Do horror à maravilha:
Do literário e do teológico
na série PENNY DREADFUL
ao
Aurélio Schommer, historiador
e aos mestres e amigos Karleno Bocarro e Paulo Cruz
É necessário, outrossim, que a essência de Deus coincida com
o seu ser. Com efeito, em todas aquelas coisas em que a essência difere do ser,
necessariamente há uma diferença entre o seu ser e a sua essência, pois é
virtude do seu ser que se diz existir
uma coisa, ao passo que é virtude de sua essência que se diz o que tal coisa é.
Sto. TOMÁS DE AQUINO
Somos
filhos do século XIX... O século XX nada mais foi do que o desenvolvimento das
melhores invenções de seu antecessor e a aplicabilidade de suas piores ideias.
Para piorar, o século XXI, em sua primeira década, não se mostrou menos que a excrecência
de ambos. Se alguém tiver dúvidas, é só reparar na grande quantidade de jovens
perdidos em seus caríssimos celulares de última geração, abrindo largos e
falsos sorrisos em numerosas selfies
para o Facebook, enquanto enchem suas
cabecinhas com pensamentos e palavras de ordem comunista.
Na
nova série Penny Dreadful (HBO, 2014), o século XIX, no melhor estilo eclético de um
O Ateneu, apresenta-se como um
intricado e diverso organismo onde realidade e fantasia, presença e memória,
cientificismo, religiosidade e psicologismo, andam de mãos dadas, tornando-se o
principal e mais elaborado personagem de toda a série. Esta nova trama de terror, romance, erotismo e
drama, que o canal HBO exibe desde a última sexta feira 13, estrelada por
atores do melhor e mais diverso escalão, como Eva Green, Timothy Dalton e Josh
Hartnett, ao lado de nomes menos conhecidos, mas de talento e carisma
excepcionais, como Reeve Carney e Harry Treadaway, vêm se juntar a um time
extremamente seleto e sofisticado de produções para a TV que, a exemplo de House, The Walking Dead, Games of Thrones, Hannibal e Breaking Bad, entre
outras, provam, mais uma vez, que a vida inteligente e a dramaticidade elaborada,
não estão, ultimamente, no cinema.
Opulenta
e dinâmica, Penny Dreadful devolve à Era Vitoriana um
caráter a muito perdido, que é o de unir forças completamente opostas, como a
beleza e o terror ou mesmo a ciência e o mistério, e onde as possibilidades
dramáticas e referenciais parecem ilimitadas. Digo isso após constatar, à
maneira de um Conselheiro Acácio, do famoso romance do Eça, uma característica
óbvia, mas não menos maravilhosa em seu enredo: não haver um único elemento
comum, e de relevada importância à segunda metade do século XIX, principalmente
à Era Vitoriana, que não se encaixe em sua abordagem. O primeiro deles é a
própria transformação pela qual o século XIX passou, onde o mundo rural era
cada vez mais abandonado, dando lugar à cidade grande, como a Londres de 1893 –
época e local onde se passa toda a trama idealizada e executada por seu
roteirista e diretor, John Logan (de Operação
Skayfall) –; uma Londres suja, triste
e corrupta, mas iluminada a gás e cada vez mais frenética, graças as máquinas,
aos motores a vapor (substituindo animais e homens) e as primeiras experiências
com a eletricidade, a capital britânica era, àquela época, o que melhor se
podia chamar de futurista. Aliás, a Londres que John Logan apresenta em Penny Dreadful é de um realismo e um colorido que não fazem feio diante
de mestres como Zola ou Raul Pompéia. Fotografada, todavia, numa Dublin real e
menos descaracterizada pelas transformações arquitetônicas, feitas ao longo de 121
anos de história, do que a Londres atual, Penny
Dreadful se veste de uma paleta
demasiadamente peculiar, repleta de muito vermelho-rubi, verde-esmeralda,
amarelo-ouro, azul-pavão; cores que os vitorianos usavam para encobrir a cinza
dos nevoeiros e das crescentes e desumanas indústrias londrinas... e muita,
muita cor preta.
