ao amigo Dilmo Costa, fã inexorabilíssimo...
Ninguém é obrigado a inventar a pólvora ou descobrir a teoria dos quanta. De outro lado, porém, é obrigatório ter uma inteligência elementar. Mais ainda para um cristão, que deve estar sempre atento às tentações. E a tolice é uma tentação. Mas não apenas para o Cristão – também isso é por causa de uma verificação experimental objetiva: ninguém sabe nada, mas todo mundo sabe tudo.
N. STEINHARDT
Três semanas se passaram desde a estreia de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge (The Dark Knight Rises, EUA, 2012), filme que traz uma síntese perfeita entre um cinema de entretenimento, arte e de foro de discussão, quebrando uma lógica muito utilizada, nos últimos tempos, pelo cinema de espetáculo americano: a da grandeza de recursos inversamente proporcional à pequenez de inteligência; por isso mesmo, já se passou tempo mais do que suficiente para falar dele; e digo mais: faz-se muitíssimo necessário falar sobre ele.
Neste último filme da trilogia do Homem Morcego, Bruce Wayne, novamente vivido (e muito bem vivido) por Christian Bale, está acabado, vive recluso e cheio de amarguras em sua mansão, que faz a caverna de São Paulo, o eremita, parecer um hotel de luxo. O Batman também não é mais necessário, as ruas de Gotham City estão limpas, graças a uma lei de exceção que permite que as autoridades coloquem bandidos no xadrez sem fiança ou julgamento; além do mais, seu álter ego, é tido como um justiceiro vil, um assassino cruel e covarde. Mas toda essa paz ilude e a tensão e o medo de que todo aquele terror um dia volte ou que toda aquela violência estoure novamente de uma forma caótica e grandiosa é facilmente visível no rosto de cada cidadão, de cada personagem. E é neste clima de Guerra Fria que Wayne, em seu estado quase vegetativo, representa – como é papel de todo herói – seu povo e seu lar: ele é um símbolo de poder e conquista, principalmente aos mais distantes da realidade e da verdade, ao mesmo tempo que, para ele, personifica o medo e a angústia, àqueles que realmente sabem como as coisas se dão e se apresentam. Para piorar, Batman é bode expiatório de uma mentira que sustenta toda aquela paz de conto-de-fadas, verdadeiro símbolo de um mimetismo que faria o grande filósofo René Girard gritar: Eureca!
E quem se aproveitará desta ausência e desta falsa sensação de segurança? Justamente aquele que, se não se tonará o mais cruel e emblemático antagonista do Homem Morcego, porque este papel já cabe ao Coringa e, por meritocracia, a Heath Ledger, apresentar-se-á como a síntese perfeita entre a força bruta e a inteligência a serviço de um mal que, acima de tudo, procura profundas razões para sê-lo: Bane.
Interpretado pelo ator Tom Hardy, Bane é uma das figuras mais perturbadoras que já preencheram as telas de toda a história do cinema. Isso se dá não só pelo seu tamanho descomunal e aspecto monstruoso, graças à máscara, que, com a função de liberar um gás anestésico, sem o qual não suportaria as dores provocadas por terríveis ferimentos de que foi vítima no passado, cobre-lhe quase inteiro o rosto, mas do facto de ele ser um homem cruel e um líder messiânico carismático, capaz de inspirar vocação e assassínio com a mesma medida e converter tudo isso em uma lógica sem igual com o único intuito de dar razão aos seus planos de domínio. A sequência de ação que abre o filme é um bom exemplo disso: Bane embarca em um avião, disfarçado de prisioneiro comum, com o intuito de sequestrar um físico nuclear, ao mesmo tempo, membros de sua gangue de terroristas saltam de um C-130 Hercules num mirabolante salto de rapel (cena totalmente rodada com dublês e sem efeitos digitais), e, ao necessitar de que alguém deste grupo seja encontrado nos destroços, Bane passa a missão de se sacrificar a um de seus prosélitos que, ao invés de se negar, ou pelo menos se dar à compreensível atitude de praguejar, aceita-a com o orgulho e a devoção semelhante a dos cristãos dos tempos de Nero, que se resignavam com amor e coragem à bocarra dos leões a que eram “presenteados”. Bane, assim, alude ao mundo insano e sem propósito criado após 11 de Setembro, ao qual a lei de exceção de Gotham, e sua caça ao terror, também personifica.
