A poetisa Nívia Maria Vasconcellos, minha irmanzinha
O INTERTEXTO POÉTICO: INTERVENÇÕES, FRAGMENTOS E VIVÊNCIAS.
ou UMA LEITURA SOBRE LEITURAS
por Nívia Maria Vasconcellos*
...a cidade está no homem quase como a árvore voa no pássaro que a deixa
cada coisa está em outra de sua própria maneira e de maneira distinta de como está em si mesma...
ou UMA LEITURA SOBRE LEITURAS
por Nívia Maria Vasconcellos*
...a cidade está no homem quase como a árvore voa no pássaro que a deixa
cada coisa está em outra de sua própria maneira e de maneira distinta de como está em si mesma...
FERREIRA GULLAR
Dizem que tudo o que criamos não passa de uma mera repetição de algo que já foi dito, escrito, realizado algures... Sinto que, em parte, essa assertiva é verdadeira, mas a sua veracidade não tira a beleza, a riqueza – poderia dizer, até mesmo, a originalidade – do que está sendo feito, ou melhor, refeito. É como as poesias. Se formos comparar alguns sonetos do grande vate português e os de nosso modernista Vinícius de Moraes, encontraremos, por vezes várias, em ambos, similitudes que se encontram no tema: o amor; e na forma, a qual os dois trabalharam muito bem: o soneto. Mas, existe, em cada uma de suas poesias, o seu traço, a sua pessoalidade, o intertexto com a vida e o estilo de cada um, o que faz de suas obras distintas mesmo dentro de suas semelhanças e, depararmo-nos com suas produções, assemelha-se a nos defrontar com o inédito, o novo, o original. E, assim como Camões influenciara Vinicius, este deve ter influenciado outros, criando, explícita ou implicitamente, uma grande teia imaginária de inter-relações. Toda essa minha propedêutica é conveniente por ser Baladas e Outros Aportes de Viagem uma obra dupla que conduz em si, como o exemplo citado, uma intertextualidade com outros poetas e suas obras e com as próprias experiências vividas por seu autor.
I
...a cidade está no homem mas não da mesma maneira que um pássaro está numa árvore não da mesma maneira que um pássaro (a imagem dele) está/va na água e nem da mesma maneira que o susto do pássaro está no pássaro que eu escrevo...
Dizem que tudo o que criamos não passa de uma mera repetição de algo que já foi dito, escrito, realizado algures... Sinto que, em parte, essa assertiva é verdadeira, mas a sua veracidade não tira a beleza, a riqueza – poderia dizer, até mesmo, a originalidade – do que está sendo feito, ou melhor, refeito. É como as poesias. Se formos comparar alguns sonetos do grande vate português e os de nosso modernista Vinícius de Moraes, encontraremos, por vezes várias, em ambos, similitudes que se encontram no tema: o amor; e na forma, a qual os dois trabalharam muito bem: o soneto. Mas, existe, em cada uma de suas poesias, o seu traço, a sua pessoalidade, o intertexto com a vida e o estilo de cada um, o que faz de suas obras distintas mesmo dentro de suas semelhanças e, depararmo-nos com suas produções, assemelha-se a nos defrontar com o inédito, o novo, o original. E, assim como Camões influenciara Vinicius, este deve ter influenciado outros, criando, explícita ou implicitamente, uma grande teia imaginária de inter-relações. Toda essa minha propedêutica é conveniente por ser Baladas e Outros Aportes de Viagem uma obra dupla que conduz em si, como o exemplo citado, uma intertextualidade com outros poetas e suas obras e com as próprias experiências vividas por seu autor.
I
...a cidade está no homem mas não da mesma maneira que um pássaro está numa árvore não da mesma maneira que um pássaro (a imagem dele) está/va na água e nem da mesma maneira que o susto do pássaro está no pássaro que eu escrevo...
FEREIRA GULLAR
Em Baladas – o livro que se encarrega da parte lírica como o próprio nome já nos explicita –, os “experimentos” de Silvério Duque promovem um passeio por bastantes temas e formas, fazendo-nos revisitar poetas como Sophia Mello Breyner Andresen e Fernando Pessoa, Hilda Hilst e Alexei Bueno, Alberto da Cunha Mello e Bruno Tolentino (vale destacar que este último não apenas realizou interferências por intermédio de sua obra como também, e mais diretamente, por meio de sua presença viva e ativa que não apenas incentivou a produção, mas também realizou os “puxões de orelha” – da forma que o próprio autor gosta de mencionar tal qual podemos ler nas páginas iniciais – necessários para que este livro se abrilhantasse ainda mais, por isso, devidamente, o conjunto dessa obra é, também, a ele dedicado), entre outros.
Prenhe de epígrafes e dedicatórias, este livro faz alusão de maneira expressa às intervenções deliberadas que sofreu. Nele, podemos perceber autores lidos por Silvério e a leitura que efetuou de suas obras. Ao lermos a poesia IX, na qual próprio título é uma dedicatória – o que irá se repetir ao longo das XII Baladas que concebem esta obra –, podemos realizar uma comparação técnica, léxica e temática com Yacala, obra do Alberto da Cunha Mello a quem essa “canção” é consagrada. Como se pode observar entre o Exórdio dessa obra sem-par de Alberto e a Balada para Adriana de Silvério:
001 - EXÓRDIO
Levamos fogo, não esponjas,
ao trono sujo de excremento
disputando o mesmo vazio
de uma estrela no firmamento;
jarros negros e estrelas, tudo
é uma busca de conteúdo;
ou somos renúncia ou cobiça,
atravessando esses planaltos
feitos de cinza movediça;
mas todos estamos em casa,
como os vôos dentro das asas.
BALADA PARA ADRIANA
a Alberto da Cunha Melo
Eu não busquei esta agonia,
esse poema de distâncias
pelo silêncio inatingíveis,
esta ausência, esta inconstância...
Mas para cada sofrimento
há uma estrela no firmamento.
( Eu sei que atrás do teu olhar
havia outro olhar perdido
em meio ao Céu e o teu lembrar... )
E era essa luz que tu seguias
o olhar do amor com que te via.
Silvério Duque não apenas se apropria de uma personagem de Yacala, Adriana (filha de Mestre Bai), como também da dureza da retranca – forma fixa criada pelo próprio Alberto que se perfaz em octossílabos, efetuando uma fuga às métricas mais conhecidas: as redondilhas menor (versos com cinco sílabas poéticas) e maior (versos com sete pés-métricos) e a métrica clássica do decassílabo (versos com dez sílabas poéticas). Silvério consegue, além de captar toda a cadência e rigor dessa escala métrica, ainda conquistar, nessa Balada, semelhante escala estrófica e rímica: um quarteto formado por uma rima alternada entre o segundo e o quarto verso (distâncias/ inconstância); um dístico rimado (sofrimento/firmamento); um terceto com rima entre o primeiro e o terceiro verso (olhar/lembrar) e uma assonância contida no dístico que arremata a poesia (seguias/via).