Mas
outros elementos tipicamente vitorianos não se apresentam menos importantes;
pelo contrário, mostram-se essenciais à composição e à compreensão deste
período de maravilhas em que Penny Dreadful se debruça. Esses elementos, ou
melhor, temas que alimentaram a
imaginação fértil dos ingleses daquela segunda metade do século retrasado, e
são quase que verdadeiras obsessões da Era Vitoriana, começam com a Egiptologia, capaz de conferir um
caráter ao mesmo tempo científico e místico àqueles anos, passando pelo Espiritismo que, em meados do século XIX
em diante, virou um verdadeiro objeto de fascínio e mesmo de espetáculo na
Europa e nos Estados Unidos. Esse caráter espalhafatoso das sessões espíritas –
até porque, pelo que me parece, Penny
Dreadful vê o Espiritismo
simplesmente como uma religião barata, e livre das culpas e sacrifícios
necessários do Cristianismo – é muito bem explorado em uma das cenas mais chocantes
da série, quando, no segundo capítulo da primeira temporada, a jovem médium e
detetive (isso mesmo, médium e detetive), a bela e misteriosa Vanessa Ives
(interpretada pela estonteante Eva Green), incorpora o próprio Mal, revelando
não só os planos seculares do Coisa-Ruim, mas, para começar, a própria
licenciosidade dos comensais ali presentes.
Do
outro lado, há elementos menos ligados ao místico ou mesmo ao fantasmagórico,
como os crimes violentos de Jack, o Estripador. As cinco prostitutas que o
primeiro grande Serial Killer da
história retalhou, em 1888, são uma face simbolizada da obsessão dos vitorianos
pelo crime, resultado direto, segundo alguns especialistas de seu tempo, da
crescente industrialização e urbanização europeia, que associavam os bairros e
os redutos de trabalhadores braçais à miséria e à violência física e moral. Com
essa obsessão pela criminalidade, surge a curiosidade e a admiração pela figura
do detetive, a exemplo do maior de
todos: Sherlock Holmes, personagem icônico de Arthur Conan Doyle, que, em Penny Dreadful, é representado pela beleza e o ar misterioso de Vanessa
Ives. Na mesma linha de elementos menos metafísicos, Penny Dreadful ainda traz
o debate sobre a exploração da África,
que, àquela época, incendiava a imaginação dos vitorianos com relatos de
maravilhas e descobertas científicas, representada pela aristocrática figura do
lorde Malcolm (Timothy Dalton – o pior 007
da história) e seu mordomo Sembene (Danny Sapani), que, pelo que me parece, são
referências diretas às figuras reais de Henry Morton Stanley e o jovem Kalulu.
Há, também, as Ciências Naturais,
como a teoria evolutiva e Darwin e o Determinismo de Taine, colocando em xeque
as questões morais, religiosas e científicas de seu tempo e toda ética que as
envolviam. Os trens, navios e outras máquinas
a vapor, facilitando o deslocamento
de pessoas, a produção e o escoamento de riquezas e a pornografia, que, na contramão da repressão sexual da Era
Vitoriana, celebrava um mundo de liberdade e diversão que, graças ao
Neocolonialismo, e àqueles que podia aproveitar da Belle Époque nascente,
parecia infinito e inabalável.
E
é claro que em toda esta mistura de temas e elementos que é Penny Dreadful não poderia faltar, mesmo que discretamente – pois é assim
que deve sê-lo –, o Tédio, aquele bom
e velho mal-do-século simbolizado
pela tuberculose (e há uma tuberculosa, e, também, prostituta, na série) que
tanto identifica os românticos. Este enfado diante da vida, e de sua vivência
mais intensa, nada mais é do que uma reação à efemeridade da existência, pois é
da efemeridade da vida que seus absurdos se originam, e, consequentemente, à
predominância da morte em tudo que existe. A morte é a grande musa dos
românticos e está sempre lá, em cada canto, momento ou ação na série,
prevalecendo inexorável sobre todas as outras coisas. Embora não seja uma
invenção romântica, a melancolia
jamais seria tão bem vivenciada do que em um século onde, como disse a pouco, o
horror e a maravilha andavam de mãos dadas, sem os conflitos característicos do
século XVII, ou o falso desprezo afetado do século XVIII, ou, muito menos, a
aceitabilidade banalizada do século XX.
