Uma das primeiras edições de Eu de Augusto dos Anjos que neste último dia 06 de junho completou 100 anos de sua publicação. |
No último dia 6 de junho, deste ano, completaram-se,
exatamente, 100 anos do lançamento do livro Eu, do poeta Augusto dos
Anjos (já publicado aqui em fevereiro deste mesmo ano); um ícone, segundo o
poeta e amigo Florisvaldo Mattos, que tão hábil e gentilment, lembrou-me desta
data tão imortante, – talvez único –, único representante do Expressionismo na
poesia brasileira, equiparando-se a grandes poetas alemães Georg Trakl, Georg
Heym e Gotfried Benn, que alcançaram a fama nos começos do século passado, mas,
e isto é o que impressiona, talvez dele desconhecidos, segundo me confessa o
amigo poeta.
Augusto dos Anjos representa a nossa primeira, e
verdadeira, manifestação de Modernismo, ignorado irresponsavelmente pelos
organizadores e ideólogos da Semana de 22. Por ser, certamente, o poeta mais
singular de nossa literatura e, também, o mais editado. Porém, se assim o é ,se
Augusto é tão editado e comentado, se ele é dono de uma fortuna crítica
invejável, o que me restaria dizer sobre este bardo paraibano? Foi por saber
que nenhum jornal notíciou o fato, que nenhuma televisão se comprometeu em
dizê-lo, que nem uma revista especializada lembrou-se dele, que nenhuma
academia, que eu saiba, proferiu palestra sobre o assunto e por causa de toda
esta maldita decadência nada inspiradora de nossa época que, de pronto,
encontrei o exato assunto desta conversa sobre Augusto dos Anjos.
Nascido e morto nos trinta anos
que correspondem à transição do século XIX para o século XX, Augusto dos Anjos
cresceu e vivenciou muitos decadentismos, por assim dizer; muitas mudanças
radicais de pensamento e atitudes, muitos estilos artísticos e literários.
Segundo Antônio Houaiss2,
já a partir de meados do século retrasado “a segurança do regime econômico e
social da burguesia principiava a sofrer seus primeiros abalos”. De certo, as
muitas contradições internacionais, as inúmeras revoluções geraram problemas,
cuja Primeira Guerra Mundial (1914-1918) tornar-se-á seu ponto culminante. Vivendo
vida adulta de 1900 até a sua morte, em 1914, Augusto dos
Anjos coexistiu com os mais diferentes estilos literários e,
respectivamente, com escritores que, além de se integrarem a estes estilos,
levaram consigo uma cultura erudita de massa e seus rudimentos, como Aluísio
Azevedo, que morre em 1913; Inglês de Souza, morto em 1919; Machado de Assis e
Arthur Azevedo, falecidos em 1908 para citar realistas e naturalistas; além de
poetas parnasianos, simbolistas, seus colegas, por assim dizer,
pré-modernistas, e outros, como Coelho Neto, morto em 1934; Alberto de
Oliveira, 1937; Raimundo Correia, 1911; Olavo Bilac, em 1918; Joaquim Nabuco
(este, ainda, um romântico, no melhor sentido do termo), em 1910; Rui Barbosa,
em 1923 e, claro, Euclides da Cunha, em 1909.
No interregno
deste quadro sumário, o Brasil se encontra muito atrás, em relação à sua
derivação cultural, embora a Abolição (1888) e a Proclamação da República
(1889), por mais que esta última tenha saído de um golpe de estado,
renderam-lhe bons resultados na política e nos mercados internacionais. Em meio
a tudo isso, uma pequena e já decadente intelectualidade, últimos sinais de uma
cultura erudita, ainda vive e sobrevive. Voltada muito mais para problemas
filosóficos de ordem genérica do que para aspectos técnicos e matemáticos –
mais comuns à sua época e ao mudo novo que, dali, formara-se – temos aqueles
que representarão – perdoem-me, novamente, pelo jargão – os grandes
“divisores de águas” entre a cultura clássica e o verdadeiro Modernismo,
principalmente: Euclides da Cunha, e seu quase militante Os Sertões e
Augusto dos Anjos que, com seu Eu, resumindo toda uma imensa
problemática teleológica de um ser humano diante do mundo e da realidade e de
toda a angústia que a busca pelo saber pode angariar.