Uma das maiores sacadas que Christopher Nolan conseguiu com sua trilogia foi o aspecto de maturidade que seu protagonista vai ganhando com o tempo. Se, no primeiro filme, Batman, ou melhor, Bruce Wayne, colecionara inúmeras broncas e conselhos de quase todos que estão ao seu redor, no segundo filme ele já está grandinho o suficiente para saber o quanto necessita aperfeiçoar técnicas e equipamentos, bem como reconhecer o quanto que um grande poder traz responsabilidades maiores ainda (Opa! Filme errado), para, finalmente, neste terceiro, reconhecer o valor do sacrifício em nome da paz e do bem comum. Nolan resgata este aspecto dos antigos heróis das tragédias gregas, que, para cada perigo que enfrentam, aprendem e crescem com eles e, desta maneira, poder cuspir na cara do Destino ao qual são submetidos. Do outro lado, seus inimigos também parecem se adequar a esta maturação: seu mentor Ra’s AL Ghul, não pode ser considerado necessariamente um vilão, pois não há como não concordar com muitos de seus preceitos, dentre os quais o de que bandido bom é bandido mortinho. Já o Coringa, não; nele, e em sua anarquia sem razões ou propósitos, encontra-se uma verdadeira prosopopeia niilista sem precedentes, onde um mal tão grande quanto visceral encontra sua face mais encantadora, bem como mil e uma razões para dissipar tamanha maldade. Todavia, é com Bane que o mal se apresenta em seu aspecto mais bruto e devastador, principalmente por todo o engano que consegue causar. Mesmo quando descobrimos, um pouco mais tarde, que o terrorista mascarado não passa de um capacho de um mal ainda maior – mal que ele mesmo representa e adora das mais diferentes e profundas formas –, Bane não se torna menor nem menos assustador, mesmo quando, com um closer e una furtiva lagrima, faça cair todo esse monstro, ele ainda é um cão, mas não aquele cão louco correndo atrás de uma roda sem ao menos saber o que fazer com ela caso a conseguisse, como metaforizou, a si mesmo, o Coringa, mas um cão raivoso e treinado que, mesmo sob o domínio de uma coleira, estará sempre pronto a atacar quem se lhe atrever cruzar caminho.
Isso nos remete a outro aspecto brilhante do roteiro e da direção de Nolan, em toda a sua trilogia: abordar sempre, e de forma contundente, o estado ético e moral de nosso mundo; e é em O Cavaleiro das Trevas Ressurge que este escopo é ampliado ao máximo. Em Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge, Gotham não vive só a mentira de uma ordem alicerçada sobre falsos e frágeis pretexto, Gotham City também se vê no meio de um caos econômico e de uma mau e injusta distribuição de renda, onde mais de 90% da população vive na pobreza, enquanto os outros menos de 10% gozam da mais absoluta riqueza, e é justamente aí que impera o sólido instinto moral de Nolan e a ácida ironia que ele cria a partir deste fato tão bem recolhido da atual realidade americana e europeia: apresentando-se como um líder, e um libertador do povo, Bane, à maneira de um Robespierre bombado, ou um Che Guevara tarado por anabolizantes, promete devolver – “ao povo” – o poder que lhe é de direito das mãos dos ditos usurpadores das minorias, dos quais Wayne é o principal emblema, e, como no Reino de Terror instituído pelas Revoluções Francesa e Russa, passa a usar de um totalitarismo sem igual, desculpado pelas suas supostas boas intenções, entre as quais a redistribuição rentaria que Lenin tanto queria... e à sua maneira.