Todavia,
se há um elemento do século XIX que Penny
Dreadful utiliza como nenhum outro é
a Literatura. O próprio título da série (aliás, genial) é uma referência à
literatura dos últimos anos do século de Goethe, Dostoievsky e Kierkegaard. Os penny dreadfuls (também chamados de penny
awfuls) eram livretos impressos no
papel mais vagabundo possível, o que acabou originando também a expressão pulp fiction,
que se faziam repletos de historietas macabras e, por vezes, violentas; por
custarem centavos, ou pennies, e
terem caráter aterrorizante (ou dreadful),
tornaram-se um fenômeno de massificação da leitura, entre as classes
trabalhadoras, como os folhetins
fizeram aqui, no Brasil, a partir de 1846, principalmente entre as classes mais
abastadas, com os nomes de Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida
e do ainda inexperiente José de Alencar.
Daí
em diante, seguem-se referências a Doyle, e ao seu já citado Sherlock Holmes,
Charles Dickens, Oscar Wilde (o próprio Dorian Gray é também personagem em Penny Dreadful), o irlandês Bram Stoker, pois os acontecimentos e as
investigações da série se passam paralelamente aos acontecimentos descritos em
seu Drácula, que além de ser uma
figura presente, mesmo em sua ausência, a jovem paixão do mestre vampiro, Mina,
não é ninguém menos que a filha do lorde Malcoln, sequestrada pelo mais
significativo de todos os sanguessugas da história –, e, a não menos
importante, Mary Shelley e seu Frankenstein
– tanto o Dr. Frankenstein quanto seu monstro, o criador e a criatura, são
personagens importantíssimos à desenvoltura de toda a trama. Juntam-se a todos
esses romancistas citações de poetas e teatrólogos como Keats, Goethe, Wordsworth,
Ibsen e Shakespeare – este último, apesar de não ser romântico, tem uma
contribuição para o Romantismo que poucos românticos tiveram.
Mas
é, justamente, com a figura de seu jovem Dr. Frankenstein que Penny Dreadful chega aos seus momentos mais intensos de dramaticidade e
inteligência, alinhavados a uma compreensão magnífica de toda a época retrata e
de seus efeitos à nossa atual sociedade.
Como se não bastasse, abre um precedente maravilhoso para discutir um
elemento menos explicito na narrativa, mas tão presente quanto qualquer outro,
até agora, apresentado: a Religiosidade.
Tanto
no romance publicado pela jovem Shelley, em 1818, quanto no intricado enredo de
Penny Dreadful, o Dr. Frankenstein, e sua criatura feita de pedaços de
cadáveres humanos e animado pelos raios de uma cataclísmica tempestade qual um
deus em fúria, sempre será a metáfora consciente da arrogância da ciência em
equiparação aos feitos da Divindade. Um bom exemplo disso é quando, colocado
frente a frente com um reconhecido cadáver de um vampiro, o jovem doutor
Frankenstein põe-se, simplesmente, a dissecá-lo, vendo, ali, apenas anomalias
físicas em um corpo inerte. Essa atitude do jovem doutor personifica muito bem
o ideal cientificista daquela época: incapazes de compreender e, muito menos,
conceber o metafísico, positivistas,
deterministas, marxistas e tutti quanti, preferiam ignorá-lo, mesmo que,
concretamente, o metafísico se
apresente diante se seus olhos. A ideia aqui pode parecer meio estranha a um
Kant, no entanto, quando vemos sobre esta óptica a fria dissecação de um
vampiro como um cadáver comum, perguntamos se essa aparente e falsa cegueira
dos donatários do saber, não é uma forma de desmascaramento da ciência cínica
que busca nos moldar até os dias de hoje.
