domingo, 19 de abril de 2015

“BIRDMAN” ou A INEVITÁVEL VIRTUDE DA CONSCIÊNCIA

"Nenhum embate é mais significativo e violento para Riggan do que aquele entre ele e ele mesmo, ou melhor, entre ele e seu ego inflamado personificado na forma do personagem Birdman, que ele, por anos, interpretou, e, até hoje, vive à sua sombra". 







“BIRDMAN”

ou A INEVITÁVEL VIRTUDE DA CONSCIÊNCIA

(por Silvério Duque)


Ninguém vive verdadeiramente se não cai
sob uma forma ou outra de sedução.
GABRIEL LIICEANU







Imagine a seguinte situação: você é um astro hollywoodiano de primeira grandeza, daquele tipo de celebridade mundialmente conhecida, que a maioria dos simplórios mortais se mataria para ter um autógrafo, amado e admirado por milhões de fãs ao redor do planeta, mas tudo isso se fazia quando você interpretava um famoso herói dos quadrinhos, todavia, ao se recusar a fazer o quarto filme da famosa franquia, sua vida cai em desgraça; você vê ir embora fãs, aquela sensação tão gostosa, quanto inconveniente, de ser reconhecido e perseguido pelas ruas, sua esposa gostosa, sua filha, que cai no mundo das drogas e na depressão, você mesmo se arremessa em um quadro depressivo cada vez maior quanto mais seu dinheiro e prestígio vão ficando escassos, e, como se não bastasse, com o ego e o senso de realidade tão maltratados, os limites entre o real e o fictício se tornam cada vez mais tênues, ao ponto de você não saber mais se está com os pés no chão do mundo real ou voando por sobre suas próprias fantasias... Imaginou?! Bem, esse é o mote para um dos filmes mais frenéticos e bem realizados dos últimos tempos: Birdman ou A Inesperada Virtude da Ignorância (Birdman or The Unexpected Virtue of Ignorance, Estados Unidos/Canadá, 2014), do premiado e controverso Alejandro Iñárritu e ganhador do Oscar de 2014.


O filme, que concorreu com uma penca de indicações, e trouxe, para as telas do cinema, outras tantas de discussões e referências literárias e filosóficas, mostra-nos a vida de Riggan Thomson (interpretado por um Michel Keaton excelente em tudo, a começar por uma relação direta que o ex-protagonista de uma das franquias de Batman possui com a história de seu personagem), ou dizendo melhor, um determinado – e determinante momento – de sua vida, que é justamente o autor cuja vida foi descrita na pergunta que fiz na introdução deste texto. É ele o ator que caiu em total desgraça no momento em que se recusou a fazer o quarto filme da franquia Birdman. Agora ele se encontra em seu camarim, no Teatro St. James, em Nova York, tentando se acalmar, ao tempo que procura entender quais os caminhos que o levaram justamente àquela situação, bem como àquele momento. Incerto de onde está e do que de fato fará, Thomson precisa voltar ao ensaio de uma peça que ele mesmo adaptou de um conto do Raymond Carver, e, que, de quebra, também dirige e ousadamente protagoniza. Essa é a sua tentativa desesperada de retornar ao prestígio e ao reconhecimento, mas, dessa vez, a um prestígio e reconhecimento bem diferentes; ele quer realmente provar a todos que é um homem deveras talentoso e que seu brilho e sucesso vão muito além de um “enlatado” para adolescentes sem noção.


Thomson não é o Ed Motta, porém, quer ser reconhecido como um ator para um público seleto, que valoriza de verdade o talento e a grandeza de uma atuação sincera. No entanto, ele se vê, de pronto, com um problema terrível, um de seus colegas atores é péssimo, e Riggan Thomson vê nisso um entravo considerável em seu caminhar de volta à fama. Todavia, quando um spot de luz cai sobre a cabeça de seu inapto colega, Riggan vê nisso um alívio que logo se transformará em desespero, pois não há um ator de calibre para substituí-lo até a pré-estreia de amanhã; todos os que Riggan pensa para acompanhá-lo, em sua empreitada, ironicamente estão ganhando milhões interpretando heróis, enquanto ele, que perdeu e está a perder milhões para se livrar de um, desespera-se.