O que ocorre nessa poesia se repete em intensidades diferenciadas nas demais. Por vezes, essas menções formam leituras sobre leituras infinitamente. Em forma de terça-rima, estrutura muito bem utilizada por Dante Alighiere, na Balada III (Balada para Beatriz, que apresenta versos alexandrinos), por exemplo, Duque remete à Mira Cœli (referência de Jorge de Lima a Beatriz de Dante, que também influenciara dois grandes compositores brasileiros, Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo, os quais – a partir do poema O Grande Circo Místico, contido na obra A túnica inconsútil, de Jorge de Lima – criaram a belíssima valsa Beatriz) e, concomitantemente, a própria Beatriz de Dante pela qual a obra de Jorge fora influenciada. Devido a esse constante relacionamento poético-temático com obras que, por sua vez, aludem a outras obras, podemos dizer que Baladas é um livro para iniciados, uma vez que a sua perfeita compreensão será lograda pelos que perceberem e souberem realizar tais analogias, o que os fará notar o diálogo que este excelente livro nos permite cumprir com personagens mitológicas, lendárias e poéticas (Helena, Beatriz, Enone, Medusa, Adriana, Inês) e, consoante o que já foi citado, com diversos autores da literatura feirense, brasileira e universal (Hilda Hilst, Alexei Bueno, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Godofredo Filho, Bruno Tolentino, Alberto da Cunha Melo, Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto e Antônio Brasileiro) quer seja pelo título, quer seja pelas epígrafes ou pelo próprio conteúdo das poesias. Não obstante, mesmo aqueles que não disporem de uma bagagem suficiente, da leitura prévia de tais poetas para tanto, poderão, por intermédio de Silvério, entrar em contato indireto com eles e, quiçá, despertarem a curiosidade em si de pesquisá-los e lê-los, o que faz de Baladas um livro que até mesmo incentiva a leitura de outros livros.
Além desses poemas, ainda existem outros que se reportam a pessoas dos ciclos familiar e fraternal do autor. Não podemos deixar de mencionar as constantes dedicatórias a Lucifrance Castro – sua Laura, sua Ofélia, sua Matilde,... sua Musa – a quem ele vota a maioria de seus versos. Como se nota na própria intitulação da poesia V, Balada para Luci, na qual o nosso poeta prega um diálogo de separação e morte com sua amada ou como nas Três quadras populares: ao gosto clássico de pieguice ultra-romântica
Tens amor nesses cachos d´anjo
e nesses olhos de incerteza...
( Mas se pena não tens de mim,
por que me ofertas tal tristeza?)
poesia na qual prova toda a sua versatilidade por se mostrar capaz de ir da singeleza dessas quadrinhas de amor, as quais não perdem o seu viço por serem simples, e sim se mostram despretensiosamente belas, mesmo utilizando de clichês românticos (e dos versos heterométricos de Serenata, também ofertada à sua diva, a quem ele orienta todo o seu amor como na própria Balada para Inês (poesia XI) que inicia essa trinca de poesias a ela direcionadas) até a beleza contida na saudade dorida expressa pelos dísticos alexandrinos da Balada para Alice – obra destinada à memória da avó do poeta (inspirada, consoante confissão do próprio Silvério, pela vigorosa e eriçante poesia da Cecília Meirelles, Elegia, último poema do livro Mar Absoluto, a qual, dedicada a avó da poetisa, instigou sua lembrança e o fez remeter ao seu passado em Tanquinho, o convívio e afastamento de sua avó, aquela senhora que agora se faz ausente nos degraus de uma escada à frente de sua casa numa tarde qualquer, cena que fora muito bem representada através de formas e cores por intermédio dos traços do artista plástico Gabriel Ferreira a quem essa cena também lhe é lembrança), o soneto inglês de Balada para medusa e ainda o ecletismo manifestado no poema-texto através do qual a Balada para Sofia se apresenta, o que nos faz concordar com sua dileta companheira e também de seus versos, sentir ciúmes.
II
...o homem está na cidade como uma coisa está em outra e a cidade está no homem que está em outra cidade (...)
a cidade não está no homem do mesmo modo que em suasquitandas praças e ruas...
FERREIRA GULLAR
Em Outros Aportes de Viagem, por sua vez, o artista se encontra – ou busca esse encontro – em seu mundo (em seus mundos). O poeta é um andarilho que visita diversos lugares e pessoas que são incorporados a sua vida e que vão compondo a sua memória, o seu passado. Dessa maneira, a intertextualidade predominante se exprime por meio das recordações do que foi vivido e sentido. É um intertexto que se manifesta entre as experiências do poeta e as poesias que elas inspiraram, ou seja, uma inter-relação entre o criador e a leitura (peço licença a Paulo Freire) que ele realiza do que circunda.
O lirismo – que é supremo no livro anterior – nessa obra vem acompanhado por uma narratividade dramática que o faz mesclar os três gêneros literários – o Narrativo, o Lírico e o Dramático – e romper com quaisquer tentativas de sistematização ou classificação de suas composições (o que fundiria as habilidades mentais do afamado Estagirita). O gênero lírico se manifesta na medida em que Silvério canta cidades (Ipirá, Candeal, Ichu, Tanquinho, Conceição do Jacuípe, Aracy, Feira de Santana) para, por intermédio delas, exprimir suas emoções e sentimentos individuais (sinto Ipirá ao vê-la e ao pisar-lhe/ o chão como peregrino que sou de mim mesmo) carregados de subjetividade. Seu drama – o próprio Duque subintitula este livro como “experimentos dramáticos” – é afiançado pela ação constante que o autor – também uma das personagens de suas histórias – põe-nos em contato, é como se a cada poema o poeta realizasse suas falas, interpretando-nos um intenso solilóquio (Na casa velha de minha infância/as lembranças projetam dores/sobre este olhar perdido). Já o seu tom Narrativo é garantido por ser ele um poeta em trânsito, um poeta-viagem que transita pelos lados do asfalto frio da estrada, a ver aquela caatinga enveredando-se a teimar com a Morte, a Serra, a casa velha, a cidade toda feita de saudades e tudo mais que a janela do ônibus e seus próprios passos permitiram-lhe contar por fazê-lo alcançar e sentir.