Quando
alguém pretende assumir o papel de Deus, como o jovem Dr. Victor Frankenstein
tenta fazer, deveria, no mínimo, estar preparado para sentir aquilo que Deus
deve sentir, como a dor da desobediência e a tristeza da rejeição por parte
daquilo que ele criou com tanto afinco, mas não é isso o que se vê quando
criador e criatura se encontram em um diálogo cheio de rancor e frustração para
ambos – todavia, rico de referências e discussões morais para nós, meros
espectadores. O próprio nascimento
dramático e doloroso do monstro de Frankenstein, na série, não é, senão, a
própria alegoria do homem sem Deus: só, abandonado, sem conforto ou sentido em
um mundo onde o mais ínfimo propósito não existe e onde tudo que ele, mero resultado
acidental de podridão e descargas elétricas, pode experimentar de mais concreto
é a orfandade, porque é certo que o
mundo puro e natural, a história e a ciência, por mais maravilhosas que possam
ser, acabam por esgotar a realidade; o mundo sem Deus é, do contrário que
pensam muitos, transforma-se não em um resultado direto da razão, mas num produto de fantasia, projeção humana,
elaboração simbólica, tudo sem substância ou profundidade ontológica. E é de
sua própria orfandade que Victor Frankenstein tira a ideia fixa de “fabricar vida”,
como um recurso inteligente, mas desesperado, de alguém que reconhece o vazio
ontológico de uma existência sem fé. Essa fixação, diga-se, é outra
característica da era Vitoriana, exacerbada principalmente pela literatura de
Dickens, que era cheia de protagonistas órfãos. A destituição, miséria e doença
que vieram com a urbanização desenfreada e com a Revolução Industrial, provocam
essa orfandade como a que se vê em Oliver
Twist, mas o ateísmo também nos deixa
órfãos e essa orfandade nos faz criar monstros.
Se
há um monstro ansiando em cada um de nós, o ateísmo se mostra como o pior deles,
pois nos revela o mais abjeto do que em nosso âmago existe, mesmo que, em
alguns casos, possamos conviver, ou nos enganar com esse monstro, como é o caso
do Dorian Gray, tanto o do livro, quanto o da série, a viver as delícias da
vida e da beleza eternas, enquanto a sua imagem, refletida em um quadro
escondido em sua mansão, deteriora-se a cada novo dia de prazer sem sentido ao
qual o “jovem” Dorian se entrega. A impudência de Dorian Gray não é só a
contrafação de seu quadro, mas de todo aquele que acredita poder fugir à
própria consciência e ao dever moral consigo mesmo; isso para não dizer o
quanto que existe de desafio à Divindade nessa diabólica vida sem maiores
relevos a qual o personagem de Oscar Wilde se entrega; daí este reflexo falso e
distorcido que vemos em Dorian, mas também entre Victor Frankenstein e seu
monstro, que não desperta para o Divino, dando as costas à verdadeira face de
seu caráter, que apodrece mais e mais, à medida que sua alma se veste de um
vazio cada vez maior e mais profundo. Mas ninguém pode negar, no entanto, o
fascínio do moderno, o poder da técnica, da ciência e outros valores naturais
como a liberdade, sexualidade ou pluralismo, que são também foco da modernidade,
e que o Cristianismo secular nem sempre compreendeu muito bem. Juntam-se a isso
a luta contra a inevitabilidade da natureza e da morte, ou o simples ato de
ignorar a morte e seu poder ou não tomá-la como um assunto de grande relevância
ou como se a felicidade não fosse um produto do efêmero para o efêmero. A
modernidade diante da fé e a fé diante da modernidade geram um reflexo de
proporções diversas e muito contraditória onde uma interface não pode jamais
prevalecer sobre a outra e, quase sempre, a modernidade ganha, fazendo com que
o principio da transcendência seja esquecido e a perpetuação do efêmero e do
passageiro uma meta sempre a ser alcançada, seja com o Dr. Frankenstein e seu
monstro, produtos diretos do ateísmo, ou com Dorian Gray, e sua luta constante
contra o spleen destes dois mundos: o
antigo e o moderno; o científico e aquele mundo onde a fé é imanente às
atitudes puramente humanas.
Sto.
Agostinho, por exemplo, acreditava que o homem, enquanto criação de Deus,
estaria condenado a viver sem paz ou conforto, só encontrando repouso se para
Deus ele retornasse. Assim é o Dr. Frankenstein e seu monstro: duas criaturas
sem Deus, destinados a viver uma orfandade sem precedentes e sem esperar nada
da vida, ou um do outro, a não ser a dor e o abandono, e se o homem vem da
tabela periódica e para a tabela periódica ele volta, que sentido profundo e
real pode se sustentar dessa constatação? De todos os elementos teológicos
presente em Penny Dreadful este é, de longe, o mais forte
e o mais recorrente em toda a série, encontrando na figura do Dr. Frankenstein,
e seu monstro, sua melhor personificação. Todas as provas da existência de Deus
devem conter numa espécie de quadro tomista explicativo do real como um todo
conciliando razão e revelação divina, e a distinção ontológica entre essência e
existência permite reinterpretar o princípio aristotélico segundo o qual a
forma revela a existência. Entretanto, a maneira como o Dr. Frankenstein
interpreta e aplica essa máxima de Tomás de Aquino é, no mínimo, diabólica, pois
nem ele nem sua criação podem existir por si mesmos, muito menos ser a razão de
sua própria existência pelo simples fato de sua obsessão nascer da perda de
muitas coisas, a começar pela própria razão. Além do mais, que existência a
forma do monstro de Frankenstein revela, a não ser a existência da loucura de
seu criador...?!
