terça-feira, 19 de janeiro de 2010

UM POEMA...

Imagem de Antônio Brasileiro (2005), Óleo sobre tela, 50x60



BALADA PARA A MORTE


ou IMPROVISO HERÁLDICO ANTE AS SOBRAS DO BANQUETE ILÚDICO
( em ocasião do 60º aniversário do poeta Antônio Brasileiro )




( Suavemente,
a noite nos envolve indecifrável...
fugindo de sua obrigação de negar-nos
a grande sombra desce,
mas todos se amontoam nosilêncio e no medo
de sermos tantos.


Amontoamo-nos
no indecifrável espaço do torpor
e parecemos um só homem espalhado pela escuridão imensa...
nessa sombra que somos
nos perdemos...
porém,
sobra nas retinas o que fomos
e
presa à garganta
tudo
o que queríamos.



A noite...
sim, a noite...
a noite nos embrulhou com ódio,
e toda a noite enraivecida é a grande
verdade
que buscávamos,
uma deslavada verdade
que todos contam entre nós:
era dos nossos sonhos que ela vinha;
de nossa realidade ela se criava;
amadureceu em nosso egoísmo;
modificou-se por nossa angústia;
em nós...
em todos nós
espatifou-se,
neste momento que ainda corre:
e todos somos um
nesses pedaços de tantas coisas
únicas;
tantas vontades
a serem sempre as mesmas;
tantas fomes iguais
de tudo.


Esta noite nos uniu em nada...,
mastigou
o humano
que tínhamos engolido,
despojou-nos
neste leito de escuridão em que deitamos;
enraizou-nos
neste princípio de coisa alguma
impedido-nos
a aurora.








2.a



A noite está
inquieta
como um homem morto –toda a noite
é um tumulto –
é toda um coração que bate e vai morrer e o sabe...

A noite
sorveu a paciência
destes banquetes; deu ao tempo
propósitos que não tinha;
a noite
deu propósitos a tudo:
à nossa morte,
ao nosso odor de morte,
à nossa inquietude de estar dentro
da
morte,
ao nosso esquecimento
de sermos
morte...
a noite
humanizou a terra superior dos cemitérios;
tornou fundamental
a nossa poesia dispersa;
apagou-nos
da manhã
que não
viria.








2.b



A noite
deu-nos um mistério em nosso nascimento;
e nenhum dia será mais claro do que esta noite
e os dias que virão de dentro dela.



A noite assombrosa de nosso desejo
é toda uma mística certeza que nunca tivemos.


– Existimos
dentro desta noite como
nunca existimos
antes. )








3

UM APÓLOGO:



“ Ó amigos, ó coisas inexatas...
filhos das feras que moravam em nós:
esta noite tudo ficará retido sob o chão
destas mentiras tão puras;
a manhã se foi sem ternura
e sem a simplicidade
que os amanheceres
nos trazem.



Ó irmãos,
crianças maliciosas que fomos,
a manhã se foi escura
porque nunca verdadeiramente houve
uma manhã mais clara.

A perfeição,
irmãos,
reside nesta escuridão que este não-dia nos trouxe.
Nada vimos,
porque nada queríamos ver.
Nada evocamos,
pois sempre fomos esta mesma ausência.
Nada construímos sobre esta imensa mão ruidosa,
porque toda a nossa poesia foi um truque.
E nenhuma lágrima rolará,
pois nunca existiu em nós a alegria
para que, então, experimentemos a tristeza
de sermos tantos e tão sozinhos.



Nada, amigos...
nada...
nada será,
porque nada foi.



Tudo
apenas é:
e tudo é noite...
tudo é simples,
vasta e absoluta noite.

Somente
noite.”

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