Em Baladas – o livro que se encarrega da parte lírica como o próprio nome já nos explicita –, os “experimentos” de Silvério Duque promovem um passeio por bastantes temas e formas, fazendo-nos revisitar poetas como Sophia Mello Breyner Andresen e Fernando Pessoa, Hilda Hilst e Alexei Bueno, Alberto da Cunha Mello e Bruno Tolentino (vale destacar que este último não apenas realizou interferências por intermédio de sua obra como também, e mais diretamente, por meio de sua presença viva e ativa que não apenas incentivou a produção, mas também realizou os “puxões de orelha” – da forma que o próprio autor gosta de mencionar tal qual podemos ler nas páginas iniciais – necessários para que este livro se abrilhantasse ainda mais, por isso, devidamente, o conjunto dessa obra é, também, a ele dedicado), entre outros.
Prenhe de epígrafes e dedicatórias, este livro faz alusão de maneira expressa às intervenções deliberadas que sofreu. Nele, podemos perceber autores lidos por Silvério e a leitura que efetuou de suas obras. Ao lermos a poesia IX, na qual próprio título é uma dedicatória – o que irá se repetir ao longo das XII Baladas que concebem esta obra –, podemos realizar uma comparação técnica, léxica e temática com Yacala, obra do Alberto da Cunha Mello a quem essa “canção” é consagrada. Como se pode observar entre o Exórdio dessa obra sem-par de Alberto e a Balada para Adriana de Silvério:
001 - EXÓRDIO
Levamos fogo, não esponjas,
ao trono sujo de excremento
disputando o mesmo vazio
de uma estrela no firmamento;
jarros negros e estrelas, tudo
é uma busca de conteúdo;
ou somos renúncia ou cobiça,
atravessando esses planaltos
feitos de cinza movediça;
mas todos estamos em casa,
como os vôos dentro das asas.
BALADA PARA ADRIANA
a Alberto da Cunha Melo
Eu não busquei esta agonia,
esse poema de distâncias
pelo silêncio inatingíveis,
esta ausência, esta inconstância...
Mas para cada sofrimento
há uma estrela no firmamento.
( Eu sei que atrás do teu olhar
havia outro olhar perdido
em meio ao Céu e o teu lembrar... )
E era essa luz que tu seguias
o olhar do amor com que te via.
Silvério Duque não apenas se apropria de uma personagem de Yacala, Adriana (filha de Mestre Bai), como também da dureza da retranca – forma fixa criada pelo próprio Alberto que se perfaz em octossílabos, efetuando uma fuga às métricas mais conhecidas: as redondilhas menor (versos com cinco sílabas poéticas) e maior (versos com sete pés-métricos) e a métrica clássica do decassílabo (versos com dez sílabas poéticas). Silvério consegue, além de captar toda a cadência e rigor dessa escala métrica, ainda conquistar, nessa Balada, semelhante escala estrófica e rímica: um quarteto formado por uma rima alternada entre o segundo e o quarto verso (distâncias/ inconstância); um dístico rimado (sofrimento/firmamento); um terceto com rima entre o primeiro e o terceiro verso (olhar/lembrar) e uma assonância contida no dístico que arremata a poesia (seguias/via).
O que ocorre nessa poesia se repete em intensidades diferenciadas nas demais. Por vezes, essas menções formam leituras sobre leituras infinitamente. Em forma de terça-rima, estrutura muito bem utilizada por Dante Alighiere, na Balada III (Balada para Beatriz, que apresenta versos alexandrinos), por exemplo, Duque remete à Mira Cœli (referência de Jorge de Lima a Beatriz de Dante, que também influenciara dois grandes compositores brasileiros, Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo, os quais – a partir do poema O Grande Circo Místico, contido na obra A túnica inconsútil, de Jorge de Lima – criaram a belíssima valsa Beatriz) e, concomitantemente, a própria Beatriz de Dante pela qual a obra de Jorge fora influenciada. Devido a esse constante relacionamento poético-temático com obras que, por sua vez, aludem a outras obras, podemos dizer que Baladas é um livro para iniciados, uma vez que a sua perfeita compreensão será lograda pelos que perceberem e souberem realizar tais analogias, o que os fará notar o diálogo que este excelente livro nos permite cumprir com personagens mitológicas, lendárias e poéticas (Helena, Beatriz, Enone, Medusa, Adriana, Inês) e, consoante o que já foi citado, com diversos autores da literatura feirense, brasileira e universal (Hilda Hilst, Alexei Bueno, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Godofredo Filho, Bruno Tolentino, Alberto da Cunha Melo, Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto e Antônio Brasileiro) quer seja pelo título, quer seja pelas epígrafes ou pelo próprio conteúdo das poesias. Não obstante, mesmo aqueles que não disporem de uma bagagem suficiente, da leitura prévia de tais poetas para tanto, poderão, por intermédio de Silvério, entrar em contato indireto com eles e, quiçá, despertarem a curiosidade em si de pesquisá-los e lê-los, o que faz de Baladas um livro que até mesmo incentiva a leitura de outros livros.
Além desses poemas, ainda existem outros que se reportam a pessoas dos ciclos familiar e fraternal do autor. Não podemos deixar de mencionar as constantes dedicatórias a Lucifrance Castro – sua Laura, sua Ofélia, sua Matilde,... sua Musa – a quem ele vota a maioria de seus versos. Como se nota na própria intitulação da poesia V, Balada para Luci, na qual o nosso poeta prega um diálogo de separação e morte com sua amada ou como nas Três quadras populares: ao gosto clássico de pieguice ultra-romântica
Tens amor nesses cachos d´anjo
e nesses olhos de incerteza...
( Mas se pena não tens de mim,
por que me ofertas tal tristeza?)
poesia na qual prova toda a sua versatilidade por se mostrar capaz de ir da singeleza dessas quadrinhas de amor, as quais não perdem o seu viço por serem simples, e sim se mostram despretensiosamente belas, mesmo utilizando de clichês românticos (e dos versos heterométricos de Serenata, também ofertada à sua diva, a quem ele orienta todo o seu amor como na própria Balada para Inês (poesia XI) que inicia essa trinca de poesias a ela direcionadas) até a beleza contida na saudade dorida expressa pelos dísticos alexandrinos da Balada para Alice – obra destinada à memória da avó do poeta (inspirada, consoante confissão do próprio Silvério, pela vigorosa e eriçante poesia da Cecília Meirelles, Elegia, último poema do livro Mar Absoluto, a qual, dedicada a avó da poetisa, instigou sua lembrança e o fez remeter ao seu passado em Tanquinho, o convívio e afastamento de sua avó, aquela senhora que agora se faz ausente nos degraus de uma escada à frente de sua casa numa tarde qualquer, cena que fora muito bem representada através de formas e cores por intermédio dos traços do artista plástico Gabriel Ferreira a quem essa cena também lhe é lembrança), o soneto inglês de Balada para medusa e ainda o ecletismo manifestado no poema-texto através do qual a Balada para Sofia se apresenta, o que nos faz concordar com sua dileta companheira e também de seus versos, sentir ciúmes.
