segunda-feira, 21 de julho de 2014

TRÊS PINTORES FEIRENSES...

TRÊS PINTORES FEIRENSES

(por Silvério Duque)


Déjeuner no Sertão. Acrílico sobre tela, 151,5 x 152 cm. 1988. Museu regional de Artes de Feira de Santana...





I
JURACI DÓREA


As caatingas se estendem para além
de seus traços
de sublime arquiteto...

assim
quisera eu ser.

***







Emaranhado na vegetação nordestina (2013), mista sobre tela - 100X100cm) - Coleção particular...


II
GIL MÁRIO

Vivo traço
em carne viva
sobre a tela
se adivinha.

Ante as cores
de seus bichos
a beleza
é redundante.

***








Nanã (2013), mista sobre tela - 60X80cm) - Coleção particular...


III
GABRIEL FERREIRA

Toda musa se alimenta
no esplendor de
seu traçado
e
a beleza
ali se inventa
como as pontas
de um bordado.



segunda-feira, 14 de julho de 2014

MEU SONETO NA "DICTA&CONTRADICTA", 10...







Este é um de meus poemas publicados na nova revista Dicta&Contradicta , nº 10... A Dicta&Contradicta é uma revista semestral lançada em 10 de junho de 2008 em São Paulo, pelo Instituto de Formação e Educação (IFE). Reúne artigos e resenhas de intelectuais brasileiros e estrangeiros sobre os grandes temas da cultura ocidental: a ética, a filosofia, a literatura e as artes, sob uma perspectiva de longo prazo, desvinculada da política partidária e com uma vocação, na medida do possível, universal. Com isso, a revista – com uma mentalidade acadêmica, mas sem academicismos – procura atender a uma demanda do mercado por textos de maior transcendência e profundidade. A Dicta&Contradicta traz um editorial – que expressa a opinião do Instituto de Formação e Educação –, uma seção de artigos principais, uma seção destinada a textos traduzidos de autores estrangeiros, um perfil de um intelectual ou artista, uma seção de filosofia e uma de literatura. Além disso, há uma seção destinada à análise de poemas, intitulada Anatomia do Poema, assinada pelo meu nobre conterrâneo Jessé de Almeida Primo, onde estes meus versos se encontram e são analisados ao lado de mestres como Cabral e Manoel Bandeira... um formigueiro entre o K-2 e o Everest... (rsrs)



FANTASIA PÓS-CARNAVALESCA...

(por Silvério Duque)





Liliane, a desolada, se rendia
aos apelos cruéis de um Ballentine’s
e como um velho conselheiro Aires
tentou viver uma vida em que não cria.

Mas viu em suas reflexões alcoólicas
que “a dor de uma paixão ninguém entende”
e o coração a si não se compreende
em suas resignações tão melancólicas...

Como quem opina no programa da Hebe
Conselhos sua mãe ofereceu-lhe
Pois “Deus do Céu não vela por quem bebe”!

Livre de culpas – toda serelepe –
Liliane, a renovada, obedeceu-lhe...
E foi fumar maconha em Arembepe.






quarta-feira, 9 de julho de 2014

DO HORROR À MARAVILHA...

 



Do horror à maravilha:
Do literário e do teológico
na série PENNY DREADFUL

ao Aurélio Schommer, historiador
e aos mestres e amigos Karleno Bocarro e Paulo Cruz

É necessário, outrossim, que a essência de Deus coincida com o seu ser. Com efeito, em todas aquelas coisas em que a essência difere do ser, necessariamente há uma diferença entre o seu ser e a sua essência, pois é virtude do seu ser que se diz existir uma coisa, ao passo que é virtude de sua essência que se diz o que tal coisa é.
Sto. TOMÁS DE AQUINO




Somos filhos do século XIX... O século XX nada mais foi do que o desenvolvimento das melhores invenções de seu antecessor e a aplicabilidade de suas piores ideias. Para piorar, o século XXI, em sua primeira década, não se mostrou menos que a excrecência de ambos. Se alguém tiver dúvidas, é só reparar na grande quantidade de jovens perdidos em seus caríssimos celulares de última geração, abrindo largos e falsos sorrisos em numerosas selfies para o Facebook, enquanto enchem suas cabecinhas com pensamentos e palavras de ordem comunista.

