Ilustração de W.J. Solha |
Meus Alunos do 2º ano, turma B, do Ensino Médio, perguntam-me sobre
Karl Marx e sua famosa frase: “A religião... é o ópio do povo” – Die Religion... Sie ist das Opium des
Volkes", no original –, mas, antes de quaisquer deliberações (como em
qualquer discutição séria), faz-se
necessário entender a pergunta em seu contexto, e não solta, como uma pedra
arremessada na lagoa do conhecimento.
A frase está na Crítica da filosofia do
direito de Hegel, obra escrita em 1843 e, publicada em 1844, no
jornal Deutsch-Französischen Jahrbücher, que Marx editava com Arnold
Roge. Em seu contexto imediato lê-se: "É este o fundamento da crítica
irreligiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a
religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não
se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o Homem não é um ser abstrato,
acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a
sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência
invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a
teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma
popular, o seu point d'honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a
sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de
justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a
essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra
a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual
é a religião. A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da
miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o
suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de
situações sem alma. A religião é o ópio do povo [grifo meu]. A
abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a
exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a
respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que
precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica
do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola. A crítica arrancou as
flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem os suporte sem fantasias
ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote. A crítica
da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, atue e configure a
sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão,
a fim de que ele gire em torno de si mesmo e, assim, em volta do seu verdadeiro
sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele
não circula em tomo de si mesmo. Conseqüentemente, a tarefa da história,
depois que o outro mundo da verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade
deste mundo. A tarefa imediatada da filosofia, que está a
serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas
não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A
crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, a crítica da
religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da
política."
Todavia,
os pressupostos de Marx, que não são totalmente dele, mas catados aqui e ali no
pensamente de Kant, Hume e Comte, só pode partir do pressuposto de um homem
fora de um contexto espiritual e metafísico; em outras palavras, apenas negando
que o homem possui uma parte para além do material ou que não necessita de tal
caracterização, o pensamento de Marx teria lógica. Mas o homem é grande demais,
em sua racionalidade, para não conceber algo mesmo fora dela, ou meramente
materialista, como quer Marx, seus mestre diretos como Comte, e seus prosélitos
mais hodiernos como Foucault e Derrida.
Neste
sentido, não é o pensamento religioso, mas o ateísmo que é, meramente, um
“problema de consciência”, muito mais que, necessariamente, uma formulação
racional; é um aspecto trágico da essência humana – e, nesse sentido, sua maior
tragédia –, fruto colhido diretamente da amargura, da culpa, da impossibilidade
de aceitação e do desespero; sintomas muito comuns desta estranha doença do
espírito que consiste em negar aquilo que nos completa, que nos livra de todos
os abismos, de toda dor e das impossibilidades que nos trazem o vazio. De
Robert Burton, passando por Kierkegaard, e, culminando, em Constantin Noica e
René Girard, essa enfermidade, e todo desespero por ela causado, é um prenúncio
da morte em vida; uma mentira romantizada que faz com que os homens vivam,
realmente, do ilusório, ou seja, do desejo por aquilo que deseja seu
semelhante; ou pior: de desejar, no impossível, o inalcançável.
Dessa
forma, valeram-se, ao longo de séculos, todo tipo de idéia a buscar, como
princípio, a negação do fato de que o homem é a mais excelsa das criaturas, o
mais nobre de todos os seres. Negação que não me causa nenhum espanto, pois a
substituição do Criador por outro deus menor e enganoso (e nisso o pensamento
de Marx e sua semente têm se dedicado ao longo de mais de um século), a se
valer das graças deste mesmo Criador desprezado, é o ponto de partida de todo
paganismo e de toda ideologia ateísta; até porque, a visão grandiosa do homem
não é fruto do Humanismo, ou do Iluminismo, muito menos do Comunismo ou de
qualquer outra ideologia de nosso mundinho politicamente correto (se,
realmente, existe algo de bom no Socialismo, por exemplo, é porque foi furtado
do pensamento cristão).
