sábado, 15 de setembro de 2012

POESIA EM TEMPOS DE BOEMIA LITERÁRIA: UMA PALESTRA DE FLORISVALDO MATOS SOBRE MEMÓRIA E SAUDADES...


Retrato de Vincent van Gogh (1887), por Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec Monfa

A saudade é uma palavra admirável, principalmente pela sua responsabilidade. Esta palavrinha existente apenas em nossa língua portuguesa, como afirmam muitos, é responsável por expressar os sentimentos mais diversos e contraditórios. A saudade pode significar tanto tristeza como alegria, pois há saudades que nos machucam, bem como há aquelas que nos confortam de uma maneira inigualável. Podemos ter saudade em longo prazo, ou por um curtíssimo tempo. Há saudades que se prolongam, muitas vezes mais que o necessário, e outras que parecem não ter existido, até que nos encontremos com saudades semelhantes. Temos saudades de coisas, bichos, pessoas, momentos, gestos, desejos até. Saudade de quem se foi ou de quem jamais veio por essas bandas; saudade do que aconteceu e do que deveria ter sido; saudade do vivido e do que jamais se viveu. Quanta responsabilidade para uma só palavra, meu Deus! Neste exato momento, caro leitor, neste momento mesmo que falo contigo, sinto uma profunda saudade do que queria ter vivido... Eu queria ter vivido num tempo onde uma simples ida à livraria era pretexto para encontrar Graciliano Ramos e toda sua genialidade e aspereza; uma ida a um café era a chance que se esperava para encontrar Drummond a discutir com outros de “sua turminha” sobre poesia e seus rumos; onde as pessoas ditas intelectualizadas realmente se preocupavam com os rumos de nossa cultura, procurando talentos ao tempo que também promoviam os seus; compartilhando poemas, críticas, ideias e ideais; aprendendo a ouvir com o outro a sua própria voz; ganhando, com o talento de seu amigo, seu próprio talento; onde um tapinha no ombro valia bem menos que uma boa bronca cercada de ensinamentos e gratidão. Saudades, leitor, de um tempo onde poesia era comprada cara porque cara ela é à nossa existência. Para onde foi (eu te pergunto) a boemia que terminava em bons poemas, quando menos em bons achados? O porra-louquismo dos poetas que estendiam a mão menos para quem se era, ou o que se lhe poderia oferecer, do que para o que se podia escrever de grande e valioso...? É por essa razão, leitor amigo, por essa saudade que me aflige neste instante em que falamos, que compartilho contigo, com o intuito que ambos expurguemos muitas de nossas mágoas e angústias, a transcrição dessa palestra, pronunciada por meu amigo e grande poeta, jornalista e acadêmico de nossa Bahia, Florisvaldo Mattos, durante o seminário “Memórias Cruzadas da Cidade do Salvador”, promovido pela Fundação Pedro Calmon, sendo moderador seu presidente, o historiador Ubiratan Castro, em 18 de julho de 2012, no auditório da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, nos Barris, na parte circunscrita ao tema A Cidade da Boemia, tendo como foco “a boemia literária e o entrelaçamento da vida intelectual, mundana e universitária, que incubaram intensamente gerações de intelectuais transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos 50”, para que entendas a razão desta minha saudade tão emocionada, neste tempos em que o porra-louquismo deu lugar à bajulação gratuita, a crítica sadia foi substituída pelo unilateralismo ideológico e a poesia por uma casca que um dia abrigou seu conteúdo, e vejas, como eu estou a ver, toda transcendentalização que uma dor pode nos acarretar, como diria Cruz e Souza... Ouçamos, caríssimo leitor, ao poeta:



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POESIA EM TEMPOS DE BOEMIA LITERÁRIA
                                                
Houve um tempo nesta Cidade do Salvador em que, mais que uma forma de convívio entre amigos, as tertúlias eram um refúgio de que frequentemente se valia a boemia literária, para fruir o intercâmbio cordial das ideias, que muitas vezes, desaguava em desafio, em torneios de emulação, quando não em contenda rude, açulando a curiosidade de uma audiência, que as acompanhava avidamente, de perto ou à distância. E nelas muito de criação literária e artística se divulgava, para depois ganhar o mundo. Essa distração intelectual com o tempo se esvaneceu, perdeu a antiga feição de urbanidade, para quase completamente sumir das práticas culturais, passando a compor um vasto anedotário. Em 1958, já não mais se falava dessa espécie de concurso civilizado, mas ocorreu que, em um bar da Rua da Ajuda, no curso de uma tertúlia boêmia, que reunia poetas, literatos e jornalistas, dois sonetos deixariam de ser remotos estados de ânimo e sutileza mental, para cumprir um trajeto que pertence a todos os que viajam pelo terreno dos símbolos.