Entretanto, tudo não passa de uma apropriação sem a menor legitimidade, e, assim como na China de Mao ou na ilha da fantasia dos Castro, Bane se aproveita das aflições genuínas do povo para usá-las ao seu favor, a partir da promessa de expurgação destas mesmas aflições, acabando por manobrar toda a massa com a falsa promessa de libertação. Qual acontece a todos esses casos, Bane começa por abolir todos os tipos de liberdades individuais até o extremo da lobotomia ideológica, instalando, assim, uma política de lunáticos e ressentidos a culparem os mais aptos, e os bem sucedidos, pelos seus fracassos.
Cenas assim, certamente, mexerão com os brios dos mais diferentes membros das mais diversas camadas ideológicas que a esquerda socialista costuma produzir, desde os políticos do mais alto escalão de seus partidos, até os neófitos do esquerdismo radical e bestializado que, a exemplo do que acontece pelos cantos mais obscuros de nossas universidades, proliferam-se nas incubadoras politico-ideológicas dos DCAs e DCEs espalhadas por aquelas que deveriam ser as nossas instituições mais idôneas a salvaguardar o livre pensamento de nossa Nação. E essa sensação de ofensa terá uma boa razão de existir, porque o filme de Nolan retrata, com profundo sarcasmo e realismo, os verdadeiros planos e vontades que se escondem por baixo de toda máscara de bom moço que os ideais revolucionários e socialistas gostam de exibir. E é bom – sempre bom – que, através da história, grandes e inteligentes artistas façam vir à tona toda a verdade por trás do espírito revolucionário, para que, depois, ninguém venha a ouvir frases do tipo: “Eu não sei de nada”! Mas como não saber...? Eis o princípio do dilema: como não saber...?! Como não ter consciência daquilo que eles mesmos provocaram ao longo da história pra que seus ideais absurdos se cumprissem? Não saber de nada é a resposta mais comum daqueles que um dia torturaram e jogaram outros em prisões e acusaram aos seus sem que nenhuma verdade fosse comprovada. Mas se ninguém é obrigado a saber, todos nos obrigamos a uma inteligência mínima, e, como conhecedor dos princípios cristãos mais elementares e das mais sólidas bases morais que sustentam nossa sociedade, Christopher Nolan sabe que é preciso atentar-se para as tentações ou porque, como dissera Nicolae Steinhardt, a tolice é uma tentação e tanto.
Mas, voltemos ao Batman: para Bane, não obstante, tal estado de coisas, ao contrário do que acontece até hoje em Cuba, não deve durar para sempre – porque o passo seguinte é a mais pura aniquilação da cidade e de seu povo. Neste caso em particular, Bane assume uma postura demoníaca, no sentido mais literal da palavra, pois leva tanto as pessoas comuns quanto os seus adoradores a um fim sem esperança ou recomeço, mostrando um desprezo total por tudo e por todos, onde a única coisa certa e verdadeira que se pode e deve existir é a força de seus falsos ideias e crenças pessoais, ao ponto de se permitir o assassinato em massa para que tais princípios se cumpram, como fizeram os nazistas, os fascistas e, até hoje, o querem os propagadores das ideias comunistas.