Na nova série Penny Dreadful (HBO, 2014), o século XIX, no melhor estilo eclético de um O Ateneu, apresenta-se como um intricado e diverso organismo onde realidade e fantasia, presença e memória, cientificismo, religiosidade e psicologismo, andam de mãos dadas, tornando-se o principal e mais elaborado personagem de toda a série.  Esta nova trama de terror, romance, erotismo e drama, que o canal HBO exibe desde a última sexta feira 13, estrelada por atores do melhor e mais diverso escalão, como Eva Green, Timothy Dalton e Josh Hartnett, ao lado de nomes menos conhecidos, mas de talento e carisma excepcionais, como Reeve Carney e Harry Treadaway, vêm se juntar a um time extremamente seleto e sofisticado de produções para a TV que, a exemplo de House, The Walking Dead, Games of Thrones, Hannibal e Breaking Bad, entre outras, provam, mais uma vez, que a vida inteligente e a dramaticidade elaborada, não estão, ultimamente, no cinema.

Opulenta e dinâmica, Penny Dreadful devolve à Era Vitoriana um caráter a muito perdido, que é o de unir forças completamente opostas, como a beleza e o terror ou mesmo a ciência e o mistério, e onde as possibilidades dramáticas e referenciais parecem ilimitadas. Digo isso após constatar, à maneira de um Conselheiro Acácio, do famoso romance do Eça, uma característica óbvia, mas não menos maravilhosa em seu enredo: não haver um único elemento comum, e de relevada importância à segunda metade do século XIX, principalmente à Era Vitoriana, que não se encaixe em sua abordagem. O primeiro deles é a própria transformação pela qual o século XIX passou, onde o mundo rural era cada vez mais abandonado, dando lugar à cidade grande, como a Londres de 1893 – época e local onde se passa toda a trama idealizada e executada por seu roteirista e diretor, John Logan (de Operação Skayfall) –; uma Londres suja, triste e corrupta, mas iluminada a gás e cada vez mais frenética, graças as máquinas, aos motores a vapor (substituindo animais e homens) e as primeiras experiências com a eletricidade, a capital britânica era, àquela época, o que melhor se podia chamar de futurista. Aliás, a Londres que John Logan apresenta em Penny Dreadful é de um realismo e um colorido que não fazem feio diante de mestres como Zola ou Raul Pompéia. Fotografada, todavia, numa Dublin real e menos descaracterizada pelas transformações arquitetônicas, feitas ao longo de 121 anos de história, do que a Londres atual, Penny Dreadful se veste de uma paleta demasiadamente peculiar, repleta de muito vermelho-rubi, verde-esmeralda, amarelo-ouro, azul-pavão; cores que os vitorianos usavam para encobrir a cinza dos nevoeiros e das crescentes e desumanas indústrias londrinas... e muita, muita cor preta.

Mas outros elementos tipicamente vitorianos não se apresentam menos importantes; pelo contrário, mostram-se essenciais à composição e à compreensão deste período de maravilhas em que Penny Dreadful se debruça. Esses elementos, ou melhor, temas que alimentaram a imaginação fértil dos ingleses daquela segunda metade do século retrasado, e são quase que verdadeiras obsessões da Era Vitoriana, começam com a Egiptologia, capaz de conferir um caráter ao mesmo tempo científico e místico àqueles anos, passando pelo Espiritismo que, em meados do século XIX em diante, virou um verdadeiro objeto de fascínio e mesmo de espetáculo na Europa e nos Estados Unidos. Esse caráter espalhafatoso das sessões espíritas – até porque, pelo que me parece, Penny Dreadful vê o Espiritismo simplesmente como uma religião barata, e livre das culpas e sacrifícios necessários do Cristianismo – é muito bem explorado em uma das cenas mais chocantes da série, quando, no segundo capítulo da primeira temporada, a jovem médium e detetive (isso mesmo, médium e detetive), a bela e misteriosa Vanessa Ives (interpretada pela estonteante Eva Green), incorpora o próprio Mal, revelando não só os planos seculares do Coisa-Ruim, mas, para começar, a própria licenciosidade dos comensais ali presentes.   
   