A partir dos anos 1940, quando profundas alterações ocorrem na ordem social e econômica, com fortes reflexos na cultura, a Bahia, que era a terra do “já foi”, toma outra configuração demográfica e urbana, impulsionada pela descoberta do petróleo no Recôncavo e a conseqüente deflagração de um processo de industrialização modernizador, livrando-se da dependência do comércio agroexportador, que tinha sua robustez centrada no cacau; nova dinâmica advinda das transformações no sistema de transportes rodoviário e aeroviário torna mais rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste pobre, aproximando centros de consumo e fornecimento de bens e mercadorias; por fim, ocorrem mudanças no panorama cultural, desde a gestão liberal de Anísio Teixeira na Secretaria da Educação e Cultura, no Governo Mangabeira (1947-1951), acentuadas pela revolução que o reitorado de Edgar Santos imprimirá na Universidade da Bahia, nos anos 1950, criando novas escolas de arte e institutos especializados, além de reformular unidades já existentes. Todos, quase em uníssono, querendo elevar o bem-estar dos baianos.
Tais sucessos vão se refletir diretamente no desenvolvimento da Cidade do Salvador, que, cansada e envergonhada do velho perfil provinciano, começa então a sonhar-se cosmopolita. Num primeiro momento, as letras e as artes entram em agitação, na ânsia de se libertar das amarras do conservadorismo imperante, com a presença e a ação de jovens artistas plásticos (Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos, Carybé, Genaro, Jenner Augusto, Rubem Valentim), ficcionistas e poetas (Vasconcelos Maia, José Pedreira, Wilson Rocha, Jair Gramacho), espraiando-se para outros campos (arquitetura e mundanismo, de incursão até na política), ao sopro dos ventos liberalizantes da Constituição de 1946. O entrelaçamento entre a vida intelectual mundana e universitária faz surgir, então, com tinturas existencialistas, o primeiro pouso aconchegante da boemia literária na cidade, o Bar Anjo Azul, na Rua do Cabeça, que se tornaria doravante um emblema local, um marco no gênero. Era a vibrante interseção na cidade da Geração Caderno da Bahia, empenhada em fazer vingar o ideário estético do modernismo, cuja adoção plena o academicismo rotundo e insensível travara por dois decênios.
Neste momento, uma coceira mental me traz à lembrança um poema evocativo que escrevi muitos anos depois, repercutindo as emoções e o ambiente urbano, com que me defrontei, a partir da noite em que pisava pela primeira vez o asfalto da cidade. Sob o título de “Tempos de Arlequim”, composto de versos cadenciados, mas sem rimas, integra o livro Mares anoitecidos, que publiquei no ano 2000, como parte de coletânea alusiva aos 500 anos do Descobrimento. Não me envergonha reproduzi-lo:
Salvador é Carnaval. Quando cheguei,
em noite de Segunda-Feira Gorda,
as cores da cidade feiticeira
e os meus olhos na praça fumegavam.
Havia corso e blocos veteranos
(nomes claros que hoje fazem sonhar).
Sobem os Inocentes em Progresso,
descem os Mercadores de Bagdad.  
No Bob’s Bar, que depois será Cacique,
param o som travesso e a peraltice
da guitarra elétrica na Fobica;
uma estrela desponta e, com a luz dela,
A multidão que pula e agita ramos
(a prévia tosca da mamãe- sacode)
canta, dança, grita, bebe cerveja.
Eu ali que faço? Acompanho o passo.
Batalhas de confete e serpentina,
pierrôs, lança-perfume, colombinas,
estrelejando o chão da Rua Chile,
onde desfilam afoxés. (A brisa
É mais um concorrente da folia,
e eu, olhos postos em longínqua trama
de sonhos dando voltas num salão
e numa rua, espelho do infinito).
Avança por meu tempo de incertezas
a máscara sedutora do passado,
blocos de rancho fecundando auroras
e o entardecer de etéreas batucadas.
Súbito são morenas de um cordão;
arlequim invasor da madrugada
agarra-se à cintura de uma delas
e sobe a praça rumo à Sé que ferve.