Mas
as questões e os paradigmas levantados pela figura do Dr. Frankenstein e seu
monstro não param por aí: em um diálogo com seu próprio criador, o mostro de
Frankenstein afirma não haver mais lugar para Keats ou Goethe, muito menos
lugar para a alma ou o amor; onde tudo isso havia, existe apenas um homem que
abraçou a máquina, que substituiu sua carne e sua alma por engrenagens e rodas
dentadas. Esse monstro de Frankenstein, consciente de seu papel nesse mundo,
declara-se como a própria personificação da Modernidade: feia, disforme e sofrível,
composto das sobras inúteis de um século que exaltou o passado e o futuro, o
heroísmo e a autopiedade; o crepúsculo da Revolução e a ascensão da Ciência;
que reabilitou o Barroco e a Idade Média, mas matou Deus e o espírito humano. Não
obstante, quando matamos Deus não nos livramos do Diabo, muito pelo contrário,
escancaramos a porta do mundo para ele, só nos sobrando a falta de ordem e de
beleza, sobrando-nos apenas o Caos. E
o que nasce do caos (e a mente de Victor Frankenstein não é nada mais do que
caos tentando racionalizar), no caótico permanecerá.
No
mundo que este monstro representa não há lugar para o belo ou, muito menos,
para o ordenado... Pobre de Aristóteles, que acreditava que o belo reside na
magnitude e na ordem, mas o monstro de Frankenstein, seja o imaginado
originalmente por Mary Shelley, ou o que se apresenta em Penny Dreadful são, sobre
certos aspectos (principalmente àqueles ligados à personificação da
modernidade) a negação desta afirmação do Estagirita. Na dúvida, lembremos como
o espírito do Romantismo foi, por exemplo, rapidamente substituído pela
literatura realista-naturalista, que nada mais é do que puro e demasiado cinismo
literário, contra a exacerbada, porém, sincera paixão romântica. Mesmo os casos
mais geniais, como os de nosso Machado de Assis, não deixam de ser cinismo, por
mais genial que eles sejam. E se a arte é, antes de qualquer coisa, reflexo da
sociedade que a cria, esta sociedade se fez tão cínica quanto Darwin ou Marx –
esses últimos, demasiadamente cínicos e sem muita genialidade, diga-se de
passagem.
Já
outros geniais, e menos cínicos, enxergaram com profunda dor o fim de uma era
tão fabulosa, temendo, muitas vezes, pelo legado de suas ideias, reconhecendo
que o fim do Romantismo poderia significar o fim dos últimos resquícios de um
espírito humano pleno, onde seus sentimentos por mais exacerbados que fossem
não prevaleciam sobre seus princípios, muito menos seus princípios como
destruidores de seus sentimentos, como já alertara Shelley. Posso me lembrar de
três neste momento: Dostoievsky, em Crime
e Castigo, Tolstói em Guerra e Paz
e Baudelaire, num explícito lamento pelo século que se extinguia com toda a sua
grandeza, em O crepúsculo romântico,
onde se pode ler:
Que
le soleil est beau quand tout frais il se lève,
Comme une explosion nous lançant son bonjour!
— Bienheureux celui-là qui peut avec amour
Saluer son coucher plus glorieux qu'un rêve!
Je me souviens!... J'ai vu tout, fleur, source, sillon,
Se pâmer sous son oeil comme un coeur qui palpite...
— Courons vers l'horizon, il est tard, courons vite,
Pour attraper au moins un oblique rayon!
Mais je poursuis en vain le Dieu qui se retire;
L'irrésistible Nuit établit son empire,
Noire, humide, funeste et pleine de frissons;
Une odeur de tombeau dans les ténèbres nage,
Et mon pied peureux froisse, au bord du marécage,
Des crapauds imprévus et de froids limaçons.
e que
eu traduzo aqui da seguinte maneira:
Belo é o sol quando ao céu –
risonho – se levanta
numa explosão que nos impele ao seu bom-dia!