II
...o homem está na cidade como uma coisa está em outra e a cidade está no homem que está em outra cidade (...)
a cidade não está no homem do mesmo modo que em suasquitandas praças e ruas...
FERREIRA GULLAR
Em Outros Aportes de Viagem, por sua vez, o artista se encontra – ou busca esse encontro – em seu mundo (em seus mundos). O poeta é um andarilho que visita diversos lugares e pessoas que são incorporados a sua vida e que vão compondo a sua memória, o seu passado. Dessa maneira, a intertextualidade predominante se exprime por meio das recordações do que foi vivido e sentido. É um intertexto que se manifesta entre as experiências do poeta e as poesias que elas inspiraram, ou seja, uma inter-relação entre o criador e a leitura (peço licença a Paulo Freire) que ele realiza do que circunda.
O lirismo – que é supremo no livro anterior – nessa obra vem acompanhado por uma narratividade dramática que o faz mesclar os três gêneros literários – o Narrativo, o Lírico e o Dramático – e romper com quaisquer tentativas de sistematização ou classificação de suas composições (o que fundiria as habilidades mentais do afamado Estagirita). O gênero lírico se manifesta na medida em que Silvério canta cidades (Ipirá, Candeal, Ichu, Tanquinho, Conceição do Jacuípe, Aracy, Feira de Santana) para, por intermédio delas, exprimir suas emoções e sentimentos individuais (sinto Ipirá ao vê-la e ao pisar-lhe/ o chão como peregrino que sou de mim mesmo) carregados de subjetividade. Seu drama – o próprio Duque subintitula este livro como “experimentos dramáticos” – é afiançado pela ação constante que o autor – também uma das personagens de suas histórias – põe-nos em contato, é como se a cada poema o poeta realizasse suas falas, interpretando-nos um intenso solilóquio (Na casa velha de minha infância/as lembranças projetam dores/sobre este olhar perdido). Já o seu tom Narrativo é garantido por ser ele um poeta em trânsito, um poeta-viagem que transita pelos lados do asfalto frio da estrada, a ver aquela caatinga enveredando-se a teimar com a Morte, a Serra, a casa velha, a cidade toda feita de saudades e tudo mais que a janela do ônibus e seus próprios passos permitiram-lhe contar por fazê-lo alcançar e sentir.
III
Nesse itinerário poético com o qual somos presenteados, há referência, da mesma forma que em suas Baladas, a alguns poetas, a poesias e a pessoas que integram a sua recordação. O soneto clássico dedicado ao seu amigo de infância e aventuras, Uedson Lima, Aportes da estrada entre Candeal e Ichu, apresenta um poder cromático (a aurerubra caatinga de amarelo/pintada sob o sol da madrugada) que nos remete a instigação sensorial exposta em grande parte das produções de Sosígenes Costa como é perceptível em seu belo soneto O pavão vermelho (É uma festa de púrpura./E o assemelhoa uma chama do lábaro da aurora).
Assim como essa relação com outros poetas, há outras similitudes que fazem com que ambos os livros, em conjunto, ainda que pareçam díspares, formem de maneira coerente, a obra em questão. Isso se dá, mormente, devido ao intertexto existente entre os dois livros o que se revela pelas temáticas que permeiam tanto o Baladas quanto o Outros Aportes de Viagem: o Amor e a Morte. O amor, o amor antigo que vivemos, o mesmo amor que move céus... que move estrelas, e a morte, o caminho sem retorno, essa dissolução tão certa quanto incômoda, essa noite [que] nos envolve indecifrável que são , em verdade, os grandes fazedores de tantos artistas, fomentadores de tantas artes por tudo ter neles o seu começo e o seu fim.
Absorvidos por essa viagem por espaços e por impressões, somos compelidos a reconhecer a erudição e elegância de Silvério Duque e a admitir o desafio que seus “experimentos” fazem a seus leitores. E esta é característica elementar pertencente a produções artísticas que pretendem ser notáveis: o Desafio. As obras literárias não devem existir para agradar aqueles que as lêem, senão para instigar-lhes a sensibilidade e a inteligência. Como o próprio Silvério escrevera outrora: a poesia deve dar um soco na cara do leitor. Sendo assim, purificados e de “olhos roxos”, nós – mais sublimes por termos entrado em contato com suas composições – encontramo-nos mais felizes e, inspirados pela vida, assim como nosso poeta, sorrindo para a morte e seus segredos.
*Nívia Maria Vasconcellos nasceu em Feira de Santana, estado da Bahia, em 1980. Formada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Em 2002, publicou o livro de poesias Invisibilidade pelo MAC (Museu de Arte Contemporânea/FSA) e ...para não suicidar pelas Ed. Littera , participou de vários projetos como “Poesia na Boca da Noite” e da Bienal do Livro da Bahia, em 2005. Atualmente, cursa Especialização em Literatura e Diversidade Cultural na UEFS e, além de poetisa, é contista, ensaísta, professora de Literatura e participa do grupo de declamação OsBocasDo Inferno, com o qual já se apresentou em vários estados do Brasil.
BALADAS
( EXPERIMENTOS LÍRICOS )
Escavemos as palavras,
a gente encontra o que o tempo ocultou...
ALEILTON FONSECA
I
BALADA PARA HILDA
a Nívia Maria Vasconcellos, minha irmã.
( É semelhante à brisa que só nos deixa o frio
deste quase não pressenti-la,
o nosso olhar que se perdeu no tempo,
sem nada haver além de sombra e sobras...
porque nos era só desejo e vazio
os dias de solidão
e inquietude,
os quais só nos deixaram os olhos
e aquilo que prometiam.
( Mas
do amor antigo que vivemos
somos apenas a lembrança viva do inevitável destino
e a amargura inconsolável de quem,
por toda a vida,
esperou pelas coisas que se mostram sempre as mesmas,
como quem contempla a última hora,
ante a dor intensa de quem só obteve,
da Eternidade,
o silêncio, o espanto
e a imóvel presença. )
II
BALADA PARA HELENA
a Alexei Bueno
No cômodo onde Menelau vivera
bateram.