Do outro lado, há elementos menos ligados ao místico ou mesmo ao fantasmagórico, como os crimes violentos de Jack, o Estripador. As cinco prostitutas que o primeiro grande Serial Killer da história retalhou, em 1888, são uma face simbolizada da obsessão dos vitorianos pelo crime, resultado direto, segundo alguns especialistas de seu tempo, da crescente industrialização e urbanização europeia, que associavam os bairros e os redutos de trabalhadores braçais à miséria e à violência física e moral. Com essa obsessão pela criminalidade, surge a curiosidade e a admiração pela figura do detetive, a exemplo do maior de todos: Sherlock Holmes, personagem icônico de Arthur Conan Doyle, que, em Penny Dreadful, é representado pela beleza e o ar misterioso de Vanessa Ives. Na mesma linha de elementos menos metafísicos, Penny Dreadful ainda traz o debate sobre a exploração da África, que, àquela época, incendiava a imaginação dos vitorianos com relatos de maravilhas e descobertas científicas, representada pela aristocrática figura do lorde Malcolm (Timothy Dalton – o pior 007 da história) e seu mordomo Sembene (Danny Sapani), que, pelo que me parece, são referências diretas às figuras reais de Henry Morton Stanley e o jovem Kalulu. Há, também, as Ciências Naturais, como a teoria evolutiva e Darwin e o Determinismo de Taine, colocando em xeque as questões morais, religiosas e científicas de seu tempo e toda ética que as envolviam. Os trens, navios e outras máquinas a vapor, facilitando o deslocamento de pessoas, a produção e o escoamento de riquezas e a pornografia, que, na contramão da repressão sexual da Era Vitoriana, celebrava um mundo de liberdade e diversão que, graças ao Neocolonialismo, e àqueles que podia aproveitar da Belle Époque nascente, parecia infinito e inabalável.

E é claro que em toda esta mistura de temas e elementos que é Penny Dreadful não poderia faltar, mesmo que discretamente – pois é assim que deve sê-lo –, o Tédio, aquele bom e velho mal-do-século simbolizado pela tuberculose (e há uma tuberculosa, e, também, prostituta, na série) que tanto identifica os românticos. Este enfado diante da vida, e de sua vivência mais intensa, nada mais é do que uma reação à efemeridade da existência, pois é da efemeridade da vida que seus absurdos se originam, e, consequentemente, à predominância da morte em tudo que existe. A morte é a grande musa dos românticos e está sempre lá, em cada canto, momento ou ação na série, prevalecendo inexorável sobre todas as outras coisas. Embora não seja uma invenção romântica, a melancolia jamais seria tão bem vivenciada do que em um século onde, como disse a pouco, o horror e a maravilha andavam de mãos dadas, sem os conflitos característicos do século XVII, ou o falso desprezo afetado do século XVIII, ou, muito menos, a aceitabilidade banalizada do século XX.

Todavia, se há um elemento do século XIX que Penny Dreadful utiliza como nenhum outro é a Literatura. O próprio título da série (aliás, genial) é uma referência à literatura dos últimos anos do século de Goethe, Dostoievsky e Kierkegaard. Os penny dreadfuls (também chamados de penny awfuls) eram livretos impressos no papel mais vagabundo possível, o que acabou originando também a expressão pulp fiction, que se faziam repletos de historietas macabras e, por vezes, violentas; por custarem centavos, ou pennies, e terem caráter aterrorizante (ou dreadful), tornaram-se um fenômeno de massificação da leitura, entre as classes trabalhadoras, como os folhetins fizeram aqui, no Brasil, a partir de 1846, principalmente entre as classes mais abastadas, com os nomes de Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida e do ainda inexperiente José de Alencar.

