagem e pomposo altar dedicado a Santa Efigênia e São Benedito o
casal realizava suas preces. O casamento fora oficiado no mês de maio pelo
velho padre da grei Monsenhor Dario Di Ciesco, tendo como padrinhos os casais
Aurino Ribeiro do Nascimento com Santinha do Amor Divino e Zuca Sodré com D.
Maria Carvalho de Melo.
Na noite do sarrafo, Trazíbulo
cavalgou Ebonina por prados, florestas e matas levando-o no tapete voador, à
maneira das “Mil e Uma Noites”, descortinando vales e montanhas no galope macio
do vergalho. Saciados da promenade, Trazíbulo adormeceu de tripé murcho,
enquanto Ebonina imersa em sonhos ainda passeava pelos jardjns suspensos da da
Babilônia. Daquela noite foi se formando a história de amor mais deslumbrante
que já se ouviu contar na caatinga. Desde que rei Salomão compôs o “Cântico dos
Cânticos” em louvor a sua amada.
O amor de Trazíbulo não se traduzia
em palavras, elas traem. O amor de Trazíbulo foi se formando com gestos,
delicados e ternos para um homem catingueiro acostumado a derrubar marruás no
pasto e segurar uma mula braba e doida com o próprio punho dos seus arreios.
Nessa noite do idílio Trazíbulo foi
preparando para a sua amada o seu verdadeiro presente. Após o coito, Trazíbulo
se dirigiu ao guarda-roupa e de lá tirou uma caixa de lenços brancos. Trazíbulo
tirava um lenço na caixa e enxugava sua amada, e ele foi também limpando com um
lenço a cabeça da pica encharcada de gozo. Esse rito foi se prolongando durante
cinqüenta anos de vida conjugal. E em cada lenço que era usado, Trazíbulo pedia
carinhosamente a Ebonina que não o lavasse. Deixasse com a marca do amor. E assim
caixas e mais caixas de lenços foram guardadas dentro do
guarda-roupa, chegando a um ponto de o próprio guarda roupa só servir para
colocar lenços perfumados a gala.
Quando comemoraram as bodas, nessa
noite Ebonina desarrumou todas as caixas e cobriu o leito com todos os lenços
que tinha usado em sua vida. E ali, em meio há tantos panos, adormeceram os
dois, numa prova de que a fidelidade é o que sedimenta um amor, que o diga
Trazíbulo.
Um comentário:
Disse tudo, Silvério. Sou fã de Miguelito.
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