Nada. Helena estava morta...
ALEXEI BUENO
Secou, como teus olhos puros,
o meu olhar tão nulo e vasto,
mas tão cheio de amor e rastros
de tantos caminhos escuros;
e esta dor escondida, muda,
toda esta insuportável chaga,
que dói com a dor de tantas almas,
não foi maior que a de tua fuga;
e amavas ( Eu bem sei o quanto ):
sem olhos, sem desejos brandos,
pois para o amor não há descansos,
e o mundo, então, sentiu teu pranto;
da mesma forma que o amor consome
com dor, choro e desejo, o mundo –
e o mundo todo ( Eu presumo ) –
se consumiu em ódio enorme;
ódio feito todo de amor
para que o amor de amor consagre
a vitória do amor tão agre
com tanta ausência em seu redor.
E eis-me aqui ante ao teu defunto...
essa ânfora vazia foi
o motivo de tantos sóis
mudados em clamor e escuro;
eis-me aqui todo fogo e canto;
canto fúnebre, chama vasta;
óbulo gasto em último ato,
mas tão disperso e vago e estranho;
eis-me aqui todo voz e espanto;
eis-me todo rancor e medo
( mais morto que teu corpo inteiro );
eis-me aqui todo esquecimento:
eis-me para louvar-te cego:
como os que dantes te louvaram,
como os que outrora te amaram,
antes que fosses estas cinzas;
eis-me ante à essa triste sorte
que te conservará na história
e, numa incerta hora fria,
como o Hades que todo chora,
me imprime contra toda morte.
III
BALADA PARA BEATRIZ
ao Jorge de Lima, dantesco.
La lumière profonde besoin pour paraître
d’une rouée et craquante de nuit.
C’est d’um bois ténébreux que la flamme s’exalte.
Il faut à la parole même une matière,
un inerte rivage au delà de tout chant.
Il te faudra franchir la mort pour que tu vives.
La plus purê est um sang rèpandu.
YVES BONNEFOY
( Que doces olhos têm as coisas revividas
através desta dor que o amor nos esculpiu
quando nos sobreveio a luz tão pressentida,
confundida entre as pedras, entre os rios; os rios
deste início de claro assombro encarcerado
entre as terras e o mar e o céu e a Imensidade;
e através desta luz que nasceu em meu dia
vejo-te novamente triste e verdadeira
onde este amor inteiro dorme sem medida:
o mesmo amor que move céus... que move estrelas. )
IV
BALADA PARA CECÍLIA
à Danielle Pinheiro
Convém-nos que esta noite seja clara
ou simplesmente a última, sabendo
que todo o mundo dorme e as nossas almas
são uma chaga a mais que o mundo abriu...
Convém-nos que esta noite seja pura
como as pedras e os ventos, tão contrários,
mas tão repletos desta mesma essência,
e tão suaves como estes silêncios...
E enfim, toda esta noite seja breve
como o instante em que, mortos, renascemos
para todas as coisas que buscávamos:
as nossas mãos sem rumo e sem mistérios...
nossos espelhos sem nenhuma face...
nossa boca calada com um beijo.
V
BALADA PARA LUCI
à Lucifrance Castro, no dia em que noivamos,
Candeias, 26 de julho de 2004.
( Eu )
Há vastidões de nuvens calmas no teu rosto
e o teu olhar levou contigo o meu sorriso...
( Tu )
Estes olhos que levo são como um sol-posto
a se esconder na noite pura deste riso...
( Eu )
Porém, uma lembrança antiga deste sonho
conservou este amor tão triste, sem teu beijo...
( Tu )
Esta lembrança antiga é um poço onde ponho
todo o tostão primeiro para o teu desejo...
( Eu )
Olharás, então, para este rosto que levo...?
Que encontrei certa manhã numa cama fria...?
( Tu )
Saberás que este rosto e este amor que não nego,
e esta manhã tão leve – esta manhã tardia –
tem a beleza do Encanto com o qual te elevo.
VI
BALADA PARA ALICE
ou O FANTASMA DA TARDE LONGA
à memória de Alice Carneiro da Silva, minha avó.
Ah!... mergulhaste os teus olhos na tarde fria
ALEXEI BUENO
Secou, como teus olhos puros,
o meu olhar tão nulo e vasto,
mas tão cheio de amor e rastros
de tantos caminhos escuros;
e esta dor escondida, muda,
toda esta insuportável chaga,
que dói com a dor de tantas almas,
não foi maior que a de tua fuga;
e amavas ( Eu bem sei o quanto ):
sem olhos, sem desejos brandos,
pois para o amor não há descansos,
e o mundo, então, sentiu teu pranto;
da mesma forma que o amor consome
com dor, choro e desejo, o mundo –
e o mundo todo ( Eu presumo ) –
se consumiu em ódio enorme;
ódio feito todo de amor
para que o amor de amor consagre
a vitória do amor tão agre
com tanta ausência em seu redor.
E eis-me aqui ante ao teu defunto...
essa ânfora vazia foi
o motivo de tantos sóis
mudados em clamor e escuro;
eis-me aqui todo fogo e canto;
canto fúnebre, chama vasta;
óbulo gasto em último ato,
mas tão disperso e vago e estranho;
eis-me aqui todo voz e espanto;
eis-me todo rancor e medo
( mais morto que teu corpo inteiro );
eis-me aqui todo esquecimento:
eis-me para louvar-te cego:
como os que dantes te louvaram,
como os que outrora te amaram,
antes que fosses estas cinzas;
eis-me ante à essa triste sorte
que te conservará na história
e, numa incerta hora fria,
como o Hades que todo chora,
me imprime contra toda morte.
III
BALADA PARA BEATRIZ
ao Jorge de Lima, dantesco.
La lumière profonde besoin pour paraître
d’une rouée et craquante de nuit.
C’est d’um bois ténébreux que la flamme s’exalte.
Il faut à la parole même une matière,
un inerte rivage au delà de tout chant.
Il te faudra franchir la mort pour que tu vives.
La plus purê est um sang rèpandu.
YVES BONNEFOY
( Que doces olhos têm as coisas revividas
através desta dor que o amor nos esculpiu
quando nos sobreveio a luz tão pressentida,
confundida entre as pedras, entre os rios; os rios
deste início de claro assombro encarcerado
entre as terras e o mar e o céu e a Imensidade;
e através desta luz que nasceu em meu dia
vejo-te novamente triste e verdadeira
onde este amor inteiro dorme sem medida:
o mesmo amor que move céus... que move estrelas. )
IV
BALADA PARA CECÍLIA
à Danielle Pinheiro
Convém-nos que esta noite seja clara
ou simplesmente a última, sabendo
que todo o mundo dorme e as nossas almas
são uma chaga a mais que o mundo abriu...