Daí em diante, seguem-se referências a Doyle, e ao seu já citado Sherlock Holmes, Charles Dickens, Oscar Wilde (o próprio Dorian Gray é também personagem em Penny Dreadful), o irlandês Bram Stoker, pois os acontecimentos e as investigações da série se passam paralelamente aos acontecimentos descritos em seu Drácula, que além de ser uma figura presente, mesmo em sua ausência, a jovem paixão do mestre vampiro, Mina, não é ninguém menos que a filha do lorde Malcoln, sequestrada pelo mais significativo de todos os sanguessugas da história –, e, a não menos importante, Mary Shelley e seu Frankenstein – tanto o Dr. Frankenstein quanto seu monstro, o criador e a criatura, são personagens importantíssimos à desenvoltura de toda a trama. Juntam-se a todos esses romancistas citações de poetas e teatrólogos como Keats, Goethe, Wordsworth, Ibsen e Shakespeare – este último, apesar de não ser romântico, tem uma contribuição para o Romantismo que poucos românticos tiveram.


Mas é, justamente, com a figura de seu jovem Dr. Frankenstein que Penny Dreadful chega aos seus momentos mais intensos de dramaticidade e inteligência, alinhavados a uma compreensão magnífica de toda a época retrata e de seus efeitos à nossa atual sociedade.  Como se não bastasse, abre um precedente maravilhoso para discutir um elemento menos explicito na narrativa, mas tão presente quanto qualquer outro, até agora, apresentado: a Religiosidade.

Tanto no romance publicado pela jovem Shelley, em 1818, quanto no intricado enredo de Penny Dreadful, o Dr. Frankenstein, e sua criatura feita de pedaços de cadáveres humanos e animado pelos raios de uma cataclísmica tempestade qual um deus em fúria, sempre será a metáfora consciente da arrogância da ciência em equiparação aos feitos da Divindade. Um bom exemplo disso é quando, colocado frente a frente com um reconhecido cadáver de um vampiro, o jovem doutor Frankenstein põe-se, simplesmente, a dissecá-lo, vendo, ali, apenas anomalias físicas em um corpo inerte. Essa atitude do jovem doutor personifica muito bem o ideal cientificista daquela época: incapazes de compreender e, muito menos, conceber o metafísico, positivistas, deterministas, marxistas e tutti quanti, preferiam ignorá-lo, mesmo que, concretamente, o metafísico se apresente diante se seus olhos. A ideia aqui pode parecer meio estranha a um Kant, no entanto, quando vemos sobre esta óptica a fria dissecação de um vampiro como um cadáver comum, perguntamos se essa aparente e falsa cegueira dos donatários do saber, não é uma forma de desmascaramento da ciência cínica que busca nos moldar até os dias de hoje.

Quando alguém pretende assumir o papel de Deus, como o jovem Dr. Victor Frankenstein tenta fazer, deveria, no mínimo, estar preparado para sentir aquilo que Deus deve sentir, como a dor da desobediência e a tristeza da rejeição por parte daquilo que ele criou com tanto afinco, mas não é isso o que se vê quando criador e criatura se encontram em um diálogo cheio de rancor e frustração para ambos – todavia, rico de referências e discussões morais para nós, meros espectadores.  O próprio nascimento dramático e doloroso do monstro de Frankenstein, na série, não é, senão, a própria alegoria do homem sem Deus: só, abandonado, sem conforto ou sentido em um mundo onde o mais ínfimo propósito não existe e onde tudo que ele, mero resultado acidental de podridão e descargas elétricas, pode experimentar de mais concreto é a orfandade, porque é certo que o mundo puro e natural, a história e a ciência, por mais maravilhosas que possam ser, acabam por esgotar a realidade; o mundo sem Deus é, do contrário que pensam muitos, transforma-se não em um resultado direto da razão, mas num  produto de fantasia, projeção humana, elaboração simbólica, tudo sem substância ou profundidade ontológica. E é de sua própria orfandade que Victor Frankenstein tira a ideia fixa de “fabricar vida”, como um recurso inteligente, mas desesperado, de alguém que reconhece o vazio ontológico de uma existência sem fé. Essa fixação, diga-se, é outra característica da era Vitoriana, exacerbada principalmente pela literatura de Dickens, que era cheia de protagonistas órfãos. A destituição, miséria e doença que vieram com a urbanização desenfreada e com a Revolução Industrial, provocam essa orfandade como a que se vê em Oliver Twist, mas o ateísmo também nos deixa órfãos e essa orfandade nos faz criar monstros.

