terça-feira, 25 de janeiro de 2011

DR. HOUSE... UM MACHADIANO POR EXCELÊNCIA


O ator inglês Hugh Laurie, como o impagável Dr. House.




Alguns amigos meus, numa peleja via Facebook, questionam sobre o fim da Série House M.D. (Fox, 2007/2011) e de seu personagem, ou, mais precisamente, sobre o fim de seu sarcasmo (principal cartão de visitas da série, talvez)... muitas são as opiniões; eis a minha...

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Diferentemente do que pensa Marco Aurélio Garcia*, as séries de TV, que os Estados Unidos tem produzido nos últimos anos, são o que se têm criado de mais vivo pela indústria cinematográfica.







Enquanto o cinema vem se arremessando cada vez mais à adaptação, quase kamikaze, de quadrinhos, desenhos dos anos 80 e jogos de vídeo games, o antigo “patinho feio” da cinematografia, a televisão, tem se mostrado indiferente a todos os modismos e vícios de grande parte cinema contemporâneo e, usando de fórmulas antigas, mas responsáveis pelo que de melhor foi e ainda é produzido pela telona, consegue uma humanização e uma dinâmica que nem o atual cinema americano, com seus inúmeros robôs e heróis de computador, nem boa parte do cinema europeu, com sua apatia e intelectualidade forçosas tão típicas, têm produzido.







Neste mundo de boas criações – pois as ruins também existem, é claro – House M.D., sem dúvidas, é um fenômeno... em todos os sentidos.







Sem os lugares comuns que uma série médica poderia apresentar, House foca-se nas contradições de um médico arrogante, infeliz e, muitas vezes, “desumanizado”, mas duvido muito que alguém que tenha ido a um pronto socorro de nosso amado SUS, seja para tratar de um traumatismo craniano ou de uma simples unha encravada, que não tenha desejado um médico que prioriza o bem-estar de seu paciente acima de tudo; e pro inferno que seja para satisfazer sua obsessão por charadas; se alguém é atingido por uma bala, e fica vivo para reclamar dela, este que alguém a retire e o deixe vivo e bem... o motivo, na maioria das vezes, pouco importa se a sobrevivência é o fim; isto não é Maquiavel; isto é sentir dor, angústia, desespero; isto é ser humano.







E é de dramas humanos que a série se faz, é de abismos sucessivos que a dor, seja ela física ou psicológica, abre à nossa frente, que House se mostra genial, pois, na busca incessante pelo diagnóstico perfeito, vários caminhos se abrem para um auto conhecimento que nem sempre tem a glória daquele γνθι σεαυτόν socrático ou frenesi do cogito descarteano.





Muitas vezes, a busca do auto conhecimento é tediosa e cruel, muitas vezes, na busca desesperada pelo bem, deparamo-nos com coisas que escondemos de nós porque elas merecem ser escondidasou e até esquecidas. Conhecer-se nem sempre significa encontrar o melhor e sim se deparar com o que de pior podemos ter, fazer, viver... certamente a busca por resposta nos condena a questionar mais e mais sem que possamos nos dar conta do quão fundo e escuro esta busca podenos levar.







House tem mostrado isto da melhor forma possível e se há um erro que os produtores da série podem cometer – e, graças a Deus, ainda não o cometeram – é aquela tendência à explicação a cima de tudo, do motivo indubitável por menos real que este possa parecer; isto ainda não foi feito. A falta absoluta de problemas, de enigmas, de perplexidades é um mal que assola até mesmo os grandes mestres da Literatura, como um Graciliano Ramos, que também se limitou, muitas vezes, a retratar situações vistas por uma ótica filosofia ou ideológica preexistente, de modo que tudo no fim parece óbvio e explicado. Então há sempre aquele “porquê de eu ser assim”. Explicar demais castra qualquer questionamento a respeito “do que ali já não esteja”, como diria Olavo de Carvalho. Mas isto não acontece nas tragédias gregas, nem com o melhor teatro de Shakespeare, os personagens de Machado de Assis, nem (ainda) aconteceu com House, apesar de os americanos terem uma verdadeira adoração por Freud, ao mesmo tempo que nenhuma nação gerou mais críticos deste do que a nação Norte americana.