É contra esse cheguevarismo sem máscaras que, ironicamente, um mascarado tenta implantar, que Bruce Wayne precisa sair de sua letargia e vestir, novamente, mesmo que contra tudo e contra todos – a começar por ele mesmo, diga-se –, as roupas e os símbolos que Batman representa. Mas este Batman, necessariamente, é um Batman diferente, ele é um herói no auge e, ao mesmo tempo, no fim de suas forças e propósitos, um herói que se cansou de lutar, que precisa fazer seu último sacrifício para finalmente se reinventar, literalmente ressurgir para uma nova vida e realidade, e Nolan, como um bom inglês americanizado que é, não sustenta seu herói na leitura d’O Capital ou dos livros do Frei Betto, como faria a maioria de nossos cineastas, por exemplo, mas sim na Bíblia e na mitologia clássica greco-romana, verdadeiros mitos fundadores de toda cultura ocidental, ressuscitando um tipo de heroísmo há muito esquecido ou mal interpretado, onde o bem, mesmo que triunfante, vê-se sempre em dualidade, em profunda hesitação e conflito diante de um mal cada vez mais focado e racional, dotado de tantos rostos e mazelas que nos parece quase impossível identificá-lo. O que se vê, ao longo das quase três horas de filme, tanto do lado dos mocinhos quanto dos bandidos, é um festival de tragédias íntimas, onde cada um, pela necessidade humana de uma escolha, exorciza (cada um à sua maneira) seus mais diversos e profundos demônios.
Se o primeiro Batman nos vêm quase que como um apólogo moral e o segundo como uma profunda e inesperada tragédia, Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge, apresenta-se-nos como um épico de grandeza estonteante, não só pela qualidade técnica do filme – um verdadeiro non plus ultra do gênero –, mas pelas muitas discussões que suscita a partir de um aprofundamento que poucos filmes, independentemente do tipo, conseguiram, nos últimos tempos, dar às angústias de uma coletividade, como a do pós-11 de Setembro, seus homens-bombas, seu terrorismo desenfreado, ou da crise econômica de 2008, bem como os conflitos mais particulares de seus protagonistas, como se vê na oposição dicotômica de Bruce Wayne/Batman a expurgar-se na também dicotômica figura de uma Selina/Mulher Gato. Daí, também é importante dizer: que Mulher Gato é Anne Hathaway..!
Neste exato momento, em meio a todos esses conflitos internos e externos, recordamo-nos, lá, na Ilíada, do Escudo de Aquiles; daí, perguntamo-nos: por que um herói, acostumado à dor e à abnegação carregaria tantos símbolos cotidianos, tantas cenas que nos remetem ao lar, à família e à felicidade particular? Porque, bem lá no fundo, tudo que queremos (heróis ou não), é a nossa humanidade em seu sentido mais pleno, é a busca incessante da felicidade, e, mais do que isso, é alcançarmos esta felicidade. Por fim, é dessa forma, talvez, que devamos encarar todas as tragédias, reais ou imaginárias, todos os heróis ou os mais simples mortais: como condenados à liberdade e à felicidade, por que é isso que todos os heróis gregos queriam e é para isso que o Cristianismo nos impele, e Christopher Nolan, que não fez escola, aqui, com os cineastas esquerdistas do Brasil, utiliza-se tanto da tragédia grega quanto do Cristianismo, para nos arrebatar em seu Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge, em uma celebração à liberdade, à felicidade e ao renascimento que, no fim, trar-nos-á tudo isso.
Candeias, 20 de agosto de 2012.
4 comentários:
Caríssimo Silvério: como o comentário ficou longo, vou dividi-lo em duas seções.
I
A arte é isso aí, e existe para que dela gostemos ou não. Do filme em questão só posso dizer que não gostei, até porque, comparado aos outros que Nolan realizou com essa mesma personagem, é certamente o pior dos três. O melhor seria, talvez, na minha opinião, o segundo, que traz a figura do Coringa tão interessantemente interpretada por Heath Ledger – mistura de insanidade, surrealismo, inconsequência extrema (sob a espécie de uma guerra de princípios dos quais o Coringa, por mais insano, se torna de algum modo o porta-voz, queira ele ou não) e violência desenfreada, que não se detém diante de nada porque é “existencial”, justificada só por si mesma e pelo fato de estar lá. Mas com a arte também acontece um fenômeno curioso: depois que ela é vista, ela se cala e se converte num objeto, ficando sujeita às interpretações, a partir das quais começa a “falar” novamente (se é que falou da primeira vez), não raro (talvez na maioria das ocasiões) de maneira involuntária, dizendo aquilo que seu criador não quis dizer ou em que sequer pensou. Então, o que resta? Resta interpretar.