Se há um monstro ansiando em cada um de nós, o ateísmo se mostra como o pior deles, pois nos revela o mais abjeto do que em nosso âmago existe, mesmo que, em alguns casos, possamos conviver, ou nos enganar com esse monstro, como é o caso do Dorian Gray, tanto o do livro, quanto o da série, a viver as delícias da vida e da beleza eternas, enquanto a sua imagem, refletida em um quadro escondido em sua mansão, deteriora-se a cada novo dia de prazer sem sentido ao qual o “jovem” Dorian se entrega. A impudência de Dorian Gray não é só a contrafação de seu quadro, mas de todo aquele que acredita poder fugir à própria consciência e ao dever moral consigo mesmo; isso para não dizer o quanto que existe de desafio à Divindade nessa diabólica vida sem maiores relevos a qual o personagem de Oscar Wilde se entrega; daí este reflexo falso e distorcido que vemos em Dorian, mas também entre Victor Frankenstein e seu monstro, que não desperta para o Divino, dando as costas à verdadeira face de seu caráter, que apodrece mais e mais, à medida que sua alma se veste de um vazio cada vez maior e mais profundo. Mas ninguém pode negar, no entanto, o fascínio do moderno, o poder da técnica, da ciência e outros valores naturais como a liberdade, sexualidade ou pluralismo, que são também foco da modernidade, e que o Cristianismo secular nem sempre compreendeu muito bem. Juntam-se a isso a luta contra a inevitabilidade da natureza e da morte, ou o simples ato de ignorar a morte e seu poder ou não tomá-la como um assunto de grande relevância ou como se a felicidade não fosse um produto do efêmero para o efêmero. A modernidade diante da fé e a fé diante da modernidade geram um reflexo de proporções diversas e muito contraditória onde uma interface não pode jamais prevalecer sobre a outra e, quase sempre, a modernidade ganha, fazendo com que o principio da transcendência seja esquecido e a perpetuação do efêmero e do passageiro uma meta sempre a ser alcançada, seja com o Dr. Frankenstein e seu monstro, produtos diretos do ateísmo, ou com Dorian Gray, e sua luta constante contra o spleen destes dois mundos: o antigo e o moderno; o científico e aquele mundo onde a fé é imanente às atitudes puramente humanas.    

Sto. Agostinho, por exemplo, acreditava que o homem, enquanto criação de Deus, estaria condenado a viver sem paz ou conforto, só encontrando repouso se para Deus ele retornasse. Assim é o Dr. Frankenstein e seu monstro: duas criaturas sem Deus, destinados a viver uma orfandade sem precedentes e sem esperar nada da vida, ou um do outro, a não ser a dor e o abandono, e se o homem vem da tabela periódica e para a tabela periódica ele volta, que sentido profundo e real pode se sustentar dessa constatação? De todos os elementos teológicos presente em Penny Dreadful este é, de longe, o mais forte e o mais recorrente em toda a série, encontrando na figura do Dr. Frankenstein, e seu monstro, sua melhor personificação. Todas as provas da existência de Deus devem conter numa espécie de quadro tomista explicativo do real como um todo conciliando razão e revelação divina, e a distinção ontológica entre essência e existência permite reinterpretar o princípio aristotélico segundo o qual a forma revela a existência. Entretanto, a maneira como o Dr. Frankenstein interpreta e aplica essa máxima de Tomás de Aquino é, no mínimo, diabólica, pois nem ele nem sua criação podem existir por si mesmos, muito menos ser a razão de sua própria existência pelo simples fato de sua obsessão nascer da perda de muitas coisas, a começar pela própria razão. Além do mais, que existência a forma do monstro de Frankenstein revela, a não ser a existência da loucura de seu criador...?!