Feliz quem pode de ébrio amor e com alegria
saudar-lhe o ocaso cuja glória nos encanta.
Se bem me lembro, tudo eu vi murchar: a fonte,
a flor, o sulco e um coração que não palpita.
– Corramos todos ao esplendor que nos evita
para abraçar o que sobrou deste horizonte.
Mas eu persigo em vão a um Deus que se retira...
A irresistível Noite ao seu império inspira
inundando de sombras as celestes rotas.
Um odor de tumbas entre as trevas já se espalha
e em meio aos charcos meu medroso pé estraçalha
inesperadas rãs e muitas lesmas mortas.
Não
seria nenhuma idiotice pensar que Penny
Dreadful parece, de certa forma,
lamentar profundamente o fim da era romântica, fazendo com que seus
espectadores também se sintam saudosos de um período tão distante, que, sequer,
viveram-no, mas capazes de reconhecê-lo como uma época de inventividade tão
grande que é quase impossível nos desvencilhar de sua influência. E não poderia
ser diferente, graças ao turbilhão feroz que foi o século XIX, os vitorianos
poderiam dormir convictos de que todas as explicações possíveis, inclusive da
origem de tudo, poderiam ser respondidas pela Bíblia e, logo em seguida, acordarem no outro dia em um mundo
expandido ao limite da incompreensão graças aos avanços da ciência e da filosofia
que o esquadrinhava, eviscerava-o e era anotado pelas mentes e mãos de
sociólogos, filósofos, naturalistas; onde as oportunidades de enriquecerem e caírem
na mais completa miséria eram praticamente iguais; onde tudo, mesmo o crime e a
pornografia, democratizavam-se e proliferavam; onde o real e o imaginário eram
igualmente possíveis e personagens como o Conde Drácula ou mesmo o dandismo de
Dorian Gray poderiam ser topados pela rua como a qualquer pessoa real ou comum.
Tudo isso porque tanto a fantasia parecia um decalque da realidade, bem como a
realidade um debuxo do fantasioso e do imaginário.
Como
se não bastasse, em todo esse emaranhado de símbolos literários, filosóficos e,
principalmente, religiosos, Penny Dreadful abre, ainda, um precedente à
outra análise, a do número imenso de filmes, séries, livros (e mesmo novelas)
que recorrem ao passado, principalmente ao século XIX, para, ali, concentrarem
seus enredos, e, mais ainda, na simbólica fixação que Hollywood tem por reescrever a história. Os exemplos são
numerosos: House, que nada mais é que
uma versão do já citado detetive criado por Conan Doyle, ou as séries também
baseadas nele como Sherlock e Elementary; Drácula, Sleepy Hollow,
ou as históricas The Tudors, Games of Thrones e Da Vincin’s Demons – todas,
às suas maneiras, pouco ou muito teológicas... Até a nova temporada de 24 Horas
não deixa de ser um retorno a um passado recente e de certo sucesso pelo seu
realismo moral e político.
Esse
desespero em buscar o passado – e Penny
Dreadful é muito mais digna de
credibilidade historiográfica do que foi The
Tudors, por exemplo –, e nele resgatar um tempo de ideias originais e
grandiosas, utilizando-se de cenários reais e da profusão de detalhes para
tornar crível o fantasioso e o literário de seus personagens e de seu enredo, só demonstra o quanto que também estamos
órfãos de boas histórias, para recobrarmos as boas sensações da vida; descrentes
de uma excelente literatura, para que o mundo a nossa volta se faça sentir cada
vez mais; e, mais do que isso, desiludidos na busca de um sentido em tudo que
fazemos; do contrário, como experimentar o prazer da estética se a nossa
percepção não for posta à prova, assim como a fé precisa de obras...? Olhar
para o passado, distante ou mesmo mais recente, é o que mais os artistas,
escritores, roteiristas, noveleiros, cantores de barzinho e et cœtera,
mais têm feito ultimamente. E quando se olha tanto para o passado é um sinal claro
de que o presente não está indo lá grandes coisas... não concordam?!
Candeias, durante a Copa do Mundo de
Futebol de 2014.