Convém-nos que esta noite seja pura
como as pedras e os ventos, tão contrários,
mas tão repletos desta mesma essência,
e tão suaves como estes silêncios...
E enfim, toda esta noite seja breve
como o instante em que, mortos, renascemos
para todas as coisas que buscávamos:
as nossas mãos sem rumo e sem mistérios...
nossos espelhos sem nenhuma face...
nossa boca calada com um beijo.
V
BALADA PARA LUCI
à Lucifrance Castro, no dia em que noivamos,
Candeias, 26 de julho de 2004.
( Eu )
Há vastidões de nuvens calmas no teu rosto
e o teu olhar levou contigo o meu sorriso...
( Tu )
Estes olhos que levo são como um sol-posto
a se esconder na noite pura deste riso...
( Eu )
Porém, uma lembrança antiga deste sonho
conservou este amor tão triste, sem teu beijo...
( Tu )
Esta lembrança antiga é um poço onde ponho
todo o tostão primeiro para o teu desejo...
( Eu )
Olharás, então, para este rosto que levo...?
Que encontrei certa manhã numa cama fria...?
( Tu )
Saberás que este rosto e este amor que não nego,
e esta manhã tão leve – esta manhã tardia –
tem a beleza do Encanto com o qual te elevo.
VI
BALADA PARA ALICE
ou O FANTASMA DA TARDE LONGA
à memória de Alice Carneiro da Silva, minha avó.
Ah!... mergulhaste os teus olhos na tarde fria
que, como um manto fresco de febre e agonia,
emoldurava teu rosto queimado e leve;
e eras branca como uma alma de pura neve;
eras como tua própria alma exposta ao vento
quando os teus puros olhos imitavam o lento...
( eles mesmos, teus olhos dentro da fria tarde )
imitavam aquele azul profundo que arde
dentro daquela tarde que em mim não morre;
imitavam o lento azul... o azul que escorredo infinito mais longo;
longo e menos dito;dito e menos maldito quando estou contido
dentro de uma lembrança sempre esfacelada
em um passado triste de presença alada;
presença que, de dentro de mim, voa como uma sombra tão luminosa:
o fantasma de uma tarde longa que toda noite em mim renasce.
VII
BALADA PARA ENONE
a Godofredo Filho, em seu 1º centenário.
O Amor com que nasci trouxe-me todo encanto
com o qual adormeci para esta triste sorte...
E Eu despertei tão calmo e a desejar a morte,
mas eis-me aqui, na fria jaula deste pranto.
Daí, Eu me inclinei neste meu chão: tão frio,
tão só, tão nulo – sombra de meu sonho amargo –
a aceitar a estranha vontade deste encargo
de estar aqui e, por vontade, ser vazio.
E era teu rosto, sim, que em meio à sombra e o vento
– pois, por amor, sou deste chão e deste momento –
o amor eternizou na angústia do teu beijo.
Mas este amor me faz ficar aqui, tristonho,
seguindo esta saudade que me corta o sonho
e Eu permaneço ainda à porta do teu desejo.
VIII
BALADA PARA A MEDUSA
de um Trompe L’œil à Tolentino
sob a forma de um possível soneto inglês
a Jessé de Almeida Primo.
...nosso vago amor voltando à origem...
BRUNO TOLENTINO
Nosso amor, como tudo neste mundo,
é um risco, um faz-de-conta... uma impressão
sem sentido, uma tola profusão
do imperfeito e do imprevisto, do fundo
VII
BALADA PARA ENONE
a Godofredo Filho, em seu 1º centenário.
O Amor com que nasci trouxe-me todo encanto
com o qual adormeci para esta triste sorte...
E Eu despertei tão calmo e a desejar a morte,
mas eis-me aqui, na fria jaula deste pranto.
Daí, Eu me inclinei neste meu chão: tão frio,
tão só, tão nulo – sombra de meu sonho amargo –
a aceitar a estranha vontade deste encargo
de estar aqui e, por vontade, ser vazio.
E era teu rosto, sim, que em meio à sombra e o vento
– pois, por amor, sou deste chão e deste momento –
o amor eternizou na angústia do teu beijo.
Mas este amor me faz ficar aqui, tristonho,
seguindo esta saudade que me corta o sonho
e Eu permaneço ainda à porta do teu desejo.
VIII
BALADA PARA A MEDUSA
de um Trompe L’œil à Tolentino
sob a forma de um possível soneto inglês
a Jessé de Almeida Primo.
...nosso vago amor voltando à origem...
BRUNO TOLENTINO
Nosso amor, como tudo neste mundo,
é um risco, um faz-de-conta... uma impressão
sem sentido, uma tola profusão
do imperfeito e do imprevisto, do fundo
escuro e sem sentido do desejo.
Nossa dor como tudo nesta vida
é um desespero – pedra confundida
com a ânsia alucinada do teu beijo – ,
uma alucinação – olhar desfeito
ante à sombra, à luz, à escuridão –
e tantos mais contrários desta união
do feito, do perfeito e do refeito:
e, assim, se somam tudo quanto é triste
sem saber qual de nós menos existe.
Improvisado após a leitura de A Balada do Cárcere de Bruno Tolentino.
Feira de Santana, 12 de julho de 2004.
Nossa dor como tudo nesta vida
é um desespero – pedra confundida
com a ânsia alucinada do teu beijo – ,
uma alucinação – olhar desfeito
ante à sombra, à luz, à escuridão –
e tantos mais contrários desta união
do feito, do perfeito e do refeito:
e, assim, se somam tudo quanto é triste
sem saber qual de nós menos existe.
Improvisado após a leitura de A Balada do Cárcere de Bruno Tolentino.
Feira de Santana, 12 de julho de 2004.
IX
BALADA PARA ADRIANA
a Alberto da Cunha Melo.
Levamos fogo, não esponjas,
ao trono sujo de excremento
disputando o mesmo vazio
de uma estrela no firmamento;
ALBERTO DA CUNHA MELO
Eu não busquei esta agonia,
este poema de distâncias
pelo silêncio inatingíveis,
esta ausência, esta inconstância...
Mas para cada sofrimento
há uma estrela no firmamento.
