Retrato
de Vincent van Gogh
(1887), por Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec Monfa
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A saudade é uma palavra
admirável, principalmente pela sua responsabilidade. Esta palavrinha existente
apenas em nossa língua portuguesa, como afirmam muitos, é responsável por
expressar os sentimentos mais diversos e contraditórios. A saudade pode
significar tanto tristeza como alegria, pois há saudades que nos machucam, bem
como há aquelas que nos confortam de uma maneira inigualável. Podemos ter
saudade em longo prazo, ou por um curtíssimo tempo. Há saudades que se
prolongam, muitas vezes mais que o necessário, e outras que parecem não ter
existido, até que nos encontremos com saudades semelhantes. Temos saudades de
coisas, bichos, pessoas, momentos, gestos, desejos até. Saudade de quem se foi
ou de quem jamais veio por essas bandas; saudade do que aconteceu e do que
deveria ter sido; saudade do vivido e do que jamais se viveu. Quanta
responsabilidade para uma só palavra, meu Deus! Neste exato momento, caro
leitor, neste momento mesmo que falo contigo, sinto uma profunda saudade do que
queria ter vivido... Eu queria ter vivido num tempo onde uma simples ida à
livraria era pretexto para encontrar Graciliano Ramos e toda sua genialidade e
aspereza; uma ida a um café era a
chance que se esperava para encontrar Drummond a discutir com outros de “sua
turminha” sobre poesia e seus rumos; onde as pessoas ditas intelectualizadas
realmente se preocupavam com os rumos de nossa cultura, procurando talentos ao
tempo que também promoviam os seus; compartilhando poemas, críticas, ideias e
ideais; aprendendo a ouvir com o outro a sua própria voz; ganhando, com o
talento de seu amigo, seu próprio talento; onde um tapinha no ombro valia bem
menos que uma boa bronca cercada de ensinamentos e gratidão. Saudades, leitor,
de um tempo onde poesia era comprada cara porque cara ela é à nossa existência.
Para onde foi (eu te pergunto) a boemia que terminava em bons poemas, quando
menos em bons achados? O porra-louquismo dos poetas que estendiam a mão menos
para quem se era, ou o que se lhe poderia oferecer, do que para o que se podia
escrever de grande e valioso...? É por essa razão, leitor amigo, por essa
saudade que me aflige neste instante em que falamos, que compartilho contigo,
com o intuito que ambos expurguemos muitas de nossas mágoas e angústias, a
transcrição dessa palestra, pronunciada
por meu amigo e grande poeta, jornalista e acadêmico de nossa Bahia, Florisvaldo
Mattos, durante o seminário “Memórias Cruzadas da Cidade do Salvador”,
promovido pela Fundação Pedro Calmon, sendo moderador seu presidente, o
historiador Ubiratan Castro, em 18 de julho de 2012, no auditório da Biblioteca
Pública do Estado da Bahia, nos Barris, na parte circunscrita ao tema A Cidade da Boemia, tendo como foco “a boemia literária e o entrelaçamento da vida
intelectual, mundana e universitária, que incubaram intensamente gerações de
intelectuais transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos
50”, para que entendas a razão desta minha saudade tão emocionada, neste tempos
em que o porra-louquismo deu lugar à bajulação gratuita, a crítica sadia foi
substituída pelo unilateralismo ideológico e a poesia por uma casca que um dia
abrigou seu conteúdo, e vejas, como eu estou a ver, toda transcendentalização
que uma dor pode nos acarretar, como diria Cruz e Souza... Ouçamos, caríssimo
leitor, ao poeta:
POESIA EM TEMPOS DE BOEMIA
LITERÁRIA
Houve
um tempo nesta Cidade do Salvador em que, mais que uma forma de convívio entre
amigos, as tertúlias eram um refúgio de que frequentemente se valia a boemia
literária, para fruir o intercâmbio cordial das ideias, que muitas vezes,
desaguava em desafio, em torneios de emulação, quando não em contenda rude,
açulando a curiosidade de uma audiência, que as acompanhava avidamente, de
perto ou à distância. E nelas muito de criação literária e artística se
divulgava, para depois ganhar o mundo. Essa distração intelectual com o tempo
se esvaneceu, perdeu a antiga feição de urbanidade, para quase completamente
sumir das práticas culturais, passando a compor um vasto anedotário. Em 1958,
já não mais se falava dessa espécie de concurso civilizado, mas ocorreu que, em
um bar da Rua da Ajuda, no curso de uma tertúlia boêmia, que reunia poetas,
literatos e jornalistas, dois sonetos deixariam de ser remotos estados de ânimo
e sutileza mental, para cumprir um trajeto que pertence a todos os que viajam
pelo terreno dos símbolos.
