sexta-feira, 5 de agosto de 2011

SOSÍGENES COSTA E AS MUITAS CORES DO AGORA ...



Juno Receber a cabeça de Argos, de Jacopo Amigoni , 1730-173, Óleo sobre tela, 108 x 72 cm

Moor Park, Rickmansworth, Hertfordshire.

 
 
 
 
 
aos amigos

Paulo Cruz, Karleno Márcio Bocarro,
Elpídio Mário Dantas Fonseca – incitando-os

a conhecer a poesia deste bardo belmontino-ilheense –;

para Gustavo Felicíssimo, Henrique Wagner

e Bernardo Linhares, pelo seu 51º aniversário.

...de verdes sauces hay uma espessura

toda hiedra revestida y plena...

GARCILASO











Todo grande artista almejou, um dia, a perfeição formal. E os pequenos também... E não há como negar que tal busca consiste numa das características mais essenciais de toda a história da literatura e das artes.

Do ponto de vista literário, tal objetivo torna-se muito mais profundo, além de, muitas vezes, constituir um problema mesmo em relação ao gênero, pelo facto de seu elemento primordial – a palavra – não ser de exclusividade dos romancistas, teatrólogos e, principalmente, dos poetas, como nos vem a parecer... de certa forma. Para resolver este problema, fez-se necessário uma inevitável distinção entre o falante comum da língua e os poetas, por exemplo, sendo que estes últimos, inúmeras vezes, preferiram cobrir-se com os mantos do apuro e do rigor expressivos. Este mal necessário, no entanto, não exige do poeta uma falsidade diante da língua, muito menos do leitor, em geral, como se tem feito ao longo de séculos, e, no caso brasileiro, principalmente, na transição dos séculos XIX e XX, por meio da incansável busca pela linguagem acurada e essencialmente erudita, que acabou se tornando motivo de afastamento do leitor comum, limitando, muitas vezes, a um pequeno grupo de quase filólogos, seu entendimento e apreciação.

O Modernismo – e, quando me refiro a Modernismo, procuro entendê-lo como um quadro geral que vai daqueles que nasceram sobre o entardecer de um decadentismo pós-romântico criando-se sobre o alvorecer enegrecido do realismo científico, como Euclides da Cunha e Augusto dos Anjos, ao cabedal simbólico de um Mário Quintana, de um Ariano Suassuna, e, evidentemente, de um João Cabral de Melo Neto – parece-me tentar, à sua maneira, resolver tamanha questão, entendendo e se fazendo entender que a linguagem é, obviamente, o instrumento pelo qual chegamos à literatura – bem como a toda arte – distinguindo-se do uso comum através de sua utilização diversa, que, por sua vez, centra-se em seu conteúdo, fazendo da linguagem um simples caminho para se chegar à arte literária, tirando dela, ao meu ver, a qualidade de “casa do ser”, que deve pertencer à apreensão estética e à perplexidade diante do mundo e das coisas que sempre traremos conosco e que nos encaminha à inquirição filosófica e à criação artística – ao contrário do que pensava Heidegger ao inverter, erroneamente, o pensamento platônico, o que, aliás, é de se estranhar, pois a estética, diga-se de passagem, é um tema muito estudado pelo grande filósofo alemão. O que sei é que graças aos muitos admiradores de seu pessimismo existencial tão desnecessário, os mesmos que não conseguiram ver que muito de sua dita análise ontofenomenológica nada mais é do que uma série de erros interpretativos, muitas vezes propositais, acobertados por um apuro de erudição lingüística que, parece-me, ter sido motivado e, conseqüentemente, influenciado, também, em muito, o mandarinato das questões estéticas e filosóficas entre os anos 20 e 50 do século XX, fazendo com que Heidegger se apropriasse indevidamente do título de maior filósofo do século passado o qual, sem dúvidas – pelo menos para mim – deveria ser de Husserl ou de Constantin Noica... mas, é claro, eu posso estar errado.