Sorte de principiante – no teatro –, uma oportunidade única bate à porta de Riggan Thomson: Mike Shiner (um Edward Norton muito à vontade em um papel que poucos poderiam interpretar sem cair em estereótipos fáceis), o melhor e mais problemático ator em atividade na Broadway está apto para assumir o lugar ao lado de Riggan. É justamente aí que todos os conflitos que tornam Birdman um trailer de barroquismos sem comparação começam a tomar proporções tão imensas quanto desesperadoras. A partir daí tudo é muito rápido e acompanhado por um solo de bateria igualmente ininterrupto, que certamente deixou muitos espectadores do filme tão tonteados quando o angustiado Riggan Tomson, ao encontrar-se no limiar entre a verdade e a fantasia, entre o talento de Mike e sua capacidade indiscutível de semear a discórdia, entre ser lembrado pelo que fez e reconhecido por aquilo que ele está fazendo, entre ser uma “celebridade” e tornar-se de fato um “artista”, entre a fé e a descrença em si mesmo.


Ao lado desses conflitos, que começam a se desencadear sem quase uma única pausa para respirarmos, todo o filme assume um ritmo frenético e os acontecimentos vão se desenrolando de uma forma que, antes que percebamos o passado, o presente já se abre para o futuro e assim sucessivamente sem que muitas vezes percebamos os intervalos que existem entre um e outro. Além do mais, há vários momentos em que não sabemos se estamos a assistir o presente ou o futuro dos acontecimentos, se estamos na realidade ou na fantasia, se é o ensaio da peça ou a apresentação propriamente dita e, acima de tudo, não percebemos, muitas vezes, se estamos ao lado de Riggan Thomson ou se estamos mergulhados em sua mente e em seus delírios, como numa espécie de discurso indireto livre cinematográfico que o diretor Alejandro Iñárritu aplica a todo o filme. É com essa manipulação temporal e realista que Birdman torna-se ao mesmo tempo um drama com ares de uma comédia, uma composição erudita com ritmo e improvisação jazzística, e um verdadeiro samba do crioulo doido onde tudo é embate: Riggan deseja o prestígio e o reconhecimento de Mike, que esconde, ou finge esconder, seu desejo de ser alguém que todos reconhecem na rua, como Riggan; a esposa de Riggan deseja ser amada por ele, mesmo sem diminuir o rancor que sente pelo ex-marido, que não sabe como dizer ou demonstrar que a ama, por mais que queira; mesmo sem saber o porquê dessa necessidade, Riggan precisa ser um bom pai para uma filha (a excelente Emma Stone) indignada e desencantada com tudo, inclusive, segundo ela mesma quer acreditar, com o próprio pai; Riggan ainda tem que cuidar de seu empresário desesperado (Zach Galifianakis), com uma companheira de palco também insegura e desiludida (Naomi Waltts), uma namorada tarada e também depressiva (Andrea Risebourouth)...


Contudo, nenhum embate é mais significativo e violento para Riggan do que aquele entre ele e ele mesmo, ou melhor, entre ele e seu ego inflamado personificado na forma do personagem Birdman, que ele, por anos, interpretou, e, até hoje, vive à sua sombra. Ironicamente, ninguém chama mais Riggan à realidade dos fatos e das coisas do que seu “outro eu”, mostrando-lhe a falsidade, o vazio e o desinteresse que o mundo contemporâneo tem pela grandeza e profundidade que Riggan tanto almeja a esta altura de sua vida.