Pode ver em House, como em Dostoievski, que ali se encontra algo de perfeitamente real e, ao mesmo tempo, inexplicável, lógico, porém e também, absurdo, é o que me parece mais sedutor na série: um personagem que é o que é, sem explicações ou deduções desnecessárias – por mais cabíveis que estas possam ser. É a invenção de um humano que, incapaz de diminuir a distância que ele próprio estabeleceu com relação aos outros, procura cerca-se de pessoas que fazem esta distância se lhe mostrar. Daí, uma imensa parada de personalidades, todas humanas, todas possíveis de ser e acontecer, todas próximas de nós, desfila grandiosamente em 22 ou 24 episódios para, logo depois, passada a euforia, descobrimos que as coisas são sempre as mesas, que as coisas quase nunca mudam a não ser a nossa maneira de vê-las e mudá-las, quando não parecemos ou nos tornamos sempre os mesmos.







Bom ou mal, na minha modesta opinião (palavra e atitude que eu odeio) o Dr. House será sempre o mesmo Dr. House... mas, e quanto a nós?!



*http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/marco-aurelio-garcia-ataca-programação-de-tv-cabo-915819495.asp

























quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A PALEONTOLOGIA DOS CARVALHOS: AUGUSTO DOS ANJOS (1884-1914)


Augusto dos Anjos (Cruz do Espírito Santo, abril de 1884 — Leopoldina, novembro de 1914)




Dos muitos estereótipos atribuídos ao Brasil desde o tempo das primeiras caravelas que, por aqui aportaram, o exotismo é, sem sombra de dúvidas, o mais presente, disseminado e, perdoem-me pelo possível pleonasmo, vulgarizado.


Da natureza exuberante e índios “de bons rostos e bons narizes” a exímios jogadores de futebol e mulatas com glúteos que valem por um pomar inteiro... tudo isso foi ou é tratado com estranhamento, extravagância e muito mal gosto. Todavia, se há algo de realmente exótico em nosso Brasil varonil, isso se chama: cultura erudita.


Nada mais raro, extraordinário, em resumo, algo que muitos poucos viram realmente do que este item tão indispensável à formação de uma grande nação e que, entre nós, teve vida tão densa quanto curtíssima. A história de nossa cultura erudita se inicia a passos de jabuti na aurora do século XIX, com uma corte cujo afrancesamento era o fim a que se dirigiam todas as ações e pensamentos desta, emendando com um segundo imperador com modos e aspirações político-filosóficas e cientificistas, culminando nos anos 30 do século passado. Exceto uma duas dúzias de esmerados perdidos por nosso vasto território, a cultura erudita, no Brasil, é quase uma alucinação e, muitas vezes confundida com uma piada de mau gosto. Mesmo aquilo que, entre nós, é considerado erudito, ou meramente de bom gosto, nada mais é, na grande maioria das vezes, cultura popular vestida com capricho.


Daí, um dos grandes problemas de nossa atual sociedade: ter desaprendido o sentido, tanto teórico quanto prático, da palavra “critério”, ou mesmo “juízo” e “discernimento”. Não quero, nem me cabe (aqui) levar esta questão a outras áreas, no entanto, em termos de arte, o que vemos é um público incapaz de diferenciar bossa nova de um pagode de mesa, ou que vai a um show de arrocha como vai a um show do João Bosco sem se quer saber ao certo o que ouviu e, mesmo assim, arisca-se a arrotar intelectualidade ao sair de qualquer um dos dois sem o menor recato ou razão, a começar por nossa classe média “letrada”. Por vários motivos, que seria impossível enumerá-los em tão pouco espaço, termos como “bom gosto”, “intelectual”, ou “mesmo erudito”, têm sofrido uma inversão enorme ou um total descrédito, principalmente por parte de quem deveria prezar por eles, porque, em nossas universidades, qualquer cordelzinho vale mais do que os Sonetos, de Camões, ou qualquer tese sobre letras de hip hop será aceita no lugar de qualquer estudo sobre Petrarca ou Dante.


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Dos muitos poetas de nossas Letras, nenhum foi testemunha da decadência de nossa cultura erudita nem incorporou, por assim dizer, tal decadência como o paraibano Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos.


Nascido e morto nos trinta anos que correspondem à transição do século XIX para o século XX, Augusto dos Anjos cresceu e vivenciou muitos decadentismos, por assim dizer; muitas mudanças radicais de pensamento e atitudes, muitos estilos artísticos e literários. Segundo Antônio Houaiss, já a partir de meados do século retrasado “a segurança do regime econômico e social da burguesia principiava a sofrer seus primeiros abalos”. De certo as muitas contradições internacionais, as inúmeras revoluções geraram problemas cuja Primeira Guerra Mundial (1914-1918) se tornará seu ponto culminante.


No interregno deste quadro sumário, o Brasil se encontra muito atrás, em relação à sua, por assim dizer, derivação cultural, embora a Abolição (1888) e a Proclamação da República (1889), por mais que esta tenha saído de um golpe de estado, renderam-lhe bons resultados na política e nos mercados internacionais. Em meio a tudo isso, uma pequena e já decadente intelectualidade, últimos sinais de uma cultura erudita, ainda vive e sobrevive.