A
partir dos anos 1940, quando profundas alterações ocorrem na ordem social e
econômica, com fortes reflexos na cultura, a Bahia, que era a terra do “já
foi”, toma outra configuração demográfica e urbana, impulsionada pela
descoberta do petróleo no Recôncavo e a conseqüente deflagração de um processo
de industrialização modernizador, livrando-se da dependência do comércio
agroexportador, que tinha sua robustez centrada no cacau; nova dinâmica advinda
das transformações no sistema de transportes rodoviário e aeroviário torna mais
rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste pobre, aproximando centros de
consumo e fornecimento de bens e mercadorias; por fim, ocorrem mudanças no
panorama cultural, desde a gestão liberal de Anísio Teixeira na Secretaria da
Educação e Cultura, no Governo Mangabeira (1947-1951), acentuadas pela
revolução que o reitorado de Edgar Santos imprimirá na Universidade da Bahia,
nos anos 1950, criando novas escolas de arte e institutos especializados, além
de reformular unidades já existentes. Todos, quase em uníssono, querendo elevar
o bem-estar dos baianos.
Tais
sucessos vão se refletir diretamente no desenvolvimento da Cidade do Salvador,
que, cansada e envergonhada do velho perfil provinciano, começa então a
sonhar-se cosmopolita. Num primeiro momento, as letras e as artes entram em
agitação, na ânsia de se libertar das amarras do conservadorismo imperante, com
a presença e a ação de jovens artistas plásticos (Mário Cravo Júnior, Carlos
Bastos, Carybé, Genaro, Jenner Augusto, Rubem Valentim), ficcionistas e poetas
(Vasconcelos Maia, José Pedreira, Wilson Rocha, Jair Gramacho), espraiando-se
para outros campos (arquitetura e mundanismo, de incursão até na política), ao
sopro dos ventos liberalizantes da Constituição de 1946. O entrelaçamento entre
a vida intelectual mundana e universitária faz surgir, então, com tinturas
existencialistas, o primeiro pouso aconchegante da boemia literária na cidade,
o Bar Anjo Azul, na Rua do Cabeça, que se tornaria doravante um emblema local, um
marco no gênero. Era a vibrante interseção na cidade da Geração Caderno da
Bahia, empenhada em fazer vingar o ideário estético do modernismo, cuja adoção
plena o academicismo rotundo e insensível travara por dois decênios.
Neste
momento, uma coceira mental me traz à lembrança um poema evocativo que escrevi
muitos anos depois, repercutindo as emoções e o ambiente urbano, com que me
defrontei, a partir da noite em que pisava pela primeira vez o asfalto da
cidade. Sob o título de “Tempos de Arlequim”, composto de versos cadenciados,
mas sem rimas, integra o livro Mares
anoitecidos, que publiquei no ano 2000, como parte de coletânea alusiva aos
500 anos do Descobrimento. Não me envergonha reproduzi-lo:
Salvador é Carnaval. Quando cheguei,
em noite de Segunda-Feira Gorda,
as cores da cidade feiticeira
e os meus olhos na praça fumegavam.