É nessa atmosfera de sonho e esperanças que desembarco em Salvador, em fevereiro de 1952, numa noite de Segunda-Feira Gorda de Carnaval, vindo de Itabuna, para estudar no paradigmático Colégio da Bahia e depois cursar universidade. E é a partir da Faculdade de Direito, já publicando poesia na revista Ângulos, então prestigiosa publicação do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de Direito (CARB) que venho integrar o grupo nuclear de jovens, adiante dito Geração Mapa, que borbulhava entre o sucesso e o escândalo, com as apresentações de seus espetáculos de poesia dramatizada no auditório do Colégio da Bahia, rotulados de Jogralescas, por volta de 1956/57. Glauber Rocha à frente, e já se insinuando líder, por lá transitava uma irrequieta malta de declamadores composta de poetas, artistas plásticos, teatrólogos, cineastas, atores e futuros jornalistas (Fernando da Rocha Peres, João Carlos Teixeira Gomes, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, Fernando Rocha, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Antônio Guerra Lima, Anecy Rocha, cito alguns), protegidos da sanha proibitiva e coercitiva da pressionada direção do colégio pelo professor Ruy Simões, um fervoroso apoiador e defensor desses anseios juvenis.
Recordo o encontro que me lançaria nessa caudal de sonhos, com moldura exótica, senão cômica. Em fins de 1956, o Nº 11 da revista Ângulos publicava o meu poema “Composição de ferrovia”, quase um hino telúrico à State of Bahia South Western Railway Company, antigo nome da depois mítica E. F. I. C. (Estrada de Ferro de Ilhéus a Conquista), que civilizou e desenvolveu a Região do Cacau, permitindo o surgimento de vilas, que logo seriam cidades e municípios, e o conseqüente desenvolvimento da produção, gerando riqueza. Foi quando certa manhã, eu sentado num dos bancos do hall da faculdade, vêm me avisar que indagavam por mim na portaria. Saio para o umbral e me deparo com cinco rostos quase imberbes. Logo, um deles me saúda e, dizendo falar em nome dos outros, exclama, enfático: “Viemos aqui para conhecer o autor do poema “Composição de ferrovia”, para nós o melhor poeta modernista da Bahia”. Ouvi desconfiado, mas, entre assustado e incrédulo, agradeci o hilário gesto. Nome do excêntrico porta-voz: Glauber Rocha, que, em seguida, me convida a ir à sua casa, na Rua General Labatut, Nº 13, 1º andar, onde, dizia-me, costumava se reunir com os companheiros, para discutir uma quase infinita pauta de inquietações, aspirações e planos modernistas.
A entrada de Glauber Rocha no cenário sugere novo parêntese para evocar episódio de conotação ainda mais cômica, produto de uma viagem que fez ao Nordeste, em 1960, acompanhado de João Carlos Teixeira Gomes, durante a qual este sofreu um acidente, ao descer de um ônibus, forçando-o a passar o restante do trajeto com o pé enfaixado.
Com a cabeça atulhada de projetos, buscava Glauber, nesta viagem, colher subsídios e inspiração que iriam compor os roteiros de duas de suas obras primas cinematográficas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. A certa altura da excursão, pararam em Recife e, nas andanças por lá, se encantaram com o poeta Ascenso Ferreira, um dos ícones do primeiro modernismo, ao lado de Manuel Bandeira, outro pernambucano. Impressionados com a histriônica figura, resolveram convidá-lo a visitar a Bahia. Pouco depois, com seus dois metros de altura, 120 quilos de peso, chapéu panamá de aba larga, terno branco e gravata, o poeta de Catimbó e Cana Caiana, desembarca em Salvador, onde o cercam de homenagens e rapapés, faz conferências, assiste a peças teatrais, passeia e, principalmente percorre e freqüenta bares e restaurantes, comendo e bebendo, com as honrarias que se devem a visitantes ilustres ou boêmios consagrados, demorando-se em Salvador por cerca de um mês.
Na véspera de voltar ao Recife, Glauber e os mais assíduos nas estripulias resolveram fazer uma despedida, convocando a imprensa para uma entrevista com o pernambucano. Em clima de festa, conversa regada a cerveja e acepipes já chegando ao fim, um jornalista pergunta ao poeta: “Ascenso, durante todos esses dias que por aqui passou, o que mais o impressionou e agradou na Bahia? Ascenso parou, franziu a testa, olhou sorridente e bonachão para o jovem e, lembrando talvez o que fazia naturalmente nas ruas, quando pouco sóbrio, disparou: “A liberdade de mijar”.  