( Eu sei que atrás do teu olhar
havia um outro olhar perdido
em meio ao Céu e o teu lembrar... )
E era essa luz que tu seguias
o olhar do amor com que te via.
X
BALADA PARA SOFIA
ou A OBSCURA IMPACIÊNCIA
( UMA ELEGIA CRISTALINA EM MEMÓRIA DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN )
Porque toda paixão anda perto
dessa obscura impaciência...
BRUNO TOLENTINO
Tua memória há sem que houvesse...
FERNANDO PESSOA
Sofia faz-refaz, e subindo ao cristal,
em cristais ( os dela, de luz marinha ).
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
( Se
ao menos em mim tua dissolução fosse incerta, não perderia teu nome nesses versos frios tão cheios de dúvidas, tão cheios de sombras. E a escuridão desceu incólume sobre o sangrar sem fim das tardes sólidas, e nos envolveu de imortal tristeza; e a escuridão se fez memória, e se reescreveu em papel e sopro, na tentativa vã de que a vida nos afirmasse de algum modo e com maior verdade.) Se ao menos em mim tua dissolução fosse incerta, talvez voltássemos a nós mesmos: Tu, à casa onde o possível se imaginara maior... Eu, aos abismos sucessivos que a dor abraça... e, em Nós, bem fundo, e mais urgente, o sono de todas as lembranças, ou das intermináveis despedidas; coisas que, um dia, d’outro lado de tudo, serão moldura do Perfeito...
Se
ao menos em mim, e somente em mim, se possível fosse, a tua dissolução nos parecesse incerta, Eu poderia ter de ti a contínua feitura do teu verso e de teu Ser agora elevado e não menos puro, a qual Cabral cantou com calma... com calma crua e sólida de cristal de luz marinha; o pernambucano duro, entretanto, em versos derramados de rochas fluidas nos enganara; assim, perdi teu Ser e tua Morte para esta Eternidade que incomoda, pois foste rasteira,... porém, não lineada – como ondas na praia escura – para a Noite de amanhãs que nascem inversas e os sonhos têm muito mais de mistério que de sonhos –, ondas em praia nua... que de tanto ir e vir de feitura em feitura tinhas tanto em ti de Silêncio e de mar quanto o que há em mim de areia e de Saudade
pois
de todos os cantos do mundo
amo com um amor mais forte e mais profundo
aquela praia extasiada e nua
onde me uni ao mar, ao vento, à lua
e à tua lembrança, onde o perfeito é não quebrar aquela imaginária linha
de teu rosto que ainda procuro...
Mas,
se ao menos em mim
tua dissolução
parecesse
incerta,
talvez tentasse aceitar,
com firmeza que não tenho,
no rosto, as marcas do porvir
que trago agora,
que têm tudo de real,... que têm tudo
de concreto.
XI
BALADA PARA INÊS
ou AO TEU LADO SEM SENTIR NEM SABER...
à Lucifrance Castro, meu amor.
...um frio suor me recobre, um frêmito do corpo
se apodera, mais verde do que as ervas eu fico;
que estou a um passo da morte, parece...
mas...
SAFO DE LESBOS
1
– Verás, amada minha,
tuas mãos terminadas em segredo
sobre um peito de sopros findos...
e então sentirás dentro de ti uma completude;
como as folhas que, mortas,
deixam nua aquela essência de vida
que as árvores nos trazem sobre os galhos:
secos e escuros, como a carne que à terra volta,
pois é da terra a carne, como do vento
a nuvem e sua possível imagem.
Verás, também,
os teus olhos fechados em repouso
dentro da face fria dos segredos mortos...
e então verás na noite escura dos desejos sólidos
velar teu sono, com mil olhos claros,
o coração que sofre de amor e de saudade e,
que um dia, em tarde clara, disse-te em segredo:
“Amo-te!”, como ama em segredo, ao sentimento, a Sabedoria;
pois é do mar o cais e a imensidão
que amedronta e também encanta.
Verás, nesse momento, amada minha...
quando fechada sobre um leito de sombras duras,
combinadas: a dor, a ausência e a distância,
na noite imensa de teu coração tão quieto,
o meu Amor refeito em sonho leve;
e toda a realidade te parecerá vazia,
como um Céu que um dia olhaste sem ternura e
sem verdade:
então, pegar-te-ei pela mão calada
e, entre os primeiros raios da eterna alvorada,
hei de ti desfraldar de toda ilusão.
2
TRÊS QUADRAS POPULARES
AO GOSTO CLÁSSICO DE PIEGUICE ULTRA-ROMÂNTICA
à Lucifrance Castro, minha noiva,
quando, de meus versos, sentir ciúmes.
Diante da tua beleza e do silêncio de tua alma,
a minha alma fica feito uma criança
que folheasse inocentemente um livro de missa...
EURICO ALVES BOAVENTURA
I
Tens amor nesses cachos d’anjo
e nesses olhos de incerteza...
( Mas se pena não tens de mim,
por que me ofertas tal tristeza? )
....................................................................................................................................................
II
Mesmo morto hei-de estar ao lado teu,
e sem sequer saber, sentir ou ser,
teus olhos tristes, calmos, hão-de ver,
em noite escura, os muitos olhos meus.
.....................................................................................................................................................
III
Hei de sentir teu rosto sobre a pele fria;
então, quando apagar-se o lume desse dia,
quando teu rosto meigo perder sua alegria,
verei um bem na morte e na sua agonia.
3
SERENATA:
à Lucifrance Castro, minha noiva...
quando de meus versos os ciúmes se extinguirem.
Virei-me sobre minha própria existência, e contemplei-a.
CECÍLIA MEIRELES
( Quero dizer-te uma palavra simples, uma palavra viva,
uma palavra muda,
a palavra: noite... para fazer-te uma canção
tão simples quanto o silêncio,
como teu nome. Quero dizer-te
uma palavra calma,
a palavra: vento... e nela transportar,
de leve,
teu desejo.
Quero
dizer-te uma
palavra fria; uma
palavra morta: a palavra
sono... e nela sonhar tua morte,
intacta... e adormecer de sobressalto
sobre essas distâncias –
entre o que sou
e o que contemplo. )
XII
BALADA PARA A MORTE
ou IMPROVISO HERÁLDICO
ANTE AS SOBRAS DO BANQUETE ILÚDICO
( em ocasião do 60º aniversário do poeta Antônio Brasileiro )
`a Fabiane Santana, aluna estimada e meiga lembrança de Aracy.
Talvez em outras paragens
do viver
se possa extirpar as feras.
E morrer.
