segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

UM POEMA DE NATAL...

A adoração dos Reis, de El Greco (1570-1572), Óleo sobre tela, coleção particular.



O EVANGELHO SEGUNDO NÓS MESMOS*



...ao mestre e amigo, José Jerônimo de Moraes, esta Ladainha.

Mas entro e, Senhor, me perco
na rósea nave triunfal.
Por que tanto baixar o céu?
Por que esta nova cilada?...
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE





 Senhor
a noite é divina
e o Teu anjo é terrível
mas só aqui eu posso morrer
somente aqui eu deixarei meus versos
e o que me matará também
me fará livre
             adentro por estas portas
             por estas naves
trouxeste-me aqui, Senhor
trouxeste-me a Remédios
onde se deitam sombras
e eu não encontro o meu rosto
as vozes, os murmúrios, os sopros, as rezas
nada me traz a paz que eu mereço
tudo me pesa no fundo desta noite
a oração nas salas
a esperança que vem com os ventos
estas imagens
esta arquitetura
estes vestígios que o tempo redescobre
a pomba brava
a vil raposa
o espantalho
o muito amor da pátria que a tudo obriga
o galo
a negação impronunciada
visão que vale a hora verdadeira
este mover de céus e este mover de estrelas
o enxame de abelhas luminosas
o Teu mistério
a Tua palavra
tudo é-me tão pesado
                                    Senhor
porque os espinhos nascem rápidos
por sobre os brotos
mas Teu brilho é eterno
porque oculto minha miséria
entre as palavras
mas Teu brilho é para sempre
porque mergulho no poema
e não trago nada
mas Teu brilho
é e será sempre...







II



 Senhor
o Teu anjo é terrível
mais que as pedras
desta igreja
o Teu anjo é terrível
mais que a força
destas preces
o Teu anjo é terrível
e quem sabe
este poema irrompa estas memórias
mas
por enquanto
tudo é canto e agonias
tudo é vazio e desperdício
mas esta igreja
estes Santos
este tempo apodrecido
estas velas...


















III



 É preciso ficar
Senhor
é preciso dobrar os meus joelhos
e a vida dói de tão exata e tão diversa
é dezembro
Senhor
e é preciso sentir que é dezembro
é dezembro e é preciso sê-lo
é preciso amar este dezembro
cada imagem
cada palavra
é preciso amar
Senhor
para que a vida não peque
para que o vazio não perdure
para que existam o pão
e a fome
a benção
e o linguajar maldito
a sombra
e as chamas
cartas
devoluções
espíritos
carnes
desejos
restos
coisas
avessos
poemas
gestos
braços para os frutos
olhos para as vontades
mãos
e adeuses...

  


IV



Senhor
a noite é também terrível
afundo nestes mistérios
como as estrelas afundam na manhã que raia
não trago em minhas mãos
a palavra que liberta
nem espero ( na morte ) achar-me livre
eu permanecerei aqui
como uma chaga
porque só cara a cara
eu verei a morte
eis-me aqui: a ordem
a mesa posta
o lavrar do campo
as formas luminosas da existência
eu sou este homem, Senhor
o que vagou perdido entre os espelhos
que diante do Abismo
duvidou do Abismo
que ante a rosa a murchar na janela
sonhou seus sonhos de criança
porque é chegado o tempo dos retornos
e onde quer que eu esteja
           é preciso partir
ah, esta vontade de ir embora
– a única paz que eu encontrei –
porque a alma é mais forte que as pedras
é preciso partir
pela porta aberta a chutes
pela rua mergulhada nas aflições
pela estrada
pelo mundo
pela vida
mas, eis que estou aqui
Senhor
estou sempre aqui
desde sempre estou aqui
a Tua presença é a minha única fuga
e só a Ti eu me ofereço
aniquilo-me para saber-me em Ti
nego-me para estar Contigo
faço-me pequeno para o imenso sussurro que me resta
é preciso
               como as falenas
               buscar as chamas
porque é o Senhor quem me busca
               e a mim
não me cabe ser-me perante os Teus propósitos...
