A linguagem – ninguém se esqueça disso – é, também, forma e, como forma, deve trabalhar em favor da idéia – do conteúdo – e não ao contrário. Assim sendo, a apreensão cotidiana, tão aproveitada pelos modernos, seja em sua linguagem mais próxima do coloquial, em seus versos mais despojados, ou na temática, aparentemente, mais despropositada, não constitui a essência da poesia moderna, mas a forma pela qual chegaremos a ela. Entre clássicos e modernos, a maneira como se encara ou se valoriza a linguagem os diferem, sem que um se torne clássico por isso, nem moderno por se negar ou se diferenciar da maneira de ver do outro. Estas questões, por sua vez, levam-me a refletir, obviamente, sobre o papel do Parnasianismo e do Simbolismo, em nossas Letras; ao tempo que me fazem recordar da poesia de bardo baiano – poeta de Belmonte, no Sul da Bahia: Sosígenes Costa.


















I



Na poesia de Sosígenes, os dilemas formais do Parnasianismo, e as questões lingüísticas do Simbolismo, parecem se resolver através de sua escolha por um caminho aparentemente “simplório” no traçar de sua pena. Todavia, será, justamente, nesta “simplicidade”, que residirá um dos maiores problemas de toda a história da literatura. Este caminho foi o de trilhar pelos campos imprevisíveis da dimensão sensorial – o qual, para o leitor pouco preparado, ligá-lo-ía ao esteticismo simbolista –, conduzido pelo primor lingüístico – algo que, aos olhos de um leitor desavisado, pareceria fruto da poética e dos modelos parnasianos – e produzindo uma obra de raríssima beleza estética, por meio de um processo criativo onde o sensorial e o imagético fundir-se-ão numa das mais originais composições poéticas que a aurora do século passado nos proporcionou – algo que parecerá, a qualquer leitor, uma das maiores criações literárias de nosso Modernismo, bem como de toda a nossa literatura –, negando-se à artificialidade, ao apuro aparente e à afetação verbal, fazendo com que seus versos sejam lidos como poesia pura, desassociando-os, assim, de quaisquer idéias paralelas e, ao mesmo tempo, aproveitadoras e destruidoras dos grandes gênios, ao passo que se consolidam – e consolidarão, também, ao seu autor – entre os grandes exemplos do soneto moderno, que, aliás, não se encontram em Vinicius de Moraes, Mário Quintana e – Deus me livre e me guarde! – Glauco Matoso, mas, sim, em Carlos Pena Filho, em Emílio Moura e, evidentemente, em Jorge de Lima.

O grande problema dos parnasianos, bem como o dos simbolistas – mas não um problema de Sosígenes Costa – sempre me pareceu uma certa incapacidade, por eles mesmos criada, de um homem comum, cujo apuro lingüístico é-lhe uma barreira intransponível – mas este homem comum tem igual direito de apreciar a beleza que a poesia tem a oferecer a todos aqueles ávidos de saber e prazer –, de não comungar de seus virtuosismos estéticos, por, aparentemente, não lhe dizer respeito algum; terrível engano, pois o prazer que nos proporciona os melhores poemas estaria no reconhecimento de que, tanto o poeta quanto o escritor, partilham de igual natureza e é isso, estou certo, que cria em nós aquela supressão temporal que faz com que leiamos Safo com a mesma graça moderna com que lemos Hilda Hilst ou mesmo Adélia Prado.  
 
A beleza não pode ser alheia a nenhum homem, muito menos se criar abismos, propositadamente, para que tamanho mal se faça, porque a beleza é a essência, também, da condição de homem, de ser consciente e inteligente, não se levando ao pé da letra, por exemplo, concepções como a dos versos de Baudelaire: Ô Beauté! monstre énorme, effrayant, ingénu! Si ton oeil, ton souris, ton pied, m'ouvrent la porte d'un Infini que j'aime et n'ai jamais connu?... diga-se, um dos grandes alicerces à poesia de Sosígenes Costa.
 
