Vinicius de Moraes, em Paris, 1976: "Vinícius sempre se encontrou na antinomia entre a paixão e o desespero, entre o sexo e a morte, a culpa e o prazer; e mesmo entre a vida de poeta e compositor". |
VINICIUS DE MORAES:
POETA DE PAIXÃO E DESESPERO...
para Marcos Pérsico e Bernardo Linhares, este legado...
Mon âme
éternelle,
Observe
ton voeu
Malgré la
nuit seule
Et le jour en feu.
ARTHUR RIMBAUD
Gramaticalmente, eu aprendi que diminutivos servem para, basicamente, duas coisas: identificar algo de pequeno porte e demonstrar, por extensão, carinho que temos por certas coisas. Em ambos os casos, parece-me que o diminutivo acaba em equívoco em se tratando da pessoa e da poesia de Vinícius de Moraes.
A verdade, é que o poeta carioca passou a vida inteira
a carregar tal alcunha: “poetinha”... quase como a dizer que é alguém de quem
se gosta, mas sem grandes seriedades. Desta maneira, a grande poesia de nosso
Modernismo caberia apenas à tríade formada pelo existencialismo prosaico de Carlos
Drummond, pelo lirismo neobarroquista de Bandeira e pelos mineralizantes e
politizados versos de João Cabral de Melo Neto. Na verdade, acontecera com
Vinícius o mesmo que aconteceria com toda uma geração a que hoje chamamos de
Pré-modernista que, não tenho como enquadrar Vinícius e seus poemas dentro
daquilo que consideravam o verdadeiro modernismo, o cânone acadêmico,
praticamente, jogou para segundo plano a sua literatura, construída a partir de
uma trajetória singularíssima, que vai do uso das formas e das influências mais
tradicionais da poesia à carreira de compositor popular. A isso também se
aplique fenômenos como em Cecília Meireles, Jorge de Lima, Mário Quintana e os
mais recentes casos: Bruno Tolentino e Alberto da Cunha Melo.
No entanto, Vinicius de Moraes foi um poeta que sempre mesclou a intensidade
das paixões com seus conflitos interiores – e isso serve também para o homem Vinicius de Moraes. Como os
antigos românticos que sempre admirou, Vinicius poetizou sua própria vida
interior; era o poeta que refletia em seus versos sua vida pessoal atormentada
e sujeita a freqüentes períodos de depressão e tristeza. E tem mais: Vinicius
de Moraes, à maneira de poetas como Drummond e Cabral se dá ao luxo de possuir
muitas fases distintas desde seus primeiro livro O caminho para a distância (1933) aos sonetos que lhe deram fama,
prestígio e, contraditoriamente, desrespeito por parte dos mais “vanguardizados”.
Essas fases trazem influências igualmente diversas e acentuam traços que vão do
catolicismo atormentado à poesia leve e sensual de poemas como A balada das meninas de bicicleta. Podemos
ver em Vinícius tanto a influência de Arthur Rimbaud, na primeira fase de
extração simbolista, como a de Camões – pasmem – na fase dita “mais leve”,
onde, como dirá Ferreira Gullar, Vinícius de Moraes se converte em Vinicius de
Moraes.
Uma coisa é facto
em todas essas fases: Vinícius sempre se encontrou na antinomia entre a paixão
e o desespero, entre o sexo e a morte, a culpa e o prazer; e mesmo entre a vida
de poeta e compositor (esta segunda muito confundida com sua obra poética;
outro equívoco muito comum e imperdoável com relação à obra de Vinicius de
Moraes). Sem tal contradição, torna-se impossível compreender a dimensão que
sua obra terá sobre toda a história de nossa literatura, muito menos a
profundidade da paixão pela qual o poeta é conhecido e reconhecido até hoje. Um
bom exemplo disto está naquele que se tornará seu poema mais célebre, o Soneto de fidelidade, onde a paixão
descrita em versos como:
De tudo ao meu amor serei
atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento...
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento...
mescla-se com o desespero apresentado em seu primeiro
terceto:
E assim, quando mais tarde me
procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama...