V



Senhor
abraça esta carne que eu encontrei banida
este espírito que eu recolhi entre os escombros
eu sou cada vez menos meu
Senhor
mas não faças de mim o que fizeste à pedra
que eu não sonhe os sonhos absurdos
onde Te decifras
não me mostres a terra dos longínquos desesperos
e depois me mata
aceito a cruz
o suor de sangue
a noite em claro no Jardim
é preciso tecer esta nova aurora
as coisas impossíveis
a luz amarga destes candelabros
mas
perdoa-me, Senhor
a cabeça entregue aos espinhos
a mão estirada ao prego
os olhos fitando a treva, a cegueira, o esquecimento
meu coração desejoso Te pede perdão...













VI



Senhor,
como é terrível o Teu anjo
ah, como esta noite é cruel
no instante em que parar meu coração
hei de querer ser tudo
hei de desejar as coisas em que me perco
porém
se me socorreres
Senhor
talvez aceite a morte... 




VII



 Para sempre
em algum lugar
na agonia da dor ou no Mistério
eu permanecerei
oculto
entre as sombras e os instantes
o que me levará
          enfim ao Inferno
ou ao pecado simplesmente?
o que me conduzirá ao estado temeroso?!
hei de punir a mim mesmo com o Eterno Suplício no morrer de meus princípios de meu intelecto de meu ver sozinho dominado pelo fogo pela paixão pela política os julgamentos morais a noção do bem os caminhos a prática da virtude a defesa da paz o cultivo do amor o respeito ao homem à justiça... a condução ao Purgatório, talvez:

qui si convien lasciare ogne sospetto
ogne viltà convien che qui sia morta
noi siam venuti al loco ov'i' t'ho detto
che tu vedrai le genti dolorose
c'hanno perduto il ben de l'intelletto

trouxeste-me a Remédios
e este chão abriga-me
a sede
a fome
o desejo que a tudo arrasta
trouxeste-me
a Remédios
onde ressoam os Teus ventos solitários 
onde o meu coração se unifica
trouxeste-me a Remédios
e
em toda parte
contemplo o Teu rosto






































VIII



Senhor
o Teu anjo e a Tua noite são terríveis
mas aqui redescubro as coisas
o vazio florescendo em minha pele
a nudez necessária destes versos
caminharei sozinho pelo mover das noites úmidas?!
o que sobrar de tudo será início...
em cada flor há uma pisada
na beleza há o trote ligeiro do tempo
a terra
a cinza
o pó
a sombra
o nada
o esquecimento
o Teu novelo
o Teu alinhavo
a Tua trama de desejos e limites, Senhor
trouxeste-me a Remédios onde me perco
e na aflição
novamente me reencontro...















IX



( penso no fogo e o fim de tudo
é pesado sobre os meus ombros
e, entre os silêncios mais esplêndidos
perdi meu nome... achei escombros

a vida, este sopro entre as cinzas
onde, na dor, Tu te divisas

vai se acabando, tudo passa
e o que deixarei para trás
não importa, tudo é ilusão

mas a alma, em vão, vê e deseja
a oração do tempo e esta igreja... )





















X



tudo é tão terrível, Senhor
estes silêncios colhendo as orações e os frutos
a temeridade presente na Beleza
a navalha despertando a carne
o coração que bate
o pulso aberto
este morrer de tantas coisas
a indagação da Eternidade
a dúvida
o chão
a chuva
o barro paciente
o vaso que em todo barro existe
o oleiro
o instante fugaz como
todo instante
o instante fugaz como tudo
a noite
as estrelas
o dia sem nuvens
o corpo
o outro corpo
o espaço
a medida
o campo
as reses
a vida a brotar da morte de toda semente
o mover de tudo
o musgo
os muros
ainda que eu veja tudo
e esteja em tudo
toda mentira me é pouca
o passado
o porvir
a dor que trago agora
o peito
o braço
o olho
o sexo
os pés
o mar
o céu
( mas entre o mar e o céu o abraço insano )
o mar
o céu
( dois infinitos que no Azul se inflamam )
o mar
e o céu
( este mútuo espelhar entre os eternos )
as estrelas no espaço
tristes
o afastamento
o encontro
o martírio
o amor
a renúncia
o Minotauro
a falsa fé de Minos
as asas de Ícaro
Pasifae
o Touro
o Labirinto
o muito perder-se de Dédalos
               a Esfinge
               o enigma
               o precipício
( esta mulher, Senhor
meu naufragar em seu corpo
o seu cheiro
a sua carne
o seu delírio
o suor
o gozo
as entranhas
toda ela e tudo... )
