Na indiscutível e indissolúvel união “entre a idéia e a forma que a exprime, bem como da coisa e do símbolo que a apresenta”, como dirá Olívio Montenegro, em O Romance Brasileiro, reside o segredo e a vida de todas as criações artísticas. Toda idéia deve fazer-se entender por meio de palavras minuciosamente antecipadas. Mas nossos parnasianos e simbolistas pareciam desconhecer, em grande parte, tais vias de regras; e o rigor formal e a impessoalidade, que se quis como marcas destes movimentos literários entre nós, não se ligavam à nossa tradição demasiadamente romântica e ainda muito influenciada pelo lirismo lusitano, a não ser pela fortíssima influência que a “cultura afrancesada” exerceu em quase todos os campos de nossa antiga sociedade – que o diga a nossa Belle Époque –, que consistia muito mais numa prova de nossa domesticação a uma idéia de cultura e sofisticação que em quase nada nos dizia respeito, igualmente à própria cultura francesa, já que as prioridades que deveriam se cumprir, em nosso Parnasianismo – bem como em nosso Simbolismo –, também não diziam respeito, por assim dizer, às suas raízes originais. Além do mais, nossos parnasianos e simbolistas não se desvincularam de uma herança que os poupariam dos excessos exigidos pelos modelos europeus, ao tempo que esta mesma herança acabou por gerar os melhores versos de Bilac, bem como os de Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraens. 
 
À medida que, em nossas Letras, a escola parnasiana amplia o seu campo de ação, principalmente com o máximo de negação de seus modelos europeus, a exemplo, também, dos simbolistas, acentuam-se traços romantizados (por assim dizer) que, ao invés de lhes render uma falsidade ou uma caricatura dos moldes franceses, acabam por lhes dar certa peculiaridade estética e lingüística. Não obstante, os poetas tendem a se apegarem demasiadamente ao rigor formal, principalmente os parnasianos, que vêem no formalismo uma espécie de elitismo que nos distanciará do grande público ao invés de constituir um meio pelo qual suas idéias deveriam se propagar. Desta maneira, muito mais pela forma que pelas idéias, as quais a forma deveria servir, o Parnasianismo constitui-se em um de nossos mais inexoráveis exemplos de fuga da realidade e, muitas vezes, de bom senso. Tal despautério era mais uma pequena parte do imenso mundo idealizado e passadista que ainda se constituía em nossa sociedade em fins do século retrasado. Este erro literário só seria corrigido pelos poetas e romancistas de 1930. Até lá, uma “ditadura” do formalismo constituir-se-ia em um padrão e numa praga em nosso meio literário e intelectual.
 
Com o Simbolismo a coisa não é menos problemática, pois o movimento, tão importante à literatura européia, de onde tantos nomes da literatura moderna provieram ou demonstraram profunda paixão e cumplicidade, sempre foi visto por muitos de nós – ou pelo menos os de sua época – como algo estranho e até mesmo exótico, principalmente a uma literatura que, não tardaria, formularia seus primeiros passos à apreensão se uma realidade nacional, muito mais exótica do que as flechas e o cocar de Peri ou a cútis branquelona da escrava Isaura, algo que, para Andrade Muricy, em Panorama do Movimento Simbolista no Brasil, não passa de um “corpo estranho”, uma “excrescência exótica no conjunto de nossas Letras”. Por isso, o Simbolismo brasileiro nunca foi muita coisa além de um empréstimo gratuito e, por vezes, alienado, com os pés e as mãos a bater na tola e inútil tentativa de alçar um vôo impossível e mortal à semelhança de uma Ismália, a mergulhar sobre um reflexo longínquo julgando-o ser a própria Lua. As grandes virtudes do simbolismo brasileiro, no entanto, descobri-las-ão não seus contemporâneos, a exceção de Augusto dos Anjos, mas por uma geração modernista que soube muito bem aproveitar a sua própria herança e lhe dar características realmente novas, sinceras e peculiares, como foi o caso de Cecília Meireles, e os já citados, aqui, Vinícius de Moraes e Mário Quintana, por exemplo.
 