Havia corso e blocos veteranos
(nomes claros que hoje fazem sonhar).
Sobem os Inocentes em Progresso,
descem os Mercadores
de Bagdad.
No Bob’s Bar, que depois será Cacique,
param o som travesso e a peraltice
da guitarra elétrica na Fobica;
uma estrela desponta e, com a luz dela,
A multidão que pula e agita ramos
(a prévia tosca da mamãe- sacode)
canta, dança, grita, bebe cerveja.
Eu ali que faço? Acompanho o passo.
Batalhas de confete e serpentina,
pierrôs, lança-perfume, colombinas,
estrelejando o chão da Rua Chile,
onde desfilam afoxés. (A brisa
É mais um concorrente da folia,
e eu, olhos postos em longínqua trama
de sonhos dando voltas num salão
e numa rua, espelho do infinito).
Avança por meu tempo de incertezas
a máscara sedutora do passado,
blocos de rancho fecundando auroras
e o entardecer de etéreas batucadas.
Súbito são morenas de um cordão;
arlequim invasor da madrugada
agarra-se à cintura de uma delas
e sobe a praça rumo à Sé que ferve.
É nessa
atmosfera de sonho e esperanças que desembarco em Salvador, em fevereiro de
1952, numa noite de Segunda-Feira Gorda de Carnaval, vindo de Itabuna, para
estudar no paradigmático Colégio da Bahia e depois cursar universidade. E é a
partir da Faculdade de Direito, já publicando poesia na revista Ângulos, então prestigiosa publicação do
Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de Direito (CARB) que venho integrar
o grupo nuclear de jovens, adiante dito Geração Mapa, que borbulhava entre o
sucesso e o escândalo, com as apresentações de seus espetáculos de poesia
dramatizada no auditório do Colégio da Bahia, rotulados de Jogralescas, por
volta de 1956/57. Glauber Rocha à frente, e já se insinuando líder, por lá
transitava uma irrequieta malta de declamadores composta de poetas, artistas
plásticos, teatrólogos, cineastas, atores e futuros jornalistas (Fernando da
Rocha Peres, João Carlos Teixeira Gomes, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Sante
Scaldaferri, Ângelo Roberto, Fernando Rocha, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza
Castro, Antônio Guerra Lima, Anecy Rocha, cito alguns), protegidos da sanha
proibitiva e coercitiva da pressionada direção do colégio pelo professor Ruy
Simões, um fervoroso apoiador e defensor desses anseios juvenis.
Recordo
o encontro que me lançaria nessa caudal de sonhos, com moldura exótica, senão
cômica. Em fins de 1956, o Nº 11 da revista Ângulos
publicava o meu poema “Composição de ferrovia”, quase um hino telúrico à State
of Bahia South Western Railway Company, antigo nome da depois mítica E. F. I.
C. (Estrada de Ferro de Ilhéus a Conquista), que civilizou e desenvolveu a
Região do Cacau, permitindo o surgimento de vilas, que logo seriam cidades e
municípios, e o conseqüente desenvolvimento da produção, gerando riqueza. Foi
quando certa manhã, eu sentado num dos bancos do hall da faculdade, vêm me avisar que indagavam por mim na
portaria. Saio para o umbral e me deparo com cinco rostos quase imberbes. Logo,
um deles me saúda e, dizendo falar em nome dos outros, exclama, enfático:
“Viemos aqui para conhecer o autor do poema “Composição de ferrovia”, para nós
o melhor poeta modernista da Bahia”. Ouvi desconfiado, mas, entre assustado e
incrédulo, agradeci o hilário gesto. Nome do excêntrico porta-voz: Glauber
Rocha, que, em seguida, me convida a ir à sua casa, na Rua General Labatut, Nº
13, 1º andar, onde, dizia-me, costumava se reunir com os companheiros, para
discutir uma quase infinita pauta de inquietações, aspirações e planos modernistas.