O tempo de tudo, ou melhor, das duas semanas que transcorrem todo esse corte na vida de Reggan Thomson se dá em duas horas, como um verdadeiro conto literário, numa aparente sequencia única de câmera e que acompanha o ritmo e a desenvoltura de seu próprio delírio, como em Arca Russa e Festim Diabólico. Tudo isso exige dos atores desse filme uma concentração absoluta para manter o espectador nesse clima atordoante que Birdman nos apresenta e se sustenta do primeiro ao último minuto. Onde todas essas coisas vicejam está o grande trunfo maior do diretor Alejandro Iñárritu: pôr Michael Keaton no papel de Riggan Thomson. Keaton está excelente, como nunca esteve em toda a sua carreira, impecável em sua técnica até os mínimos detalhes, mas também dono de uma emoção controlada e muito bem trabalhada que beira o virtuosismo (mesmo assim, foi-lhe negado, injustamente, o Oscar), e, além disso, ele, como já disse, tem um passado profissional que muito se encaixa na história de Birdman, que foi o de interpretar, como superastro dos anos 80 e 90, o papel de Batman, sob a direção de Tim Burton, e que enfrentou uma perda quase irreparável de popularidade ao se recusar a fazer o terceiro filme da franquia.


Levando tudo isso em consideração, Birdman não é um filme fácil, nem o poderia ser... Ele traz desafios técnicos e artesanais muito complexos, diversos e impressionantes e satisfaz os estetas e críticos de plantão, ao mesmo tempo que os critica de forma crua e contundente (reparem como o trabalho dos críticos é apresentado no filme, e como ele é um soco com luva de pelica em um grupo fechado que deveria ser responsável por ajudar as pessoas a admirar e compreender a obra de arte, mas se mostram incapazes tanto de ensinar quanto de admirar aquilo que veem e sobre o qual escrevem). Também o mundo contemporâneo e tecnológico, com suas celebridades fáceis e efêmeras, e seu vazio de conteúdo e perspectivas, são duramente criticados no filme, sem que se perca de vista a força que tudo isso tem para os dias de hoje.


Críticas e filosofias a parte, nada pulsa com mais força e fulgor do que o elemento humano presente e explorado extremamente ao longo de toda a película. Além do mais, há uma forte ideia de imortalidade presente no desespero de Riggan em fazer algo grande, que o ponha no panteão dos imortais, dos lendários ou dos meramente lembrados pelos seus grandes feitos. Riggan, como diria Kierkegaard, não quer fazer parte do “cardume dos arenques”, em que 99% da humanidade se insere. Ele precisa fazer a diferença da forma mais verdadeira possível ou enfrentará a pior das mortes: o esquecimento; mas não qualquer esquecimento, um esquecimento que começa em vida e estender-se-á daqui à eternidade... Se somos a nossa ação por sobre o tempo, é ele, o tempo, como pensavam os barrocos, o agente de toda morte e destruição; e o ego, nosso primeiro fantasma e mais infernal castigo.

















Candeias, num calorento 17 de abril de 2015


domingo, 5 de abril de 2015

FELIZ PÁSCOA...

"A Crucificação de Cristo" de Peter Paul Rubens (1611): Óleo; 219 x 122 cm – Museum voor Schone Kunsten, Antuerpia.











A CRUCIFICAÇÃO

(por Silvério Duque)



– É tudo leve agora... é tudo pó
sob este Céu envolto na agonia
e a dor que se imprimiu na pele fria
é a tessitura exígua deste Ó

por onde se desfaz o último nó
do vetusto preceito que podia
fazer da Glória Eterna uma porfia
vã pois todo homem nasce e morre só.

Mas a treva plantada sobre o lume
desvaneceu-se toda sob o abraço
de um grande amor sem mácula ou ciúme.


E assim se espera pela fé a nova
chama que brotará sobre o ocaso
pois pela Graça tudo se renova.



ESTE SONETO É PARTE INTEGRANTE DE MEU LIVRO "CIRANDA DE SOMBRAS" É Realizações Editora, 2011):http://www.erealizacoes.com.br/ecom/produtos_descricao.asp…

APROVEITEM E OUÇAM TAMBÉM: https://www.youtube.com/watch?v=OhOstwxcwWs