Associei-me ao grupo e me engajei na saga de suas aventuras editoriais e artísticas, refletida numa vasta gama de ações, envolvendo literatura, teatro, cinema, artes plásticas e jornalismo. E logo começariam a surgir, em torrente, livros com o selo das Edições Macunaíma; projetos cinematográficos pela nascente Iemanjá Filmes; pinturas, esculturas e gravuras, em galerias de arte, que se montavam então; variadas peças levadas no espaço da jovem Escola de Teatro, dirigida pelo pernambucano Martim Gonçalves; logo também, uma revista, a Mapa, e o inesquecível SDN, o suplemento literário dominical editado pelo Diário de Notícias, de Assis Chateaubriand, rematavam um vertiginoso leque de aspirações inovadoras. Aos nomes citados, vale lembrar outros aderentes, como eu: Myriam Fraga, João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho, David Salles, Valdeloir Rego, além do então apenas dentista, depois professor e autoridade em antropologia cultural, Vivaldo da Costa Lima. Neste contexto, não se deve esquecer a singular, solidária e entusiástica presença de um antes experiente livreiro, Zitelmann de Oliva, ora à frente da empresa Artes Gráficas, então operando na Rua do Saldanha, cujo apoio permitiu não apenas a realização dos projetos editoriais do grupo, com o lançamento dos primeiros livros de poesia e ficção, como ainda a edição de álbuns de gravura e dos três únicos números da revista Mapa, entre 1957 e 1958.
Como então os tempos de franca liberdade se casavam com a vida boêmia, febris cogitações e intensos debates exigiam que a geografia da cordialidade se estendesse por diversos pontos, onde as tertúlias se tornariam habituais. Eram então os mais freqüentados: a Sorveteria Cubana, ainda hoje lá na parte alta do Elevador Lacerda; o Bar e Restaurante Cacique, na Praça Castro Alves, mas ainda à época chamada de Largo do Teatro; o Bar Anjo Azul e o Restaurante Porto do Moreira; o Bar Brasil e o Chez Bernard, novidade que se instalara no terraço inaugural do Edifício Themis, ambos na Praça da Sé; e, às vezes, o Colón, na Piedade. E, nos fins de noite, com tudo fechado, o romântico Zé do Esquife, um variado e iluminado tabuleiro de iguarias caseiras, que se abria à voracidade boêmia, a uns dez metros da estátua de Castro Alves, junto à balaustrada.
Desse hoje para muitos um urbano paraíso perdido, repositório de sensações e conquistas inauditas, todos teriam histórias prazerosas a contar, mas, de todos esses lugares, talvez seja o Porto do Moreira o que, pela qualificação e variedade da clientela, mais guarde a memória de casos dignos de registro. Fundado em 1938 pelo português José Moreira (o Sêo Moreira), e facultando a seus clientes um assíduo quanto vasto cardápio de pratos caseiros de inspiração lusa e baiana, tornou-se desde cedo uma casa de pasto cujas mesas reuniam diariamente a nata da inteligência e da burocracia, representada por escritores, poetas, artistas plásticos, professores, jornalistas, profissionais liberais, membros da magistratura, além de políticos, funcionários públicos e comerciários, que lhe davam cor local, como até hoje ocorre neste ameno quase octogenário recanto. Além da cordialidade e simpatia do dono, virtudes saudavelmente transferidas aos filhos, Antônio e Francisco, que, na condição de herdeiros, ainda hoje mantêm o famoso lugar como um ícone de prazeres gustativos na geografia da cidade.
Muito de histórias passadas lá permanece no imaginário dos remanescentes de uma fiel clientela. Evoquemos uma delas quase ao acaso, narrada por Carlos Coqueijo Costa, conceituado dublê de jurista do Trabalho, cronista, compositor musical e animador cultural. Com o restaurante funcionando já no atual endereço, no Largo do Mucambinho, mais conhecido como Largo das Flores, na Rua Carlos Gomes, entre os garçons do serviço, havia um mulato magro, calmo, atencioso e simpático, apelidado de Popó. Atendido por ele, certo dia, na hora do almoço, com preguiça de ler o cardápio escrito à mão, um freguês lhe pergunta: “Popó, que temos de bom hoje, aqui na casa, para comer?”. Solícito, lhe responde Popó, suavemente: “Tem galinha de molho pardo, galinha de ensopado, fígado acebolado, ensopado de carneiro, porco assado, salada de bacalhau, filé a cavalo, moqueca de miolo e moqueca de carne”. Fez uma pequena pausa e concluiu: “E, de sobremesa, goiabada com queijo e banana pessoalmente”. Coqueijo contou este curioso diálogo numa das crônicas que então escrevia, às segundas-feiras, no jornal “A Tarde”, cujo recorte ainda hoje, emoldurado, está afixado na parede do restaurante, à vista dos fregueses.