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama...
Vinicius, resumidamente, foi
isso: um poeta de paixão e desespero
onde a vida é, ao mesmo tempo, apreciação e sucessão de decepções. Para quem
escuta os versos e os acordes de uma Garota
de Ipanema ou lê e declama um poema como Feijoada à minha moda, não imaginam Vinicius de Moraes como um homem
a quem a vida e o mundo incomodavam tanto ao ponto de ambos viverem em completo
descompasso. Mas tudo em sua poesia, e para se perceber isso basta-nos um olhar
um pouquinho mais atento, encaminhar-se-á e se findará nesta bipolaridade tão
barroca quão psicológica. A influência de Arthur Rimbaud em versos como os
presentes em Une saison en enfer lhe
deram os primeiros empurrões para essa situação e seus primeiros versos só
confirmam isso. Daí em diante, a paixão e o desespero, a sensualidade e a tristeza...
serão dicotomias que o acompanharão para o resto de sua vida de homem e poeta:
ao poeta, tão sozinho/tudo pouco se lhe importa/e por muito delicado/faz um
carinho na morte (...)//A morte sorri feliz/como quem canta vitória/ao ver o
poeta tão triste/tão fraco tão provisório... escreveria ele em Romance da amada e da morte.
Os nove casamentos aos quais se
entregou, é outra prova de que a paixão e o desespero foram além de mera
caracterização e estilismo poético: escravo da paixão, Vinicius de Moraes amava
a condição de se apaixonar e a poesia ganhou muitíssimo com isso... o mesmo,
infelizmente, eu não possa dizer de suas esposas. Mesmo nas relações mais
furtivas, como a que viveu com a poetisa Hilda Hilst, a mínima idéia de tristeza
era-lhe insuportável, até o amor acabar e a ela o poeta entregar-se
profundamente. E assim, o lado obscuro da poesia de Vinicius de Moraes sempre
aparecia, seja em circunstâncias desculpáveis, como na morte de seu pai, que
lhe rendeu o belíssimo Elegia na morte de
Clodoaldo Pereira da Silva Moraes:
A morte chegou pelo interurbano
em longas espirais metálicas.
Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva.
De repente não tinha pai.
No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança
Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância
Boiaram do mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino
Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna
Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta
De Augusto geralmente procrastinava a tarde.
Era belo esperar-te, cidadão. O bondinho
Rangia nos trilhos a muitas praias de distância
Dizíamos: "E-vem meu pai!" Quando a curva
Se acendia de luzes semoventes, ah, corríamos
Corríamos ao teu encontro. A grande coisa era chegar antes
Mas ser marraio em teus braços, sentir por último
Os doces espinhos da tua barba.
Trazias de então uma expressão indizível de fidelidade e paciência
Teu rosto tinha os sulcos fundamentais da doçura
De quem se deixou ser. Teus ombros possantes
Se curvavam como ao peso da enorme poesia
Que não realizaste. O barbante cortava teus dedos
Pesados de mil embrulhos: carne, pão, utensílios
Para o cotidiano (e freqüentemente o binóculo
Que vivias comprando e com que te deixavas horas inteiras
Mirando o mar). Dize-me, meu pai
Que viste tantos anos através do teu óculo-de-alcance
Que nunca revelaste a ninguém?
Vencias o percurso entre a amendoeira e a casa como o atleta exausto no último lance da maratona.
Te grimpávamos. Eras penca de filho. Jamais
Uma palavra dura, um rosnar paterno. Entravas a casa humilde
A um gesto do mar. A noite se fechava
Sobre o grupo familial como uma grande porta espessa.
Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva.
De repente não tinha pai.
No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança
Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância
Boiaram do mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino
Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna
Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta
De Augusto geralmente procrastinava a tarde.
Era belo esperar-te, cidadão. O bondinho
Rangia nos trilhos a muitas praias de distância
Dizíamos: "E-vem meu pai!" Quando a curva
Se acendia de luzes semoventes, ah, corríamos
Corríamos ao teu encontro. A grande coisa era chegar antes
Mas ser marraio em teus braços, sentir por último
Os doces espinhos da tua barba.