Mas as questões e os paradigmas levantados pela figura do Dr. Frankenstein e seu monstro não param por aí: em um diálogo com seu próprio criador, o mostro de Frankenstein afirma não haver mais lugar para Keats ou Goethe, muito menos lugar para a alma ou o amor; onde tudo isso havia, existe apenas um homem que abraçou a máquina, que substituiu sua carne e sua alma por engrenagens e rodas dentadas. Esse monstro de Frankenstein, consciente de seu papel nesse mundo, declara-se como a própria personificação da Modernidade: feia, disforme e sofrível, composto das sobras inúteis de um século que exaltou o passado e o futuro, o heroísmo e a autopiedade; o crepúsculo da Revolução e a ascensão da Ciência; que reabilitou o Barroco e a Idade Média, mas matou Deus e o espírito humano. Não obstante, quando matamos Deus não nos livramos do Diabo, muito pelo contrário, escancaramos a porta do mundo para ele, só nos sobrando a falta de ordem e de beleza, sobrando-nos apenas o Caos. E o que nasce do caos (e a mente de Victor Frankenstein não é nada mais do que caos tentando racionalizar), no caótico permanecerá.

No mundo que este monstro representa não há lugar para o belo ou, muito menos, para o ordenado... Pobre de Aristóteles, que acreditava que o belo reside na magnitude e na ordem, mas o monstro de Frankenstein, seja o imaginado originalmente por Mary Shelley, ou o que se apresenta em Penny Dreadful são, sobre certos aspectos (principalmente àqueles ligados à personificação da modernidade) a negação desta afirmação do Estagirita. Na dúvida, lembremos como o espírito do Romantismo foi, por exemplo, rapidamente substituído pela literatura realista-naturalista, que nada mais é do que puro e demasiado cinismo literário, contra a exacerbada, porém, sincera paixão romântica. Mesmo os casos mais geniais, como os de nosso Machado de Assis, não deixam de ser cinismo, por mais genial que eles sejam. E se a arte é, antes de qualquer coisa, reflexo da sociedade que a cria, esta sociedade se fez tão cínica quanto Darwin ou Marx – esses últimos, demasiadamente cínicos e sem muita genialidade, diga-se de passagem.

Já outros geniais, e menos cínicos, enxergaram com profunda dor o fim de uma era tão fabulosa, temendo, muitas vezes, pelo legado de suas ideias, reconhecendo que o fim do Romantismo poderia significar o fim dos últimos resquícios de um espírito humano pleno, onde seus sentimentos por mais exacerbados que fossem não prevaleciam sobre seus princípios, muito menos seus princípios como destruidores de seus sentimentos, como já alertara Shelley. Posso me lembrar de três neste momento: Dostoievsky, em Crime e Castigo, Tolstói em Guerra e Paz e Baudelaire, num explícito lamento pelo século que se extinguia com toda a sua grandeza, em O crepúsculo romântico, onde se pode ler:

Que le soleil est beau quand tout frais il se lève,
Comme une explosion nous lançant son bonjour!
— Bienheureux celui-là qui peut avec amour
Saluer son coucher plus glorieux qu'un rêve!

Je me souviens!... J'ai vu tout, fleur, source, sillon,
Se pâmer sous son oeil comme un coeur qui palpite...
— Courons vers l'horizon, il est tard, courons vite,
Pour attraper au moins un oblique rayon!

Mais je poursuis en vain le Dieu qui se retire;
L'irrésistible Nuit établit son empire,
Noire, humide, funeste et pleine de frissons;

Une odeur de tombeau dans les ténèbres nage,
Et mon pied peureux froisse, au bord du marécage,
Des crapauds imprévus et de froids limaçons.


e que eu traduzo aqui da seguinte maneira:

Belo é o sol quando ao céu – risonho – se levanta
numa explosão que nos impele ao seu bom-dia!
Feliz quem pode de ébrio amor e com alegria
saudar-lhe o ocaso cuja glória nos encanta.