 
 

II

 

No ponto de encontro entre estes dois movimentos tão antagônicos, encontram-se, mais diretamente, dois poetas demasiadamente originais, cujo legado formal e sensorial de ambos, livrá-los-ia da idéia de poesia obscura, compreensível a uma parca minoria, que se recusava às sensações elementares em nome de um culto à forma meramente dita e aos malabarismos sem fundamento ou conteúdo. São estes: Augusto dos Anjos – de quem já tive o prazer de falar noutra oportunidade e cuja concentração no conteúdo independentemente de sua linguagem alardeadamente cientificista e demasiadamente metafórica, que em nada contribui para nos privar daquele prisma que a perplexidade direciona aos nossos olhos, tornou-o “popular” ou, pelo menos, provocante ao nosso pasmo ante à sua imensa prioridade poética, apesar das excentricidades das quais sempre foi acusado – e Sosígenes Costa.

Vivendo vida adulta de 1900 até a sua morte, em 1914, Augusto dos Anjos coexistiu com os mais diferentes estilos literários e, respectivamente, com escritores que, além de se integrarem a estes estilos, levaram consigo uma cultura erudita de massa e seus rudimentos, como Aluísio Azevedo, que morre em 1913; Inglês de Souza, morto em 1919; Machado de Assis e Arthur Azevedo, falecidos em 1908 para citar realistas e naturalistas; além de poetas parnasianos, simbolistas, seus colegas, por assim dizer, pré-modernistas, e outros, como Coelho Neto, morto em 1934; Alberto de Oliveira, 1937; Raimundo Correia, 1911; Olavo Bilac, em 1918; Joaquim Nabuco (este, ainda, um romântico, no melhor sentido do termo), em 1910; Rui Barbosa, em 1923 e, claro, Euclides da Cunha, em 1909. Sobre Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar, entre muitos, aponta-nos o caráter inovador – modernista – da poesia do bardo paraibano: é quando ela rompe com as muitas conveniências verbais e sociais da época, levando, o Augusto dos Anjos, a uma mescla perfeita entre a beleza e o asco, entre os momentos sublimes e toda a sujeira da vida, sem contar certo prosaísmo, que triunfa sobre a rígida linguagem de seus sonetos... isto é ser ou não ser modernista?

Ao contrário do bardo paraibano, que via na ciência e na própria história do homem, um meio de se chegar ao belo e à construção de uma arte demasiadamente sincera, o poeta baiano, nascido sob a decadência de nosso eruditismo mais secular e aascenção de um modernismo errôneo promovido pelos paulista de 1922, constituiu sua arte e buscou a beleza através da percepção sensorial e da idéia de “poesia pura” que o Parnasianismo (e seus prosélitos) e os Simbolistas (de posse de um cabedal parnasiano) lhe deram. Sem se prender, demasiadamente, à realidade, nem às suas formas mais frias e degradantes, como o poeta do Eu, Sosígenes Costa não se permite a uma interpretação do real por meio de uma idealização – pelo menos eu não a vejo assim – das coisas, mas uma “descortinação” de suas camadas mais cruas, criando uma poesia que se origina, única e exclusivamente, da força contemplativa, do olhar admirado, do espanto diante da beleza das coisas na maneira mesma com que estas se apresentam ao poeta, bem como a todos nós.


A poesia de Sosígenes Costa é a poesia da contemplação, de quem traz uma espécie de amor ao belo, presentes nas coisas tangíveis e imediatas, e ao imagético, não por ser poeta – simplesmente – mas por amar demasiadamente, embora somente na condição de poeta – e poeta dos melhores –, é-lhe possível atribuir, ao mesmo tempo, tamanha simplicidade temática e força versânica, como, bem mais tarde, o fará Bernardo Linhares (outro poeta baiano), na primeira parte de seu livro As Flores do Ocaso. Ambos farão de sua poesia uma celebração constante das formas, das cores, da natureza e da ação propriamente dita do contemplar... (e, aqui, eu parafraseio as palavras de Henrique Wagner, no prefácio do livro de Bernardo). Olhem só o caso de Sosígenes Costa:  

Resplandece o crepúsculo de jade,
de turquesa, de opala e cornalinas.
Pelos céus há pavões.Toda a cidade
é lilás com repuxos de anilinas.