A
entrada de Glauber Rocha no cenário sugere novo parêntese para evocar episódio
de conotação ainda mais cômica, produto de uma viagem que fez ao Nordeste, em
1960, acompanhado de João Carlos Teixeira Gomes, durante a qual este sofreu um
acidente, ao descer de um ônibus, forçando-o a passar o restante do trajeto com
o pé enfaixado.
Com a cabeça atulhada de
projetos, buscava Glauber, nesta viagem, colher subsídios e inspiração que
iriam compor os roteiros de duas de suas obras primas cinematográficas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo
Guerreiro. A certa altura da excursão, pararam em Recife e, nas andanças
por lá, se encantaram com o poeta Ascenso Ferreira, um dos ícones do primeiro
modernismo, ao lado de Manuel Bandeira, outro pernambucano. Impressionados com
a histriônica figura, resolveram convidá-lo a visitar a Bahia. Pouco depois,
com seus dois metros de altura, 120 quilos de peso, chapéu panamá de aba larga,
terno branco e gravata, o poeta de Catimbó
e Cana Caiana, desembarca em
Salvador, onde o cercam de homenagens e rapapés, faz conferências, assiste a
peças teatrais, passeia e, principalmente percorre e freqüenta bares e
restaurantes, comendo e bebendo, com as honrarias que se devem a visitantes
ilustres ou boêmios consagrados, demorando-se em Salvador por cerca de um mês.
Na véspera de voltar ao
Recife, Glauber e os mais assíduos nas estripulias resolveram fazer uma
despedida, convocando a imprensa para uma entrevista com o pernambucano. Em
clima de festa, conversa regada a cerveja e acepipes já chegando ao fim, um
jornalista pergunta ao poeta: “Ascenso, durante todos esses dias que por aqui
passou, o que mais o impressionou e agradou na Bahia? Ascenso parou, franziu a
testa, olhou sorridente e bonachão para o jovem e, lembrando talvez o que fazia
naturalmente nas ruas, quando pouco sóbrio, disparou: “A liberdade de
mijar”.
Associei-me
ao grupo e me engajei na saga de suas aventuras editoriais e artísticas,
refletida numa vasta gama de ações, envolvendo literatura, teatro, cinema,
artes plásticas e jornalismo. E logo começariam a surgir, em torrente, livros
com o selo das Edições Macunaíma; projetos cinematográficos pela nascente
Iemanjá Filmes; pinturas, esculturas e gravuras, em galerias de arte, que se montavam
então; variadas peças levadas no espaço da jovem Escola de Teatro, dirigida
pelo pernambucano Martim Gonçalves; logo também, uma revista, a Mapa, e o inesquecível SDN, o suplemento
literário dominical editado pelo Diário
de Notícias, de Assis Chateaubriand, rematavam um vertiginoso leque de
aspirações inovadoras. Aos nomes citados, vale lembrar outros aderentes, como
eu: Myriam Fraga, João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho, David Salles, Valdeloir
Rego, além do então apenas dentista, depois professor e autoridade em
antropologia cultural, Vivaldo da Costa Lima. Neste contexto, não se deve
esquecer a singular, solidária e entusiástica presença de um antes experiente
livreiro, Zitelmann de Oliva, ora à frente da empresa Artes Gráficas, então
operando na Rua do Saldanha, cujo apoio permitiu não apenas a realização dos
projetos editoriais do grupo, com o lançamento dos primeiros livros de poesia e
ficção, como ainda a edição de álbuns de gravura e dos três únicos números da
revista Mapa, entre 1957 e 1958.