A noite era realmente criança e aconselhava outros pousos e outros desempenhos, que ninguém é de ferro, a começar pelas casas de mulherio, como o “Meia-três”, na Ladeira da Montanha, a casa de “China”, na Rua da Gameleira, a de “Maria da Vovó” e a de “Cymara”, ambas em transversais da Ladeira da Praça; gafieiras (Churrascaria Ide, Metrô, Rumba Dancing, Belvedere, Marajó); inaugurais boates (Carijó, XK Bar, Manhattan, Pigalle) e, para os mais abonados, o Cassino Tabaris, de cujas noites perdulárias restaram histórias memoráveis, não só as antigas de coronéis do cacau. E aqui nova urticária mental me induz a outro parêntese, para lembrar episódio tão cômico quanto surrealista, protagonizado por alguns de nossa turma numa dessas noites de boemia peralta. Em meados de outubro de 1958, um mês depois de fundado, o Jornal da Bahia fazia o primeiro pagamento dos que compunham a sua primeira equipe de Redação, e lá fomos receber no guichê da gerência o que nos cabia, como atores dessa façanha - eu, Paulo Gil Soares, Joca (João Carlos Teixeira Gomes) e Fernando Rocha (Bananeira), na reportagem geral, Calasans Neto, na programação visual, e Glauber Rocha, editor da seção de Polícia.
Pegamos o dinheiro curto no caixa e, à noite, com a aderência de mais alguns, alegres e felizes, marchamos todos para o Tabaris, onde na ocasião se apresentava um balé argentino, composto de dançarinas loiras e morenas, de corpo torneado e maiô, dançando o repertório musical da moda, bolero, mambo, rumba, conga e tango, ao som de uma afinada e buliçosa orquestra de sopro. Era comum nos intervalos, como parte da atração, elas, as bailarinas, virem às mesas, conversar, beber e até dançar com freqüentadores. Nesta para nós noite inaugural, mulheres na mesa, e bebendo, saímos alguns a dançar, inclusive com as moças do balé. É quando, por volta da meia-noite, Glauber, um protestante de devoção arredia, abstêmio total, subitamente inquieto mais que o normal, passa a censurar os protagonistas da cena e a protestar contra aqueles excessos. Cenho fechado, mais que de repente, sobe na mesa e, em pé, põe-se lá de cima a bradar, possesso: “Isto é um absurdo! Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!” E, em tom de execração bíblica, repete mais de uma vez a última frase -”Tirem daqui essas mulheres de Babilônia!”-, aturdindo as moças e companheiros em volta, para então, entre o sério e o farsante, atendendo aos clamores e ostentando no rosto um sorriso frajola, descer da mesa, sob estrondosa gargalhada.
Fora desses lugares que menciono e das cantinas de faculdade, davam-se ainda os encontros nas sessões dominicais do Clube de Cinema da Bahia, capitaneadas pelo misto de advogado trabalhista e crítico de cinema Walter da Silveira, em salas de espera dos cinemas, portas de livraria e “hall” de faculdades. A cidade tranqüila era assim intensa e ludicamente vivida, dia e noite, em transações que varavam as madrugadas. 
Volto ao começo, à história dos dois sonetos nascidos de uma remota tertúlia literária, no lusco-fusco de um bar, em anos de boemia e jornalismo romântico. Narro a excentricidade. Noite de primavera, dias depois do surgimento do Jornal da Bahia, na Rua Virgílio Damásio, nº 3, uma transversal da Rua Chile, numa das mesas de tampo de mármore do Bar Nogueira, então um dos mais concorridos da Rua da Ajuda, vizinho ao famoso Café das Meninas, amigos estão sentados, dois deles poetas e dois tarimbados jornalistas. Poetas, eu, um mero iniciante, na poesia e na imprensa, e Jair Gramacho, já um dos mais prestigiados membros da Geração Caderno da Bahia, na qual disputava píncaros com o poeta Wilson Rocha, ambos ícones locais do modernismo. Os dois jornalistas eram Ariovaldo Matos, romancista e autor de Corta Braço, ficção pioneira inspirada numa invasão de terras ocorrida no bairro da Liberdade, e o contista e cronista Flávio Costa, este subsecretário de Redação, que acabara de lançar Além das torres do Kremlin, relatos de viagem a Moscou, aquele experiente Chefe de Reportagem do novo jornal, que antes exercera com afã militante o mesmo cargo em O Momento, aguerrido jornal que funcionou na Ladeira de São Bento (1945-1957), pertencente ao Partido Comunista do Brasil, o Partidão, fundado e mantido por Aristeu Nogueira e João Falcão, este depois fundador do próprio Jornal da Bahia.