Sobre
Marx, por exemplo, e seu legado, Eric Voegelin, em seu História das
Idéias Políticas – com a ajuda da tradução de meu amigo Elpídio
Fonseca –, avisa-nos sobre este apocalipse humano, ao afirmar que, “na
raiz da idéia marxista, encontramos a doença espiritual, a revolta gnóstica”,
por mais que não se diga muito a seu respeito; doença que mostra o que já
observamos no caso de Comte e suas características, que, a seu turno, pertencem
ao padrão mais amplo da “doença cientificista e anti-religiosa”. Para Voegelin,
a alma de Marx está demoniacamente fechada à realidade transcendental, não
conseguindo se desprender das dificuldades, retornando à liberdade do espírito
e o ativismo gnóstico, graças à sua impotência espiritual, é a única saída que
lhe resta. Advém daí, como afirmará Voegelin, a combinação característica de
“impotência espiritual com o desejo mundano de poder”, acarretando “in
a grandiose mysticism of Paracletic existence”. Eric
Voegelin, então, sentencia: “and again we see the conflict with reason,
almost literally in the same form as in Comte, in the dictatorial prohibition
of metaphysical questions concerning the matrix of the universe, questions that
might disturb the magic creation of a new world behind the prison walls of revolt”.
Marx, à maneira de
Comte, não permite uma discussão racional de seus princípios – ou se é marxista
ou se se põe em silêncio.
O
que sobra disso tudo é a mera correlação entre impotência espiritual e
anti-racionalíssimo, ou, melhor dizendo, não se pode negar Deus e conservar a
razão. Ora, se não há uma metafísica como Comte e Marx queriam que pensássemos,
então, na há coisa nenhuma, porque tudo que nos rodeia é metafísica antes de
ser qualquer coisa. E se há um Socialismo, um Antropocentrismo, ou coisa
parecida, em sua verdade e plenitude, estes só podem advir do fato de o homem
aceitar-se como uma criação do Divino, a mais poderosa obra de Deus, a
maravilha entre as maravilhas da Criação. E mesmo que sejamos pó, resquício de
estrelas ou coisa semelhante, como querem alguns, ainda assim somos “pó
levantado” (como dissera Pe. Antônio Vieira) da ansiedade de si mesmo e do
desejo de retornar ao seu Princípio.
Negar
tal coisa é transformar-se num autômato, em uma máquina ou um mero gorila morto
no Congo a quem idiotas sem esperança choram como se fossem por seus entes mais
queridos; é não dar sentido nenhum a sua vida; negar isso é negar a verdadeira
natureza humana, e, pela melancolia e pelo desespero, condenar-se, vivo, a um
inferno de incertezas através de um falso humo universalis,
que não possui outra função senão destruir o Criador pelo desmantelamento de
sua obra maior. Marx fala de um mundo invertido no campo do pensamento
religioso e de sua miséria, mas que ele mesmo, na negação de algo que ele não
consegue, nem quer, entender, vê-o invertido.
Aliás, não é a primeira vez que isso acontece no pensamento marxista; o
próprio conceito de “mais-valia” é errôneo em si mesmo se se partir da idéia de
que só o trabalhador produz riqueza, enquanto que o capitalista só o explora.
Sem a empresa, não existe riqueza. A dependência só funciona de for mútua. O
empresário, como disse Ferreira Gullar, é “um intelectual que, em vez de
escrever poesias, monta empresas... É um criador, um indivíduo que faz coisas
novas”. A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só explora é
radical, sectária, primária, assim como a visão de que o homem só precisa do
mundo objetivo e material é negar a abrangência da própria natureza humana. A
partir dessa miopia, sustenta Ferreira Gullar, tudo o mais deu errado para o
campo socialista.
***
Espero que a minha resposta
seja satisfatória para os meus alunos do 2º ano, turma B, do Ensino Médio... Ou
vou passar, no mínimo, por prolixo (rsrs). Mas, só pra ser sintético – e também
provocativo (como cabe a uma boa discussão filosófica), fica a frase do
jornalista americano Edmund Wilson: “o Marxismo é o ópio dos intelectuais”.
3 comentários:
Belo esclarecimento, amigo poeta! Todos os alunos deveriam ter esse esclarecimento, pois ainda vivemos o tempo (pelo menos nas aulas de história de nossas escolas)dessa ideologia. E alias, esse grande quadro é de meu amigo e grande artista W.J. Solha! Maravilha!
Amigo Hilton,
Obrigado pelos elogios e principalmente pela informação a respeito do autor da ilustração... estava desesperado para saber seu nome...
Um abraço,
Silvério Duque
Muito bom, é para guardar...
Como professor de matemática não pude deixar de rir quando um aluno me disse que o primeiro marxista foi Pitágoras justificando da seguinte forma:
"Ao afirmar que a soma dos catetos é igual á hipotenusa, Pitágoras não só criou duas classes como posicionou a classe das hipotenusas acima da classe dos catetos, gerando assim tensões sociais dentro dos 180 graus inerentes a existência humana"
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