Como
então os tempos de franca liberdade se casavam com a vida boêmia, febris
cogitações e intensos debates exigiam que a geografia da cordialidade se
estendesse por diversos pontos, onde as tertúlias se tornariam habituais. Eram
então os mais freqüentados: a Sorveteria Cubana, ainda hoje lá na parte alta do
Elevador Lacerda; o Bar e Restaurante Cacique, na Praça Castro Alves, mas ainda
à época chamada de Largo do Teatro; o Bar Anjo Azul e o Restaurante Porto do
Moreira; o Bar Brasil e o Chez Bernard, novidade que se instalara no terraço
inaugural do Edifício Themis, ambos na Praça da Sé; e, às vezes, o Colón, na
Piedade. E, nos fins de noite, com tudo fechado, o romântico Zé do Esquife, um
variado e iluminado tabuleiro de iguarias caseiras, que se abria à voracidade
boêmia, a uns dez metros da estátua de Castro Alves, junto à balaustrada.
Desse
hoje para muitos um urbano paraíso perdido, repositório de sensações e
conquistas inauditas, todos teriam histórias prazerosas a contar, mas, de todos
esses lugares, talvez seja o Porto do Moreira o que, pela qualificação e
variedade da clientela, mais guarde a memória de casos dignos de registro.
Fundado em 1938 pelo português José Moreira (o Sêo Moreira), e facultando a
seus clientes um assíduo quanto vasto cardápio de pratos caseiros de inspiração
lusa e baiana, tornou-se desde cedo uma casa de pasto cujas mesas reuniam
diariamente a nata da inteligência e da burocracia, representada por
escritores, poetas, artistas plásticos, professores, jornalistas, profissionais
liberais, membros da magistratura, além de políticos, funcionários públicos e
comerciários, que lhe davam cor local, como até hoje ocorre neste ameno quase
octogenário recanto. Além da cordialidade e simpatia do dono, virtudes
saudavelmente transferidas aos filhos, Antônio e Francisco, que, na condição de
herdeiros, ainda hoje mantêm o famoso lugar como um ícone de prazeres
gustativos na geografia da cidade.
Muito
de histórias passadas lá permanece no imaginário dos remanescentes de uma fiel
clientela. Evoquemos uma delas quase ao acaso, narrada por Carlos Coqueijo
Costa, conceituado dublê de jurista do Trabalho, cronista, compositor musical e
animador cultural. Com o restaurante funcionando já no atual endereço, no Largo
do Mucambinho, mais conhecido como Largo das Flores, na Rua Carlos Gomes, entre
os garçons do serviço, havia um mulato magro, calmo, atencioso e simpático,
apelidado de Popó. Atendido por ele, certo dia, na hora do almoço, com preguiça
de ler o cardápio escrito à mão, um freguês lhe pergunta: “Popó, que temos de
bom hoje, aqui na casa, para comer?”. Solícito, lhe responde Popó, suavemente:
“Tem galinha de molho pardo, galinha de ensopado, fígado acebolado, ensopado de
carneiro, porco assado, salada de bacalhau, filé a cavalo, moqueca de miolo e
moqueca de carne”. Fez uma pequena pausa e concluiu: “E, de sobremesa, goiabada
com queijo e banana pessoalmente”.
Coqueijo contou este curioso diálogo numa das crônicas que então escrevia, às
segundas-feiras, no jornal “A Tarde”, cujo recorte ainda hoje, emoldurado, está
afixado na parede do restaurante, à vista dos fregueses.
A noite
era realmente criança e aconselhava outros pousos e outros desempenhos, que
ninguém é de ferro, a começar pelas casas de mulherio, como o “Meia-três”, na
Ladeira da Montanha, a casa de “China”, na Rua da Gameleira, a de “Maria da
Vovó” e a de “Cymara”, ambas em transversais da Ladeira da Praça; gafieiras
(Churrascaria Ide, Metrô, Rumba Dancing, Belvedere, Marajó); inaugurais boates
(Carijó, XK Bar, Manhattan, Pigalle) e, para os mais abonados, o Cassino
Tabaris, de cujas noites perdulárias restaram histórias memoráveis, não só as
antigas de coronéis do cacau. E aqui nova urticária mental me induz a outro
parêntese, para lembrar episódio tão cômico quanto surrealista, protagonizado
por alguns de nossa turma numa dessas noites de boemia peralta. Em meados de
outubro de 1958, um mês depois de fundado, o Jornal da Bahia fazia o primeiro pagamento dos que compunham a sua
primeira equipe de Redação, e lá fomos receber no guichê da gerência o que nos
cabia, como atores dessa façanha - eu, Paulo Gil Soares, Joca (João Carlos
Teixeira Gomes) e Fernando Rocha (Bananeira), na reportagem geral, Calasans
Neto, na programação visual, e Glauber Rocha, editor da seção de Polícia.