XI



tudo é tão terrível, Senhor
e em tudo existe o mesmo sopro
a mesma ordem
a mesma luz
o mesmo instante
o mesmo fim
que sei eu dos vivos, Senhor
que sei destas cartas abertas
destes dizeres
desta caneta
deste poema
da superfície do papel ou da superfície de tudo
sinto-me nascido para o eterno recomeço
               meu coração – mangueira partida
               meus olhos – lanterna afogada
e em tudo existe a mesma vida
o coração há de chorar a sua música
e o meu olhar se apagará
simplesmente
deixa-me repousar em Tua sombra, Senhor
em Tua sombra maternal e infinita
porque o meu corpo já Te escuta
porque o meu espírito sempre Te buscou
porque o meu espírito sempre quis voltar a Ti
ah, um cisne em agonia
este telhado onde pombas passeiam tranqüilas
uma boba cantarolando rumo ao rio
esta rainha ensangüentada
esta princesa a servir de pêndulo
a louca nudez de um rei perdido
a rosa sem nome
sua espada e o seu veneno
a princesa que dormia:
que era o próprio príncipe a mirar-se na memória
o gigante adormecido
a mortalha impossível
Orfeu reinventando-se
esta estrada
estas pedras
este poema sujo
o tumbeiro rumo aos mares
a mar tantas vezes ressurreto...






























XII



Senhor
o Teu anjo, esta noite...
                                     como eu sou terrível
e aos poucos vou povoando minha memória
trouxeste-me a Remédios
para atar-me
para prostrar meu rosto ao chão
para suplicar Teu nome
para que eu veja o quanto pesa a minha carne
para que eu afunde os meus pés nestes mármores
para que eu grite e me cale depois
                           ah, Senhor
tudo é escombros
e Tu bem sabes
das intenções do tempo
do abraço da morte
dos declínios a que se destinam os homens
de minha sombria forma dolorida
das memórias ( em vão ) recolhidas
de meus músculos e de meus ossos
pó levantado ansiando pela terra...















XIII



 Surges em mim
como a canção que me renega
a voz do mar
e o murmurar das ondas
surges como a manhã engolindo estrelas
surges em mim e eu não Te nego
por mais que eu queira negar-Te eu não Te nego
pois me trouxeste a Remédios
e tudo está completo
é Natal
e tudo que eu quero é ficar
o que há em mim não me pertence
pois não me cabe ser se já sou tudo
pois estou em Ti, Senhor
trouxeste-me à Igreja de Nossa Senhora dos Remédios
e o meu coração se torna um só
estou aqui, Senhor
dissipado nestes muros
atado a cada coluna
dividido em teus altares
único, porém
em Tua palavra
eu sou a tela, Senhor
e a oculta mão que me colore
deixa, Senhor
que eu me reparta nestes andores
que erga as mãos intactas e a pele híspida
à afirmação das Horas
e ao teu Perdão
             Perdoe-me, Senhor
porque é tempo de ficar,
o Teu anjo
e a Tua noite
me consolam
e o Teu
Amor
me queima...
















Candeias, 24 de dezembro de 2008/06 de janeiro de 2010.






* Este poema faz parte de meu livro A pele de Esaú (Via Litterarum, 2010). Compre já o seu: http://www.vleditora.com.br/lojavirtual/livro/a-pele-de-esau