Trazias de então uma expressão indizível de fidelidade e paciência
Teu rosto tinha os sulcos fundamentais da doçura
De quem se deixou ser. Teus ombros possantes
Se curvavam como ao peso da enorme poesia
Que não realizaste. O barbante cortava teus dedos
Pesados de mil embrulhos: carne, pão, utensílios
Para o cotidiano (e freqüentemente o binóculo
Que vivias comprando e com que te deixavas horas inteiras
Mirando o mar). Dize-me, meu pai
Que viste tantos anos através do teu óculo-de-alcance
Que nunca revelaste a ninguém?
Vencias o percurso entre a amendoeira e a casa como o atleta exausto no último lance da maratona.
Te grimpávamos. Eras penca de filho. Jamais
Uma palavra dura, um rosnar paterno. Entravas a casa humilde
A um gesto do mar. A noite se fechava
Sobre o grupo familial como uma grande porta espessa.
(...)
ou no encantador, sensual e triste
Soneto de luz e treva, dedicado à baiana
Gesse Gessy, sua sétima esposa; um exemplo magnífico de como o côncavo e o convexo de um mesmo poeta
pode aparecer grandiosamente em uma único poema:
Ela tem uma graça de pantera
no andar bem comportado de menina
no molejo em que vem sempre se espera
que de repente ela lhe salte em cima
Mas súbito renega a bela e a fera
prende o cabelo, vai para a cozinha
e de um ovo estrelado na panela
ela com clara e gema faz o dia
Ela é de Capricórnio, eu sou de Libra
eu sou o Oxalá velho, ela é Inhansã
a mim me enerva o ardor com que ela vibra
E que a motiva desde de manhã.
-- Como é que pode, digo-me com espanto
a luz e a treva se quererem tanto...
no andar bem comportado de menina
no molejo em que vem sempre se espera
que de repente ela lhe salte em cima
Mas súbito renega a bela e a fera
prende o cabelo, vai para a cozinha
e de um ovo estrelado na panela
ela com clara e gema faz o dia
Ela é de Capricórnio, eu sou de Libra
eu sou o Oxalá velho, ela é Inhansã
a mim me enerva o ardor com que ela vibra
E que a motiva desde de manhã.
-- Como é que pode, digo-me com espanto
a luz e a treva se quererem tanto...
Vinicius de Moraes foi um reabilitador do
espírito romântico de entrega total ao sentimento e todo o desespero que isso
pode trazer a um homem, seja ele poeta ou não, numa época em que isso consistia
em um verdadeiro pecado. E mais, também foi um reabilitador do soneto, uma
forma tão desprezada pelos modernistas de 1922 e tão rebuscado e retalhado
pelos poetas da geração de 30, mas que ganhou na simplicidade e verdade expostas
por Vinicius um lugar ao sol em nossa literatura do qual não lograva desde a Belle Époque e seus parnasianos.
No ano em que nos lembramos do centenário de sua
morte, mas que é também ano de Copa das Confederações no Brasil, talvez o
próximo dia 9 de julho passe tão despercebido como qualquer coisa de real
grandeza pode passar despercebida em um país em que se gastou mais em um
estádio de futebol do que em educação em séculos. Porém, àqueles poucos que
sabem reconhecer a importância de alguém como Vinicius de Moraes, só resta
relembrar os versos de seu enigmático Poema
de Natal e dizer: Ave, poeta! Poetinha, camarada... :
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Feira de Santana, 09 de junho de 2013...
Um comentário:
Muito massa! *.*
Adoro esse:
O VELHO E A FLOR
Por céus e mares eu andei,
Vi um poeta e vi um rei
Na esperança de saber
O que é o amor.
Ninguém sabia me dizer,
Eu já queria até morrer
Quando um velhinho
Com uma flor assim falou:
O amor é o carinho,
É o espinho que não se vê em cada flor.
É a vida quando
Chega sangrando aberta
em pétalas de amor.
V. M.
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