Pegamos
o dinheiro curto no caixa e, à noite, com a aderência de mais alguns, alegres e
felizes, marchamos todos para o Tabaris, onde na ocasião se apresentava um balé
argentino, composto de dançarinas loiras e morenas, de corpo torneado e maiô,
dançando o repertório musical da moda, bolero, mambo, rumba, conga e tango, ao
som de uma afinada e buliçosa orquestra de sopro. Era comum nos intervalos,
como parte da atração, elas, as bailarinas, virem às mesas, conversar, beber e
até dançar com freqüentadores. Nesta para nós noite inaugural, mulheres na
mesa, e bebendo, saímos alguns a dançar, inclusive com as moças do balé. É
quando, por volta da meia-noite, Glauber, um protestante de devoção arredia,
abstêmio total, subitamente inquieto mais que o normal, passa a censurar os
protagonistas da cena e a protestar contra aqueles excessos. Cenho fechado,
mais que de repente, sobe na mesa e, em pé, põe-se lá de cima a bradar,
possesso: “Isto é um absurdo! Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!” E, em
tom de execração bíblica, repete mais de uma vez a última frase -”Tirem daqui
essas mulheres de Babilônia!”-, aturdindo as moças e companheiros em volta,
para então, entre o sério e o farsante, atendendo aos clamores e ostentando no
rosto um sorriso frajola, descer da mesa, sob estrondosa gargalhada.
Fora
desses lugares que menciono e das cantinas de faculdade, davam-se ainda os
encontros nas sessões dominicais do Clube de Cinema da Bahia, capitaneadas pelo
misto de advogado trabalhista e crítico de cinema Walter da Silveira, em salas
de espera dos cinemas, portas de livraria e “hall” de faculdades. A cidade
tranqüila era assim intensa e ludicamente vivida, dia e noite, em transações
que varavam as madrugadas.
Volto
ao começo, à história dos dois sonetos nascidos de uma remota tertúlia
literária, no lusco-fusco de um bar, em anos de boemia e jornalismo romântico.
Narro a excentricidade. Noite de primavera, dias depois do surgimento do Jornal da Bahia, na Rua Virgílio
Damásio, nº 3, uma transversal da Rua Chile, numa das mesas de tampo de mármore
do Bar Nogueira, então um dos mais concorridos da Rua da Ajuda, vizinho ao
famoso Café das Meninas, amigos estão sentados, dois deles poetas e dois
tarimbados jornalistas. Poetas, eu, um mero iniciante, na poesia e na imprensa,
e Jair Gramacho, já um dos mais prestigiados membros da Geração Caderno da
Bahia, na qual disputava píncaros com o poeta Wilson Rocha, ambos ícones locais
do modernismo. Os dois jornalistas eram Ariovaldo Matos, romancista e autor de Corta Braço, ficção pioneira inspirada
numa invasão de terras ocorrida no bairro da Liberdade, e o contista e cronista
Flávio Costa, este subsecretário de Redação, que acabara de lançar Além das torres do Kremlin, relatos de
viagem a Moscou, aquele experiente Chefe de Reportagem do novo jornal, que
antes exercera com afã militante o mesmo cargo em O Momento, aguerrido
jornal que funcionou na Ladeira de São Bento (1945-1957), pertencente ao
Partido Comunista do Brasil, o Partidão, fundado e mantido por Aristeu Nogueira
e João Falcão, este depois fundador do próprio Jornal da Bahia.