As aves cor de gesso, à claridade
do acaso, ficam quase solferinas.
A cor douradas agora tudo invade,
tornando as passifloras ambarinas.

A natureza cintilante e amena
sardanapalescamente se decora,
brilhando mais que as asas da falena.

Todo o horizonte de lilás se enflora.
Traja galas de príncipe a açucena.
Não parece o poente mas a aurora





Agora, o de Bernardo Linhares:



Tecendo e penetrando a nova aurora,
a lua nova agora devaneia.
Além da vela, vibra a flor da flora.
O azul cavalga o dorso da sereia.
 
Nascendo rosa toda passiflora,
clareia o amarelo e o azul semeia
seus tons, seus entretons, fazendo a hora;
e o azul cavalga o dorso da sereia.
 
No verde, coroada por gaivotas,
a lua nova permanece acesa.
Feliz, a flor do mar dá cambalhotas
 
mostrando sobre as asas seu sorriso.
A vida segue a trilha da beleza
do azul que faz de tudo um paraíso.




Tendo como ponto de partida “a rápida visão, a captação imediata do momento, à maneira de um impressionista do verso, transformando-o em poesia”, como bem acentuou Celina Scheinowitz, em O Cromatismo poético: os Sonetos Pavônicos de Sosígenes Costa, numa profusão de imagens sensoriais, para onde o pessimismo e o sofrimento típicos do existencialismo ateu não têm voz nem vez, abrindo-se, cromaticamente, a uma percepção viva das coisas, onde só os sentidos perecem interessar quanto mais mesclados possam parecer, ou, como melhor acentuou Florisvaldo Mattos, em Travessia de Oásis: a sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, prolifera, na poesia do bardo baiano, “um portento trânsito de percepções, determinado pelo entrelaçamento dos sentidos, facultando múltiplas combinações que dão suporte a imagens encarnadas de transmitir o conteúdo de um fato acontecido na ordem natural ou pessoal”. Este suporte imagético, entretanto, é fruto muito mais do ritmo, da musicalidade e da força moldável de sua métrica do que de seu gosto sensorial. 
 
Esta musicalidade, presente em sua poesia, em certos pontos, parece-me servir de meio para arrancar, de seu leitor, a atenção mais acurada e meramente racional, que, entre tantas coisas, roubaria, a seus versos, esta extravagante contemplação do instantâneo, na qual toda a sua obra, principalmente a mais madura, fundamenta-se, e, sem sombra de dúvidas, donde consegue extrair originalidade e beleza da mais excessiva abstração, graças a um domínio muito pessoal sobre a palavra, numa intuição particularmente sensível dos efeitos cromáticos, rítmicos e musicais, encontrando maior representação somente, entre seus contemporâneos, nos sonetos, de Carlos Pena Filho, como neste, do poeta pernambucano, que se segue:







Entro em teu breve instante, onde os minutos
são três pássaros líquidos e enormes
e contemplo os gelados aquedutos
guardiões do silêncio, enquanto dormes.

Pouso a cabeça nos teus lábios sujos
de mundo e de tempo, e vejo que possuis
em teus seios, dois bêbados marujos
desesperados, sós, raros, azuis.

Enfim, além (no além de tuas pernas
onde Deus repousou a sua face
cansado de inventar coisas eternas)

desvendo ao desespero de quem passe
a rosa que és, a mística e sombria,
a noturna e serena rosa fria.