Se bem me lembro, tudo eu vi murchar: a fonte,
a flor, o sulco e um coração que não palpita.
– Corramos todos ao esplendor que nos evita
para abraçar o que sobrou deste horizonte.

Mas eu persigo em vão a um Deus que se retira...
A irresistível Noite ao seu império inspira
inundando de sombras as celestes rotas.

Um odor de tumbas entre as trevas já se espalha
e em meio aos charcos meu medroso pé estraçalha
inesperadas rãs e muitas lesmas mortas.

Não seria nenhuma idiotice pensar que Penny Dreadful parece, de certa forma, lamentar profundamente o fim da era romântica, fazendo com que seus espectadores também se sintam saudosos de um período tão distante, que, sequer, viveram-no, mas capazes de reconhecê-lo como uma época de inventividade tão grande que é quase impossível nos desvencilhar de sua influência. E não poderia ser diferente, graças ao turbilhão feroz que foi o século XIX, os vitorianos poderiam dormir convictos de que todas as explicações possíveis, inclusive da origem de tudo, poderiam ser respondidas pela Bíblia e, logo em seguida, acordarem no outro dia em um mundo expandido ao limite da incompreensão graças aos avanços da ciência e da filosofia que o esquadrinhava, eviscerava-o e era anotado pelas mentes e mãos de sociólogos, filósofos, naturalistas; onde as oportunidades de enriquecerem e caírem na mais completa miséria eram praticamente iguais; onde tudo, mesmo o crime e a pornografia, democratizavam-se e proliferavam; onde o real e o imaginário eram igualmente possíveis e personagens como o Conde Drácula ou mesmo o dandismo de Dorian Gray poderiam ser topados pela rua como a qualquer pessoa real ou comum. Tudo isso porque tanto a fantasia parecia um decalque da realidade, bem como a realidade um debuxo do fantasioso e do imaginário.

Como se não bastasse, em todo esse emaranhado de símbolos literários, filosóficos e, principalmente, religiosos, Penny Dreadful abre, ainda, um precedente à outra análise, a do número imenso de filmes, séries, livros (e mesmo novelas) que recorrem ao passado, principalmente ao século XIX, para, ali, concentrarem seus enredos, e, mais ainda, na simbólica fixação que Hollywood tem por reescrever a história. Os exemplos são numerosos: House, que nada mais é que uma versão do já citado detetive criado por Conan Doyle, ou as séries também baseadas nele como Sherlock e Elementary; Drácula, Sleepy Hollow, ou as históricas The Tudors, Games of Thrones e Da Vincin’s Demons – todas, às suas maneiras, pouco ou muito teológicas... Até a nova temporada de 24 Horas não deixa de ser um retorno a um passado recente e de certo sucesso pelo seu realismo moral e político.

Esse desespero em buscar o passado – e Penny Dreadful é muito mais digna de credibilidade historiográfica do que foi The Tudors, por exemplo,  e nele resgatar um tempo de ideias originais e grandiosas, utilizando-se de cenários reais e da profusão de detalhes para tornar crível o fantasioso e o literário de seus personagens e de seu enredo,  só demonstra o quanto que também estamos órfãos de boas histórias, para recobrarmos as boas sensações da vida; descrentes de uma excelente literatura, para que o mundo a nossa volta se faça sentir cada vez mais; e, mais do que isso, desiludidos na busca de um sentido em tudo que fazemos; do contrário, como experimentar o prazer da estética se a nossa percepção não for posta à prova, assim como a fé precisa de obras...? Olhar para o passado, distante ou mesmo mais recente, é o que mais os artistas, escritores, roteiristas, noveleiros, cantores de barzinho e et cœtera, mais têm feito ultimamente. E quando se olha tanto para o passado é um sinal claro de que o presente não está indo lá grandes coisas... não concordam?!








Candeias, durante a Copa do Mundo de Futebol de 2014.