Falava-se
de literatura e política, como sempre, quando de repente, coisa de boêmios,
surge um desafio, para saber-se quem dos dois poetas ali melhor escreveria um
soneto. Não lembro o autor do repentino alvitre, tampouco o grau do efeito
etílico, que, indulgente, o Ângelus da Igreja da Ajuda ali perto acalentava.
Surpresos, os dois poetas se entreolharam, mediram o tamanho do repto, mas,
feito o ajuste, bebericaram um pouco mais e se foram. Dois dias após, tal como
combinado, voltamos os quatro ao mesmo bar, cada um dos poetas empunhando a sua
Excalibur verbal: eu, com o soneto intitulado "A cabra", de cândida
inspiração rural, composto no clássico formato petrarquiano, com os catorze
versos dispostos em dois quartetos e dois tercetos; ele, Jair Gramacho, com
suntuosa joia lavrada no modelo shakespereano, de três quartetos integrados e
um dístico, amplo de alusões panteístas e referências mitológicas, invocando
lenda campestre em torno de Meleagro, herói de Calidônia; mas, tanto um quanto
o outro, construídos em decassílabos de rimas emparelhadas ou entrelaçadas.
Cumprindo
o ritual e com a devida entonação, cada autor leu o seu soneto. Na postura de
juízes, depois de ouvi-los e cotejá-los, em silêncio, os dois jornalistas
concluíram sorridentes que os dois poemas mereciam publicação mais ampla, na
edição dominical do Jornal da Bahia.
Dito e feito. Dias depois, com verniz gráfico de prestígio, ambos os sonetos
ocupavam as duas colunas ao lado direito da página literária, editada sob a
batuta do historiador e cronista Luís Henrique Dias Tavares, mas sem uma linha
sequer alusiva ao embate travado no bar da Ajuda. Publicados, cada soneto seria
alvo de corporativista acolhida: o meu, com recitação e elogios da presunçosa
grei a que eu pertencia, enquanto o de Jair bem mais efusivamente louvado não
apenas por nomes consagrados de sua geração.
Em
1960, os dois poemas seriam ainda publicados na revista Ângulos (Nº 16), então comandada por Noênio Spínola (diretor) e
Antônio Guerra Lima (Guerrinha), de redator-chefe, com João Ubaldo Ribeiro
diretor de Cultura do CARB, mas cada uma das criações poéticas doravante com
sorte diversa: “A cabra” iria compor o conjunto do meu primeiro livro, Reverdor (Edições Macunaíma, 1965),
enquanto o primoroso soneto de Jair Gramacho, ao que sei, permanece até hoje
inédito em livro. São eles que agora abaixo reproduzo, vindo em primeiro lugar,
por direito inalienável, o do meu saudoso e insigne êmulo.
SONETO OITAVO DE ATALANTA EM
CALIDÔNIA
Jair
Gramacho
Nesta tarde o terreiro está vazio.
Distante o laranjal se estende; a manga,
a serra, o azul depois; tênue miçanga
de açafrão tinge as fímbrias, o do estio
único resto. Esta tristeza é mais
que a da paisagem pobre e adormecente;
talvez por não ter rosas, não ter gente,
e a solidão vagueie pelos currais.
Mas, certo é que nesta hora, ressurrecto,
o mito abandonado busca o luxo
antigo de existir; dispõe espectros
que em volta cirandeiam do repuxo...
Ah! Mais que basta para o
instante magro
galinhas ver – irmãs de Meleagro!
.........................................................................
A CABRA
Florisvaldo Mattos
Talvez um lírio. Máquina de alvura
sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.
Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra: o capim ao sonho preferindo.
Sulca-me perdurando nos ouvidos,
laborado em marfim – luz e presença
de reinos pastoris antes servidos –
teu pelo, residência da ternura,
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.
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