 
Porém, esta proximidade com Carlos Pena Filho, dar-se-á, também, no campo da influência que a estética de Marllamé e Paul Válery exercerá tanto em um quanto noutro. Esta influência da poesie pure garante a Sosígenes Costa uma ordenação lingüística e uma rítmica do verso que se farão necessárias à menor compreensão que se possa fazer de sua poesia, a qual, aliás, dispunha de um conjunto de instrumentos poéticos e verbais de primeira grandeza, essenciais ao seu trabalho de poeta, ao mesmo tempo, que afirmava a “modernização” de sua linguagem, bem como a inovadora visão de mundo que se alinhava à sua sensibilidade formal e musical, no mesmo instante que se fazia valer as influências de uma visão, por assim dizer, passadista, fazendo-o se diluir nos sistemas expressivos de autores do passado que lhe serviam de base para que pudesse, antagonicamente, andar com as suas próprias pernas. Não obstante, é na busca de uma modernidade – e não na afirmação da forma ou nos valores dos grandes mestres do passado – que reside os grandes versos de Sosígenes Costa, pois, ao experimentar demasiados caminhos, também percorridos por seus contemporâneos modernistas, fez com que nem tudo que escrevia fosse realmente digno de publicação e, para falar a verdade, quando, voluntariamente, afasta-se da ordem, da música e do exotismo de seus sonetos, atirou-se, propositadamente, num abismo de artificialismos e de excessos esquemáticos que transformaram sua poesia “moderna” em algo muito mais falso do que os ortodoxismos parnasianos que o antecederam, fazendo com que exista muito mais riqueza de pensamento e perfeição artesanal – num rigor que fornece um modelo exato de força e beleza – num Vaso Grego, de Alberto de Oliveira, do que em suas Cantigas de Romãozinho. Fora do campo do soneto, a poesia de Sosígenes Costa é mera idéia sem prática ou significado pleno, fazendo-o cometer os mesmos erros de Jorge de Lima, em Poemas Negros, e com que seu Iararana seja, à maneira de um Macunaíma, de Mário de Andrade, uma obra-prima que não saiu uma obra-prima.
 
Voltando à pátria do soneto, de onde jamais deveria ter saído, e, de onde o seu senso de melodia não transpõe o inventivo, a sua poesia sensorial – e, entre tantos sentidos, o da visão é o que está acima de todos – mergulhamos de cabeça no mundo das cores, cuja função de potência simbólica, para um aprofundamento psicológico mais apurado, remete-nos imediatamente a um mundo de instantâneos, de onde se liberam uma profusão de forças interiores que nos conduzirão aos mais diferentes níveis ópticos, donde o poeta se submete a um círculo mágico de efeitos poéticos que ele próprio cria para lhe conferir o máximo de expressão melódica e engenho lingüístico. Assim sendo, a poesie pure é, realmente, uma meta em prioritária em toda a sua obra e, ao mesmo tempo, a primeira de suas muitas características a serem negadas, pelo muito que tenho visto e lido, pela grande maioria de seus críticos que querem enxergar, em Sosígenes Costa, algo como um poeta para além de sua poesia, para além dos elementos primordiais de seus versos, para além do contexto sócio-cultural ao qual se inserira. Porém, ao menos que quem o esteja lendo seja um completo idiota, a sua poesia não é uma poesia para fora da plasticidade... algo, aliás, que não caracteriza, pelo menos para mim, nenhum problema.


 
Em sua poesia, e, principalmente, em seus sonetos, a plasticidade se impõe de maneira primordial por não haver quase nada que se contextualize fora deste universo plástico, desta revelação que lhe fazem o agora, e a perplexidade advinda do imediato. Esta plasticidade não pode, e nem deve, passar desapercebida nem ao analista literário nem, muito menos, ao leitor ávido por admirar. Do contrário, vejam este belo Soneto ao Anjo, de 1930:

Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios,
quando o poente cor-de-rosa e doce
punha pavões nos capitéis assírios.

Teu beijo como um pássaro me trouxe
o mais azul de todos os delírios.
Por tua causa o meu jardim fechou-se
às mulheres que vinham buscar lírios.