Falava-se de literatura e política, como sempre, quando de repente, coisa de boêmios, surge um desafio, para saber-se quem dos dois poetas ali melhor escreveria um soneto. Não lembro o autor do repentino alvitre, tampouco o grau do efeito etílico, que, indulgente, o Ângelus da Igreja da Ajuda ali perto acalentava. Surpresos, os dois poetas se entreolharam, mediram o tamanho do repto, mas, feito o ajuste, bebericaram um pouco mais e se foram. Dois dias após, tal como combinado, voltamos os quatro ao mesmo bar, cada um dos poetas empunhando a sua Excalibur verbal: eu, com o soneto intitulado "A cabra", de cândida inspiração rural, composto no clássico formato petrarquiano, com os catorze versos dispostos em dois quartetos e dois tercetos; ele, Jair Gramacho, com suntuosa joia lavrada no modelo shakespereano, de três quartetos integrados e um dístico, amplo de alusões panteístas e referências mitológicas, invocando lenda campestre em torno de Meleagro, herói de Calidônia; mas, tanto um quanto o outro, construídos em decassílabos de rimas emparelhadas ou entrelaçadas.
Cumprindo o ritual e com a devida entonação, cada autor leu o seu soneto. Na postura de juízes, depois de ouvi-los e cotejá-los, em silêncio, os dois jornalistas concluíram sorridentes que os dois poemas mereciam publicação mais ampla, na edição dominical do Jornal da Bahia. Dito e feito. Dias depois, com verniz gráfico de prestígio, ambos os sonetos ocupavam as duas colunas ao lado direito da página literária, editada sob a batuta do historiador e cronista Luís Henrique Dias Tavares, mas sem uma linha sequer alusiva ao embate travado no bar da Ajuda. Publicados, cada soneto seria alvo de corporativista acolhida: o meu, com recitação e elogios da presunçosa grei a que eu pertencia, enquanto o de Jair bem mais efusivamente louvado não apenas por nomes consagrados de sua geração.
Em 1960, os dois poemas seriam ainda publicados na revista Ângulos (Nº 16), então comandada por Noênio Spínola (diretor) e Antônio Guerra Lima (Guerrinha), de redator-chefe, com João Ubaldo Ribeiro diretor de Cultura do CARB, mas cada uma das criações poéticas doravante com sorte diversa: “A cabra” iria compor o conjunto do meu primeiro livro, Reverdor (Edições Macunaíma, 1965), enquanto o primoroso soneto de Jair Gramacho, ao que sei, permanece até hoje inédito em livro. São eles que agora abaixo reproduzo, vindo em primeiro lugar, por direito inalienável, o do meu saudoso e insigne êmulo.
SONETO OITAVO DE ATALANTA EM CALIDÔNIA
                                                             Jair Gramacho
Nesta tarde o terreiro está vazio.
Distante o laranjal se estende; a manga,
a serra, o azul depois; tênue miçanga
de açafrão tinge as fímbrias, o do estio
único resto. Esta tristeza é mais
que a da paisagem pobre e adormecente;
talvez por não ter rosas, não ter gente,
e a solidão vagueie pelos currais.
Mas, certo é que nesta hora, ressurrecto,
o mito abandonado busca o luxo
antigo de existir; dispõe espectros
que em volta cirandeiam do repuxo...
  Ah! Mais que basta para o instante magro
  galinhas ver – irmãs de Meleagro!
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A CABRA
              Florisvaldo Mattos
Talvez um lírio. Máquina de alvura
sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.
Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra: o capim ao sonho preferindo.
Sulca-me perdurando nos ouvidos,
laborado em marfim – luz e presença
de reinos pastoris antes servidos –
teu pelo, residência da ternura,
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.

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