Este seu romance, lançado pela É realizações, trata da história de projetos que não se concluem, de ambições jamais alcançadas, de pessoas que se tornam títeres das circunstâncias, e que, eternamente deslocadas, não encontram conforto senão em suas pequenas misérias. Ambientado na Alemanha Oriental de fins dos anos 80 – e, pois, da queda do muro –, o romance conta a história de um estudante brasileiro, perdido entre a euforia do novo e a nostalgia do velho regime. Entre as drogas e a ambição literária. Entre ser e não ser.
A analogia com Hamlet não tem nada de casual, sobretudo porque, como o príncipe da Dinamarca, o nosso herói passa muito tempo hesitando, em elucubrações e devaneios, e, sempre que age, é para deixar o ruim muito pior. Mas não pense o leitor que As Almas que se Quebram no Chão é um daqueles romances “psicológicos” em que nada acontece, tipo sessão de psicanálise. Longe disso. Ancorado na tradição de Memórias do Subsolo, de Dostoiévski, e do melhor beatnik norte-americano, o livro é cheio de energia, de ação, e muita coisa “acontece”, afinal.
Com 24 anos, seis deles vividos na pequena Brejo, no interior do Maranhão, Karleno inventou de estudar na Alemanha oriental comunista e de tanto tentar conseguiu uma bolsa de mestrado. Foi estudar primeiro em Leipzig, uma cidade industrial cinzenta onde desembarcou em agosto de 1989.
Naqueles dias, grupos de oração da Igreja Protestante começaram a ir para as ruas da cidade pedir mais abertura ao regime comunista, que os proibia de viajar e os isolava do mundo ocidental. O movimento se alastrou e chegou à Berlim, segundo os rumores que Karleno ouvia - a imprensa do regime de ferro censurava a informação. Karleno nunca poderia imaginar que dali a 11 semanas a sólida fronteira de concreto que dividia o mundo e as famílias alemãs fosse cair, se desmanchar no ar.
Em 9 de novembro de 2009, um funcionário do governo da Alemanha oriental deu uma informação equivocada numa entrevista com jornalistas. Ao anunciar que o regime comunista iria abrir as fronteiras para que os alemães dos dois lados se visitassem, disse que a fronteira já estava aberta. Em poucas horas uma multidão foi para o muro no centro de Berlim, no Portão de Brandemburgo, e os guardas sem saber o que fazer nem a quem telefonar (ainda não existiam celulares) deixaram a multidão passar, sem nenhum tiro.
Sem que as pessoas esperassem, o "muro da vergonha" caiu como pedra de dominó. Arrastou junto o sistema comunista, embaralhando o jogo de poder do mundo. Karleno viu tudo de perto. Sete anos depois voltou ao Brasil com um doutorado de outro país, a Alemanha capitalista e unificada. Sem querer, virou testemunha de uma das maiores transformações recentes. O então garoto de Brejo viu um capítulo se fechar e outro se abrir na história do mundo. E ele nem falava alemão nos primeiros dias...
Veja a entrevista:
R7 - Qual foi a sua impressão ao desembarcar em um país socialista?
Karleno Bocarro - Para um militante de esquerda à época foi decepcionante. O sistema não era o que eu imaginava, violava muito a dignidade do ser humano. Eu conheci um alemão que queria fazer Filosofia, mas o governo disse que não, que ele teria antes de servir três anos no Exército da Alemanha oriental. A impressão era a de descer num mundo totalmente diferente. Era um mundo pálido, sem cor. Leipzig era uma cidade industrial, muito poluída. A impressão era de um mundo parado no tempo, com os carros e as roupas das pessoas muito antiquados. Havia também uma atmosfera de medo e pânico. As pessoas não se expressavam porque tinham medo. Um em cada três alemães era espião da Stasi, a polícia secreta.
R7 - Como era a vida no dia a dia?
Karleno - Eu não sabia cozinhar e lá não se encontrava facilmente lugares que vendiam comida. As lojas que eram do Estado demoravam para abrir e sempre tinha fila. No supermercado também não havia variação de produtos. Era uma marca de xampu, uma marca de creme. Só.
R7 - Você chegou às vésperas do Muro cair. Dava para saber que isso iria acontecer?
Karleno - Acho que ninguém sabia, nem o governo, porque se soubessem eles não nos teriam dado bolsas de estudo, por exemplo. Mesmo as manifestações que começaram a acontecer não eram para derrubar o sistema, mas para haver abertura. Ninguém poderia pensar que tão rapidamente o Muro iria cair e um país deixar de existir.
R7 - Você já sabia das manifestações antes de ir para lá?
Karleno - Havia certamente uma insatisfação não expressada. As manifestações começaram pequenas, mas ganharam rapidamente uma grande proporção nas segundas-feiras. Começou como um grupo de oração na Igreja Protestante, mas aí eles tiveram coragem de ir para a rua e enfrentar a polícia. Nós que éramos estrangeiros fomos orientados pelos professores a não participar dos protestos. As manifestações foram se espalhando e a notícia chegava à gente por boatos, principalmente porque eu não falava alemão direito.
R7 - A TV mostrava as manifestações?
Karleno - A gente se reunia toda noite para jantar no refeitório da universidade. Quando as manifestações começaram a se tornar mais intensas nos disseram para voltar diretamente ao alojamento. Naquela noite eu fui dormir e só fiquei sabendo da queda do muro no outro dia, quando cheguei à escola e a professora estava muito agitada. Ela estava super feliz e muito ansiosa, porque ela poderia viajar, que era o grande desejo das pessoas. Neste momento ainda não havia percepção de que era o fim da Alemanha Oriental.
R7- Quais eram os anseios dos jovens da época?
Karleno - O grande sonho era viajar, poder conhecer outros povos. Havia também uma grande insatisfação com o sistema, a ausência de perspectivas e de escolhas pessoais. No fundo eles não queriam mais aquilo ali.
R7 - E os dias seguintes?
Karleno - Foi nos dias seguintes que eu soube que minha universidade seria em Berlim e eu não sei se a queda do Muro teve a ver com isso. Fui para Berlim oriental, que era semelhante a Leipzig, cinzenta. Foi interessante ver a mudança. Eu fui à cidade em julho de 1990. Eles estavam reunificando os sistemas de comunicação, de água, de transporte. Antes o metrô de Berlim Ocidental tinha estações fantasmas, já que a linha passava em partes de Berlim Oriental, só que as estações eram fechadas. Eram muitas construções. O guindaste virou uma imagem de Berlim. Os supermercados da Alemanha Oriental, que tinham uma marca para cada produto, foram inundados com produtos ocidentais. Eles pegaram as pessoas pela boca para fazer a unificação.
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