Só tu agora colhes azaléia
e os cintilantes cachos da azuréia,
mágica flor que em meu jardim nasceu.

Só tu verás os lírios cor da aurora.
Meu pavão dormirá contigo agora
e o meu jardim dourado agora é teu.




A precisão expressiva, na poesia de Sosígenes Costa, é tão instantânea quanto o seu gosto pela captação e apreensão do imediato. Mas tal precisão, em seus Sonetos Pavônicos, vai muito além da mera precisão artística e nem parece atingir um estado puro de beleza onírica, o qual, aliás, confere-lhe ainda mais a força plástica e sensorial de seus versos, registrando momentos e – por que não? – realidades sensíveis à percepção de seus leitores, bem como dos mundos paralelos e inventivos. A sua poesia, apresentar-se-nos-á como uma poética tanto da ordem quanto da desordem, tanto do espanto e da denúncia, quanto da vontade de desvendar seu universo plástico e a eminência dos corpos físicos transformados em palavras. Em Sosígenes, as “emoções e estados de espírito ganham saber e palpabilidade, como que beneficiários de uma lição natural, materializam-se em campo propício a reconfigurações”, como dirá Florisvaldo Mattos.


***








Retornar às velhas formas, abraçar novas – sobre o gosto de estímulos dentro e fora do campo artístico –, reinventá-las, alinhavá-las e misturá-las, para muitos pode parecer um serviço, uma obrigação óbvia e simplista, mas, no caso de Sosígenes Costa – e, diga-se, um caso raro – tudo parece caminhar para um estado natural de coisas, de onde o mais puro, o mais simples e o menos imageticamente sentido, ainda que poeticamente e demasiadamente elaborado, revela-se importante, por mais que se nos mostre puro, livre e auto-suficiente. Como acontece a qualquer grande poeta, a obra de Sosígenes Costa caracteriza-se, antes de tudo, pelo domínio técnico em seu campo de expressivo e formal, porque a grande realização, e a grande peculiaridade da poesia, como afirmará César Leal, não é alguém emocionar-se com o pôr do sol, mas a de possuir capacidade técnica “para erguer uma estrutura lingüística a partir da emoção que tal fenômeno possa produzir em nosso espírito”.

O autor de Os cavaleiros de Júpiter pensava em Emílio Moura quando escreveu esta paráfrase de Gautier. No entanto, isso não significa que tais palavras não se apliquem – e, talvez, bem melhor – a Sosígenes Costa, que, entre nós, baianos, realizou, também, um milagre poético que só a poesia grapiúna – aquela que, segundo Gustavo Felicíssimo, nos deu, tratando-se da Bahia, a melhor poesia do século XX, e, em termos de Brasil, um dos nossos maiores poetas – poderia nos conceder.



 


Candeias, numa ensolarada tarde de inverno,
aos 25 dias do mês de julho, de 2011.



















6 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Ótima leitura de Sosígenes Costa, o qual mereceu ser chamado "O Poeta Grego da Bahia" (expressão de James Amado que tomei emprestada quando estudei o poeta). Sosígenes é um dos poetas mais eruditos do século passado: a mitologia grega, as figuras da Bíblia, personagens outros e vários habitam sua poesia, quando mais não fosse para dizer de seu eu-lírico, escondido em cada personagem, talvez tenha sido porque suas leituras ficaram definitivamente entranhadas nos seus textos poéticos (e qual melhor lugar do que este?).
Apreciei muito seu texto. Continuemos trazendo Sosígenes para o presente.

Henrique Wagner disse...

Puxa, que fôlego incrível, sem, em momento algum, botar a língua pra fora. Gostei muito da intertextualidade em seu longo e admirável artigo. E, claro, fiquei sem palavras, comovido, ao ver meu nome, na condição de "homenageado". Acho muito justa a citação da professora Celina Scheinowtiz, mulher de raro talento, uma especialista mesmo. Tive o prazer de conhecê-la num evento sobre o Sosígenes, na Uefs, ao qual fui convidado. Texto dedicado, e dedicado a mim, é realmente muito para um leitor com certa miopia e astigmatismo. Abç fraterno!