Voltada muito mais para problemas filosóficos de ordem genérica do que para aspectos técnicos e matemáticos – mais comuns à sua época e ao mudo novo que, dali, se formava – temos aqueles que representarão – perdoem-me, novamente, pelo jargão – os grandes “divisores de águas” entre a cultura clássica e o verdadeiro Modernismo: Euclides da Cunha, e seu quase militante Os Sertões e Augusto dos Anjos que, com seu Eu, resume toda uma imensa problemática teleológica de um ser humano diante do mundo e da realidade e sua angustiante busca pelo saber.


No plano literário, o Brasil viveu um paradoxal anacronismo entre as muitas escolas literárias oriundas do foco europeu – principalmente o francês – que, mesclando-se, fundindo-se, não seguindo a periodização do modelo e comportamento, mas todas se manifestando, como disse, fora do tempo e, desta forma, produzindo, salvo o caso de nosso Parnasianismo, originalidades e personalismos como é o caso do próprio Augusto dos Anjos. Desta questão, surge um problema há muito não resolvido em relação à Escola a qual muitos inserem o bardo paraibano, o Pré-Modernismo.


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O grande mal do Modernismo paulista, e, até hoje, uma grande desgraça para quem se alimentou dele, foi o fato de os paulistanos se afastarem completamente de um passado que só lhes podia fazer bem. Se olharmos, só por motivo de exemplo, para os primeiros modernistas de Portugal, veremos que eles não aboliram, de todo, as formas fixas, mesmo o soneto – e nem poderiam, pois, de tão enraizados estavam as língua e as tradições portuguesas nos decassílabos camonianos que é o decassílabo a própria expressão do pensamento e da língua; nem, muito menos, aboliriam os grandes temas que percorrem a mentalidade humana há séculos e séculos; é por isso, e que nos sirva de exemplo, que as Odes de Álvaro de Campos são tão repletas de fábricas, engrenagens e automóveis velozes, quanto de uma retórica ou de um ritmo poético tradicionalíssimos, que estes mesmos elementos “modernos” tão contemporâneos não se fazem livres de um Virgílio ou de um Platão, tanto que estes chegam até a dividir os versos com aqueles; o próprio Fernando Pessoa era tão embriagado de Aristóteles quanto de Walt Whitman...


Modernos sim, idiotas nunca; os portugueses sabiam que negar estas coisas é negar-se a si e a tudo que se podia definir como cultura; o menos que isso é caos puro e simples. Agora, se olharmos para o exemplo do Brasil, ou pelo menos o exemplo paulista que, infelizmente, impera sobre os demais, a coisa é contrária: despreza-se o passado, a tradição, a forma e mesmo a linguagem apurada, que não tinha nada de preciosismo, em troca de quê? Em troca de algo que não se sustenta por si mesmo por não ter onde agarrar-se. A velha tentativa de buscar uma identidade nacional desprezando mais da metade dos elementos que constituem esta identidade só poderia dar em nada, ou pior, numa anomalia. Tudo isso, no entanto, se se considerarmos os paulista de 1922, como precursores de nosso movimento modernista; e por que não consideraria?


Porque há uma geração moderna bem antes deles que, por preguiça, incompetência de nossos críticos, ou espírito de cooperativismo porco, ou (o mais certo) os três juntos, não se enquadra como modernista, apenas como Pré-alguma-coisa... não conheço uma característica dita como moderna ou como oriunda dos modernistas de São Paulo, que não tenha sido usada por um Augusto dos Anjos, ou um Lima Barreto ou um Euclides da Cunha? Mário de Andrade não foi melhor nem nunca o será em retratar a urbis caótica do que um Lima Barreto, nem um Oswald de Andrade seria capaz de trazer tanta valorização ao passado, e às tradições culturais do Brasil, mais do que foram trazidas à luz no antológico Triste fim de Policarpo Quaresma? O que é o Manifesto Antropofágico frente àquele horror que nos traga, nos devora e, ao mesmo tempo, nos apaixona e nos faz admirados nos sonetos de Augusto dos Anjos – poemas como Os doentes e As cismas do destino, presentes em Eu, são mais repletos de urbanismo e de uma linguagem inovadora do que quaisquer textos de Mário de Andrade.


Sobre Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar, entre muitos, aponta-nos o caráter inovador – modernista – da poesia do bardo paraibano: é quando ela rompe com as muitas conveniências verbais e sociais da época, levando, o Augusto dos Anjos, a uma mescla perfeita entre a beleza e o asco, entre os momentos sublimes e toda a sujeira da vida, sem contar certo prosaísmo, que triunfa sobre a rígida linguagem de seus sonetos... isto é ser ou não ser modernista?