Não vou comentar nem discutir a sua interpretação, porque é de cunho e foro pessoal, mas gostaria de propor uma opinião e salientar um aspecto desses filmes. Como se sabe, a série do “Batman” de Nolan é visivelmente (ou declaradamente, a começar pelo próprio título) baseada numa série de histórias em quadrinhos escrita e desenhada por Frank Miller, que se publicou na segunda metade dos anos 80, sob o título de “Batman – O cavaleiro das trevas” (Batman: The Dark Knight Returns, de 1986 – que pode ser lido também como “Batman: o cavaleiro negro retorna” ou, pronunciado em voz alta, “Batman: a noite escura retorna”, se quisermos levar a coisa aos seus limites). O enredo conta o modo como Bruce Wayne, tendo aposentado o seu justiceiro mascarado depois da morte de seu segundo pupilo Robin, retorna, aos 55 anos, já meio “enferrujado”, mas nem por isso menos feroz e autodeterminado, a encarnar o antigo super-herói.
Tenho ouvido muitas vezes – de conhecidos e amigos – dizer que se trata de uma narrativa de orientação duvidosa, até fascista, por assim dizer, a considerar algumas situações que nela comparecem. Segundo essa posição, o fundo da história se apoiaria no conceito de que a melhor justiça é, sempre, aquela que se faz com as próprias mãos, sem deixar às invariavelmente “lentas” e “ineficazes” mãos do estado a prerrogativa de coibir e, quando necessário, punir a criminalidade na exata proporção do seu merecimento. (No direito moderno – ensinou-me uma vez um amigo advogado – a punição só tem sentido na medida em que visa à coibição da delinquência, e não deve se orientar por intuito de vingança ou, como o quer a mentalidade popular, de cobrar o eterno “olho por olho, dente por dente”, exigido pela antiga lei de talião, que se aboliu contemporaneamente.) Esse argumento se comprova, por exemplo, com as cenas finais da história, nas quais Wayne, depois de ter travado uma luta mortal com o Coringa, o Duas-Caras e uma gangue de delinquentes juvenis, atrai esses mesmos delinquentes para o seu “lado” (o lado da lei?), dando a entender, nos últimos quadrinhos da história, que começará a treiná-los como um exército particular de milicianos.
Por certo, Christopher Nolan não parece ter gostado desse final, que não inclui em nenhum de seus filmes, e evidentemente prefere – como já sugeriu alguém – que a história, competentemente narrada e sem perder a chance de atualizar nenhum dos clichês da narrativa cinematográfica de “ação”, reflita as eternas aspirações do homem comum a um eviterno combate contra violência que se dará do modo mais simples e direto (isto é, pondo-se a mão na massa) – modo esse, no caso, encarnado pelas ações e figura de um milionário que, além da enorme riqueza e dos recursos materiais (tecnológicos e tudo o mais), (...)
II
(...) dispõe também de inteligência e talento para realizar esses intuitos, convertendo-se numa espécie de mito popular (o super-herói em questão). O único inconveniente é que tudo isso só é possível no plano dos efeitos especiais (a cada dia mais realistas, propiciados pelo enorme desenvolvimento do emprego da computação gráfica no cinema dos últimos anos), sendo a vida real bem mais complicada, como sempre, do que a encenação pode sugerir.