Anônimo disse...

Prezado poeta Silvério Duque:

Li com curiosidade intensa e satisfação o seu texto sobre o grande Sosígenes Costa, preparado para seu blog, um tema, como sabe, de minha predileção, que sempre me desperta entusiasmo.

Realmente, uma abordagem de penetrante força espiritual e análise, tocando em pontos básicos da poética do belmontino.

Nesses tempos de cultura virtual e eletrônica, iniciativas críticas como esta precisam ser incentivadas, adotadas e prestigiadas.

Conheço Bernardo Linhares e algo de sua poesia; tem qualidade, como neste soneto que você reproduz, mas, não se pode negar, está longe de Sosígenes, que continua um sol de intenso brilho num cosmo solitário. O que não se dá com o pernambucano Carlos Pena Filho, que, apesar de ter morrido com 31 anos, tragicamente, revelou sempre maturidade criativa e técnica.

Agradeço estar entre os autores que cita. Repito: um bom texto, digno de figurar numa seleta de apreciações sobre a poética de Sosígenes Costa.

Apenas sugiro fazer uma revisão vocabular, desde que notei alguns cochilos. P. ex.: ao citar no final observação que faço em meu livro sobre o poeta, está lá "saber e plasticidade", quando é "sabor e plasticidade", uma evocação à força da sensorialidade expressiva da poesia de Sosígenes, mas notei outros escorregos, esporádicos, que não prejudicam em essência o entendimento da ideia sustentada ou referida.

Pela importância, arquivei-o.

Parabéns.

Um abraço.

Florisvaldo Mattos

Anônimo disse...

Prezado amigo Silvério, agradeço pela lembrança e homenagem. Excelente texto. Uma verdadeira aula para aqueles que querem compreender os caminhos que a poesia brasileira trilhou em nosso tempo. Realmente eu não conhecia Sosígenes Costa. Um poeta e tanto!!! Vou procurar ler a sua obra. Ele me lembra um pouco Georg Trakl, um poeta austríaco que muito gosto. Infelizmente cometeu suicídio numa situação de desespero na I Guerra. Farmacêutico, entregaram-lhe os cuidados de mais de 90 feridos. Uma amostra: Por sobre o lago branco/ Partiram os pássaros selvagens./ No crepúsculo sopra de nossas estrelas um vento gelado./ Por sobre os nossos túmulos/ Inclina-se a fronte despedaçada das trevas./ Sob carvalhos, balançamos numa barca prateada./ Sempre ressoam os muros brancos da cidade./ Sob arcos de espinhos/ Oh, irmão, ponteiros cegos, escalamos rumo à meia-noite. Um forte abraço, K.

Henrique Wagner disse...

Não consegui entender o absurdo da comparação do leitor acima, denominado K. Ele compara Sosígenes, poeta grandiloquente, entre simbolista e modernista, mestre em formas fixas, com o jovem Georg Trakl, apenas porque este gosta de cores!!! Se a questão é cor, vamos comparar o Sosígenes com a bandeira do movimento gay... Trakl, cuja tradução para o portuguê brasileiro ficou a cargo da Claudia Cavalcanti, é absolutamente romântico e um tanto surrealista. Mórbido, muito mórbido, escreveu poemas curtos, meio enigmáticos. Nada, nada a ver com o poeta de Belmonte.

Anônimo disse...

Caro poeta,

Parabéns pelo texto. Os elogios condizem com o que está sendo elogiado. Numa só coisa não concordo com você. É a de dizer que “fora da pátria do soneto” a poesia de Sosígenes se minimiza. Acho que você se deixou levar por uma visão um pouco “conservadora”, mas poemas como ‘Palhaço verde’ e ‘Dorme a loucura em ânfora de vinho’ estão no mesmo nível de seus sonetos.

Thales Augusto Almeida