ANTÔNIO BRASILEIRO
( Suavemente,
a noite nos envolve indecifrável...
fugindo de sua obrigação de negar-nos
a grande sombra desce,
mas todos se amontoam no
silêncio e no medo
de sermos tantos.
Amontoamo-nos
no indecifrável espaço do torpor
e parecemos um só homem espalhado pela escuridão imensa...
nessa sombra que somos
nos perdemos...
porém,
sobra nas retinas o que fomos
e presa à garganta
tudo
o que queríamos.
A noite...
sim, a noite...
a noite nos embrulhou com ódio,
e toda a noite enraivecida é a grande
verdade
que buscávamos,
uma deslavada verdade
que todos contam entre nós:
era dos nossos sonhos que ela vinha;
de nossa realidade ela se criava;
amadureceu em nosso egoísmo;
modificou-se por nossa angústia;
em nós...
em todos nós
espatifou-se,
neste momento que ainda corre:
e todos somos um
nesses pedaços de tantas coisas
únicas;
tantas vontades
a serem sempre as mesmas;
tantas fomes iguais
de tudo.
Esta noite nos uniu em nada...,
mastigou
o humano
que tínhamos engolido,
despojou-nos
neste leito de escuridão em que deitamos;
enraizou-nos
neste princípio de coisa alguma
impedido-nos
a aurora.
2.a
A noite está
inquieta
como um homem morto –
toda a noite
é um tumulto –
é toda um coração que bate e vai morrer e o sabe...
A noite
sorveu a paciência
destes banquetes; deu ao tempo
propósitos que não tinha;
a noite
deu propósitos a tudo:
à nossa morte,
ao nosso odor de morte,
à nossa inquietude de estar dentro
da
morte,
ao nosso esquecimento
de sermos
morte...
a noite
humanizou a terra superior dos cemitérios;
tornou fundamental
a nossa poesia dispersa;
apagou-nos
da manhã
que não
viria.
Hei de sentir teu rosto sobre a pele fria;
então, quando apagar-se o lume desse dia,
quando teu rosto meigo perder sua alegria,
verei um bem na morte e na sua agonia.
3
SERENATA:
à Lucifrance Castro, minha noiva...
quando de meus versos os ciúmes se extinguirem.
Virei-me sobre minha própria existência, e contemplei-a.
CECÍLIA MEIRELES
( Quero dizer-te uma palavra simples, uma palavra viva,
uma palavra muda,
a palavra: noite... para fazer-te uma canção
tão simples quanto o silêncio,
como teu nome. Quero dizer-te
uma palavra calma,
a palavra: vento... e nela transportar,
de leve,
teu desejo.
Quero
dizer-te uma
palavra fria; uma
palavra morta: a palavra
sono... e nela sonhar tua morte,
intacta... e adormecer de sobressalto
sobre essas distâncias –
entre o que sou
e o que contemplo. )
XII
BALADA PARA A MORTE
ou IMPROVISO HERÁLDICO
ANTE AS SOBRAS DO BANQUETE ILÚDICO
( em ocasião do 60º aniversário do poeta Antônio Brasileiro )
`a Fabiane Santana, aluna estimada e meiga lembrança de Aracy.
Talvez em outras paragens
do viver
se possa extirpar as feras.
E morrer.
ANTÔNIO BRASILEIRO
( Suavemente,
a noite nos envolve indecifrável...
fugindo de sua obrigação de negar-nos
a grande sombra desce,
mas todos se amontoam no
silêncio e no medo
de sermos tantos.
Amontoamo-nos
no indecifrável espaço do torpor
e parecemos um só homem espalhado pela escuridão imensa...
nessa sombra que somos
nos perdemos...
porém,
sobra nas retinas o que fomos
e presa à garganta
tudo
o que queríamos.
A noite...
sim, a noite...
a noite nos embrulhou com ódio,
e toda a noite enraivecida é a grande
verdade
que buscávamos,
uma deslavada verdade
que todos contam entre nós:
era dos nossos sonhos que ela vinha;
de nossa realidade ela se criava;
amadureceu em nosso egoísmo;
modificou-se por nossa angústia;
em nós...
em todos nós
espatifou-se,
neste momento que ainda corre:
e todos somos um
nesses pedaços de tantas coisas
únicas;
tantas vontades
a serem sempre as mesmas;
tantas fomes iguais
de tudo.
Esta noite nos uniu em nada...,
mastigou
o humano
que tínhamos engolido,
despojou-nos
neste leito de escuridão em que deitamos;
enraizou-nos
neste princípio de coisa alguma
impedido-nos
a aurora.
2.a
A noite está
inquieta
como um homem morto –
toda a noite
é um tumulto –
é toda um coração que bate e vai morrer e o sabe...
A noite
sorveu a paciência
destes banquetes; deu ao tempo
propósitos que não tinha;
a noite
deu propósitos a tudo:
à nossa morte,
ao nosso odor de morte,
à nossa inquietude de estar dentro
da
morte,
ao nosso esquecimento
de sermos
morte...
a noite
humanizou a terra superior dos cemitérios;
tornou fundamental
a nossa poesia dispersa;
apagou-nos
da manhã
que não
viria.
2.b
A noite
deu-nos um mistério em nosso nascimento;
e nenhum dia será mais claro do que esta noite
e os dias que virão de dentro dela.
A noite assombrosa de nosso desejo
é toda uma mística certeza que nunca tivemos.
– Existimos
dentro desta noite como
nunca existimos
antes. )
3
UM APÓLOGO:
“ Ó amigos, ó coisas inexatas...
filhos das feras que moravam em nós:
esta noite tudo ficará retido sob o chão
destas mentiras tão puras;
a manhã se foi sem ternura
e sem a simplicidade
que os amanheceres
nos trazem.
Ó irmãos,
crianças maliciosas que fomos,
a manhã se foi escura
porque nunca verdadeiramente nos houve
uma manhã mais clara.
A perfeição,
irmãos,
reside nesta escuridão que este não-dia nos trouxe.
Nada vimos,
porque nada queríamos ver.
Nada evocamos,
pois sempre fomos esta mesma ausência.
Nada construímos sobre esta imensa mão ruidosa,
porque toda a nossa poesia foi um truque.
E nenhuma lágrima rolará,
pois nunca existiu em nós a alegria
para que, então, experimentemos a tristeza
de sermos tantos e tão sozinhos.
Nada, amigos...
nada...
nada será,
porque nada foi.
Tudo
apenas é:
e tudo é noite...
tudo é simples,
vasta e absoluta noite.
Somente
noite.”
Candeias, junho/agosto de 2004.