O que é o Manifesto Antropofágico diante de um Eu? Antropófagos que eu saiba foram o Raul Bopp, a Tarsila e os índios que devoraram o Frei Sardinha. Certo foi o Manuel Bandeira, que não entrou de todo nessa história. Isso sem falar nos marginalizados como Graça Aranha e Monteiro Lobato; o primeiro soube enxergar, antes de muitos, os enganos e os horrores do Fascismo e do Comunismo bem antes de suas ascensões, é só ler o Canaã; o segundo caiu no ostracismo, vitimado pelo “cooperativismo de suínos”, algo que os paulistas de 22 aventaram como ninguém, por falar a verdade mais óbvia: que aqueles trabalhos de Anita Malfatti, tão aclamados pelos seus patéticos colegas, eram, e são até hoje, uma coisa ordinária. Não obstante, Monteiro nunca disse que ela era má pintora ou que, pelo menos, não era talentosa. Há, também, as inúmeras contribuições que os Contos gauchescos de Simão Lopes Neto deram a Guimarães Rosa e ao seu Grande sertão: Veredas?


Para quem buscava a liberdade e o fim das segregações, ninguém mais negou-nos a primeira, nem nos pregou mais a segunda, do que os Modernistas paulistanos; não é à toa que, referindo-se ao Modernismo de 22, Luís Augusto Ficher não se acanha em dizer que “o Modernismo brasileiro, quer dizer, paulista, aquele que a gente aprendeu no colégio e hoje virou cânone obrigatório, inescapável, a ponto de excluir (da escola, dos manuais de história da literatura, portanto do horizonte prático da vida cultural) autores que não rezem por aquele catecismo – para os gaúchos é fácil ver isso, por exemplo, com o desprezo por Simões Lopes Neto, reduzido a ‘regionalista’ e, pior ainda, ‘pré-modernista’. Sem valor, portanto”. A Semana paulista de Arte Moderna, de 1922, foi o golpe de misericórdia na já moribunda cultura erudita brasileira.


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Vivendo vida adulta de 1900 até a sua morte, em 1914, Augusto dos Anjos coexistiu com os mais diferentes estilos literários e, respectivamente, com escritores que, além de se integrarem a estes estilos, levaram consigo uma cultura erudita de massa e seus rudimentos, como Aluísio Azevedo, que morre em 1913; Inglês de Souza, morto em 1919; Machado de Assis e Arthur Azevedo, falecidos em 1908 para citar realistas e naturalistas; além de poetas parnasianos, simbolistas, seus colegas, por assim dizer, pré-modernistas, e outros, como Coelho Neto, morto em 1934; Alberto de Oliveira, 1937; Raimundo Correia, 1911; Olavo Bilac, em 1918; Joaquim Nabuco (este, ainda, um romântico, no melhor sentido do termo), em 1910; Rui Barbosa, em 1923 e, claro, Euclides da Cunha, em 1909.


Ciente de que, com estes e consigo, encerrava-se um período brilhante de toda a nossa história, foi que o poeta nascido no engenho Pau D’Arco muito bem escreveu seu soneto Debaixo do Tamarindo, onde podemos encontrar o verso que intitula este post; verso com “jogo de palavras” como, também, nos lembrou Houaiss: no primeiro sentido, o Tamarindo guarda, como bem escreveu, “o passado da flora brasileira”, porque, como indivíduo, revive a aventura biológica de sua espécie, havendo nele, como que fossilizados (a palavra paleontologia é a ciência que dos fósseis dos animais e vegetais), até os carvalhos; no segundo sentido: note-se que o poeta se chama Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos, razão porque a notação com maiúscula para indicar sua família e toda a humana metafísica que a envolve, também vítima de um decadentismo que a poesia de Augusto dos Anjos, como nenhuma outra tratou de dissecar e discernir.




No tempo de meu Pai, sob estes galhos,


como um vela fúnebre de cera,


chorei bilhões de vezes com a canseira


de inexorabilíssimos trabalhos.



Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,


guarda, como uma caixa derradeira,


o passado da Flora Brasileira


e a paleontologia dos Carvalhos!



Quando pararem todos os relógios


de minha vida, e a voz dos necrológios


gritar nos noticiários que morri,



voltando à pátria da homogeneidade,


abraçado com a própria Eternidade


a minha sombra a de ficar aqui!




Ref.: ANJOS, Augusto dos (1884-1914). Poesia. Org. Antônio Houaiss – 3 ed. – Rio de janeiro; Agir, 1978.