No plano
literário, o Brasil viveu um paradoxal anacronismo entre as muitas escolas
literárias oriundas do foco europeu – principalmente o francês – que,
mesclando-se e fundindo-se, acabam por não seguir a periodização do modelo e
comportamento de suas matrizes, mas todas se manifestando, como disse, fora do
tempo e, desta forma, produzindo, salvo o caso de nosso Parnasianismo,
originalidades e personalismos como é o caso do próprio Augusto dos Anjos.
Desta questão, surge um problema há muito não resolvido em relação à Escola a
qual muitos inserem o bardo paraibano... o Pré-Modernismo. O grande mal do Modernismo paulista, e, até hoje, uma grande desgraça
para quem se alimentou dele, foi o fato de os paulistanos se afastarem
completamente de um passado que só lhes podia fazer bem. Se olharmos, só por
motivo de exemplo, para os primeiros modernistas de Portugal, veremos que,
praticamente, não houve abolição, pelo menos não de todo, das formas fixas,
mesmo o soneto – e nem poderiam, pois, de tão enraizados estavam as língua e as
tradições portuguesas nos decassílabos camonianos que é, o decassílabo, a
própria expressão do pensamento e da língua lusitanas; nem, muito menos,
aboliriam os grandes temas que percorrem a mentalidade humana, há séculos e
séculos; é por isso, e, de certa forma, nos sirva de exemplo, que as Odes de
Álvaro de Campos são tão repletas de fábricas, engrenagens e automóveis
velozes, quanto de uma retórica ou de um ritmo poético tradicionalíssimos, e
que estes mesmos elementos “modernos” tão contemporâneos não se fazem livres de
um Virgílio ou de um Platão, tanto que estes chegam até a dividir os versos com
aqueles; o próprio Fernando Pessoa era tão embriagado de Aristóteles quanto de
Walt Whitman... Os portugueses, ao contrário do que reza o nosso cancioneiro
piadístico, não são idiotas – muito menos no que se refere à sua literatura;
eles sabiam que negar estas coisas é negar-se a si e a tudo que se podia
definir como cultura; o menos que isso é caos puro e simples. Agora, se
olharmos para o exemplo do Brasil, ou pelo menos o exemplo paulista que,
infelizmente, impera sobre os demais, a coisa é contrária: despreza-se o
passado, a tradição, a forma e mesmo a linguagem apurada, que não tinha nada
depreciosismo, em troca de quê? Em troca de algo que não se sustenta por si
mesmo justamente por não ter onde agarrar-se. A velha tentativa de buscar uma
identidade nacional, desprezando mais da metade dos elementos que constituem
esta identidade, só poderia dar em nada, ou pior, numa anomalia; e o Modernismo
paulista de 1922, é, em nossa Literatura, uma anomalia.
Mas se agirmos
com um bom senso, diferentemente à grande maioria de críticos e professores de
Literatura espalhados por aí, e não considerarmos os paulistas de 1922, como
precursores de nosso movimento modernista; e por que não consideraríamos?
Porque há uma geração moderna bem antes deles que, por preguiça, incompetência
de nossos críticos, ou espírito de cooporativismo porco, ou (o mais certo) os
três juntos, não se enquadra como modernista, apenas como Pré-alguma-coisa.
Ora, não conheço uma característica dita como moderna ou como oriunda dos
modernistas de São Paulo, que não tenha sido usada por um Augusto dos Anjos, ou
um Lima Barreto, ou mesmo um Euclides da Cunha? Mário de Andrade não foi melhor
nem nunca o será em retratar a urbis caótica do que um Lima
Barreto, nem um Oswald de Andrade seria capaz de trazer tanta valorização ao
passado, e às tradições culturais do Brasil, mais do que foram trazidas à luz
no antológico Triste fim de Policarpo Quaresma. O que é
o Manifesto Antropofágico frente àquele horror que nos traga,
nos devora e, ao mesmo tempo, nos apaixona e nos faz admirados nos sonetos de
Augusto dos Anjos – poemas como Os doentes e As cismas
do destino, presentes em Eu, são mais repletos de urbanismo e
de uma linguagem inovadora do que quaisquer textos de Mário de Andrade:
Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!
Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.
Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!
A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!
Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!
Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.
E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.
Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Biliões de centrosomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.
Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!
Mostravam-rne o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade egualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!
(...)
Sobre Augusto dos Anjos,
Ferreira Gullar, entre muitos, aponta-nos o caráter inovador – modernista – da
poesia do bardo paraibano: é quando ela rompe com as muitas conveniências
verbais e sociais da época, levando a uma mescla perfeita entre a beleza e o
asco, entre os momentos sublimes e toda a sujeira da vida, sem contar certo
prosaísmo, que triunfa sobre a rígida linguagem de seus sonetos... isto é ser
ou não ser modernista? Antropófagos, que eu saiba, foram o Raul
Bopp, a Tarsila e os índios que devoraram o Frei Sardinha. Certo foi o Manuel
Bandeira, que não entrou de todo nessa história. Isso sem falar nos
marginalizados como Graça Aranha e Monteiro Lobato; o primeiro soube enxergar,
antes de muitos, os enganos e os horrores do Fascismo e do Comunismo bem antes
de suas ascensões, é só ler o Canaã; o segundo caiu no ostracismo,
vitimado pelo “cooperativismo de suínos”, algo que os paulistas de 22 aventaram
como ninguém, por falar a verdade mais óbvia: que aqueles trabalhos de Anita
Malfatti, tão aclamados pelos seus patéticos colegas, eram, e são até
hoje, uma coisa ordinária. Não obstante, Monteiro nunca disse que ela era má
pintora ou que, pelo menos, não era talentosa. Há, também, as inúmeras
contribuições que os Contos gauchescos de Simão Lopes Neto
deram a Guimarães Rosa e ao seu Grande sertão: Veredas.
Para quem buscava a liberdade e
o fim das segregações, ninguém mais negou-nos a primeira, nem nos pregou mais a
segunda, do que os Modernistas paulistanos; não é à toa que, referindo-se ao
Modernismo de 22, Luís Augusto Ficher não se acanha em dizer que “o Modernismo
brasileiro, quer dizer, paulista, aquele que a gente aprendeu no colégio e hoje
virou cânone obrigatório, inescapável, a ponto de excluir (da escola, dos
manuais de história da literatura, portanto do horizonte prático da vida
cultural) autores que não rezem por aquele catecismo – para os gaúchos é fácil
ver isso, por exemplo, com o desprezo por Simões Lopes Neto, reduzido a
‘regionalista’ e, pior ainda, ‘pré-modernista’. Sem valor, portanto”. A Semana
paulista de Arte Moderna, de 1922, foi o golpe de misericórdia na já moribunda
cultura erudita brasileira.
Ciente de que, com ele,
encerrava-se um período brilhante de toda a nossa história, foi que o poeta
nascido no engenho Pau D’Arco muito bem escreveu seu soneto Debaixo do
Tamarindo, onde podemos encontrar o verso que intitula este post;
verso com “jogo de palavras” como, também, nos lembrou Houaiss: no primeiro
sentido, o Tamarindo guarda, como bem escreveu, “o passado da flora
brasileira”, porque, como indivíduo, revive a aventura biológica de sua
espécie, havendo nele, como que fossilizados (a
palavra paleontologia é a ciência que dos fósseis dos animais e
vegetais), até os carvalhos; no segundo sentido: note-se que o poeta se chama
Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos, razão porque a notação com
maiúscula para indicar sua família e toda a humana metafísica que a envolve,
também vítima de um decadentismo que a poesia de Augusto dos Anjos, como
nenhuma outra tratou de dissecar e discernir:
No
tempo de meu Pai, sob estes galhos,
como um
vela fúnebre de cera,
chorei
bilhões de vezes com a canseira
de
inexorabilíssimos trabalhos.
Hoje,
esta árvore, de amplos agasalhos,
guarda,
como uma caixa derradeira,
o
passado da Flora Brasileira
e a
paleontologia dos Carvalhos!
Quando
pararem todos os relógios
de
minha vida, e a voz dos necrológios
gritar
nos noticiários que morri,
voltando
à pátria da homogeneidade,
abraçado
com a própria Eternidade
a minha
sombra a de ficar aqui!
Feira de Santana, 06 de
junho de 2012.
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