Mas não é disto que quero falar. Quero comentar o seguinte: discordo, particularmente, da interpretação dos quadrinhos de Miller como sendo uma apologia pura e simples (fascista, portanto) da “justiça com as próprias mãos” – mesmo que ela esteja lá insinuada –, pelo simples fato de que há ambiguidades demais no negócio todo, a começar pelo título da história e sem desconsiderar o final (que tanto pode ser uma apologia quanto uma crítica de caráter irônico), mas passando, sobretudo, pela observação de que, ao longo da narrativa – aspecto que os filmes de Nolan incorporam (talvez com certo desconforto, mas que fazer, se a coisa renderá dinheiro?) –, Miller dá a entender que muitos dos vilões contra os quais Batman combateu ao longo da sua trajetória só existiram como tais (isto é, como vilões) porque Batman existiu. Quanto a isto – para mostrar esse aspecto –, uma cena memorável é aquela em que o Coringa, depois de passar anos num sanatório para doentes mentais, vivendo em estado quase catatônico, abre um imenso sorriso quando ouve pela primeira vez a notícia de que Batman retornou à ativa. Que interpretação dar a esse pormenor (que me parece tão significativo e revelador acerca da ironia com que o quadrinista, brilhante ou cegamente - cada um decida por si próprio -, capta e comenta a dinâmica da violência nas sociedades contemporâneas)?
A lição a tirar é muito simples: se os vilões existem, é porque Batman existe, e se a violência está lá é porque a lógica “existencial” da violência é falsa e tem de ser posta em questão. (Na história original do herói, criada em 1939 por Bob Kane, a “invenção” do Batman se deu numa bela noite, quando o milionário Wayne, depois de viver muitos anos amargurado com o assassinato de seus pais cometido por um assaltante de ruas, resolve dar corpo – no caso, o próprio corpo - à figura de um justiceiro que seria símbolo dessa resistência, ou desejo de resistência, do homem comum diante da massificação cada vez maior da violência no mundo em que vive e da qual se torna, a cada dia mais, um refém apático e o seu tanto inerme.) E, se a violência existe, ela pode ter as mais diversas causas (leitores de Girard que me socorram!); mas uma delas está, sem dúvida, no fato de que existe não só uma lógica da violência, mas também uma mecânica do ser violento, e existe uma mentalidade social que a legitima e que, entre outras coisas, legitima também o emprego cada vez mais intenso, nas diversas instâncias sociais, da própria violência para combatê-la, criando-se exércitos, aparelhando-se polícias, construindo-se cadeias e penitenciárias e, sobretudo, desenvolvendo armas e movimentando uma indústria bélica de proporções planetárias, bilionária ela mesma (tal como a indústria dos fármacos se desenvolve e se aprimora à medida que as doenças surgem a todo instante e se alastram entre as populações), que só tem a ganhar com tudo isso.
Então, no final, em que ficamos? Seria Batman esse símbolo, esse “cavaleiro” que se louva aqui e que surge da escuridão para encarnar os desejos de justiça do homem comum, eternamente assediado pelos avatares do mal ou, mais bem dito, pelas forças do caos, ou seria apenas, como na canção de Bob Dylan, “mais um peão no jogo deles”? É o que tenho a me perguntar, lendo o seu texto e, claro, respeitando o seu direito de interpretar como bem queira um filme que não está aí para dizer a que veio, até porque não é da natureza das obras de arte (se se tratar de uma), na condição de objetos inanimados, tomar essas iniciativas.
Abraços sempre.
Amigo Suttana,
É para recebermos comentários assim, mesmo que antagonizando muito do que dizemos (mas nisso está o lado bom da discussão), tão cheios de dialética e de uma verdadeira vontade de discutir, pura e simplesmente, no campo do filosófico, que qualquer um tem o prazer de escrever...
Receba meu abraço e meu respeito sempre...
Este humilde falastrão,
Silvério Duque
Perfeito, Silvério. Quando se trata de arte, sempre acho que, mesmo com opiniões antagônicas (e às vezes nem tão antagônicas assim), os dois lados têm razão, pois se complementam de algum modo. Ou, melhor, que o mais prudente é olhar a partir dos dois ângulos, pois a dupla perspectiva (ou as múltiplas perspectivas) é que nos torna mais sábios. Isto já ensinava Nietzsche. Abraços.
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